Filosofando
Dalva Aparecida Garcia Docente do Ensino Médio na Rede Pública Estadual. Coordenadora Pedagógica do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças; Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista - Marília, UNESP; Mestra em Filosofia e Educação pela Faculdade de Educação da USP/SP, FEUSP; e-mail: dalva@cbfc.org.br

Ética e Cidadania no mundo contemporâneo - 05/04/2007
Coluna Educação para o pensar

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O século XXI trouxe em seu bojo uma série de promessas apocalípticas, assim como a profunda sensação de severas mudanças nas relações econômicas e sócio-culturais. Contemplamos essas mudanças na busca de diretrizes e de novos valores que possam redirecionar as múltiplas relações a que estamos submetidos e traçar um novo perfil de escola, de trabalho e de desenvolvimento social.

Não é de se admirar que nos últimos tempos todas as instituições passem por uma sensação de desorientação que integra tanto as perspectivas do futuro quanto as amarras do passado:

Como conciliar uma lógica de mercado marcada pela expansão e busca de lucros de forma desenfreada com o apelo à preservação da natureza e aos direitos humanos? Como tornar compatível a autonomia dos educadores e dos alunos exigida pelas novas orientações da LDB e pelas novas concepções do trabalho com as regras do mercado capitalista?

Em suma, poderíamos afirmar que o grande desafio da sociedade contemporânea é o estabelecimento de um compromisso que ultrapasse o âmbito do tecnicismo para afetar o âmbito do pessoal, do profissional e do social. Portanto, não basta desejar um perfil de sociedade com profissionais reflexivos e capazes de desfrutar de um grau maior de autonomia, é antes preciso favorecer a reflexão com o objetivo de desvincular os processos de atomização, corporativismo e individualismo que marcam a esfera da produção capitalista.

Ora, é certo que o individualismo é fruto das sociedades modernas. Se por um lado, a valorização do indivíduo livrou a humanidade dos entraves do dogmatismo religioso e abriu as portas para a conquista do desenvolvimento; por outro, transformou também a natureza em domínio e conquista e o humano em moeda de troca. Se a “globalização” religiosa, utopia que marcou os interesses da Igreja Católica em toda a Idade Média e legitimou os interesses políticos das chamadas “Cruzadas” falhou, a globalização econômica mostra, hoje, os sinais de sua força e legitima em nome da liberdade e do indivíduo a intolerância, a homogeneização dos valores, dos gostos e até da língua. Em nome da unidade se exerce o domínio e a conquista seja ela do mercado, dos valores ou da natureza.

Neste contexto, seria pertinente recuperar a noção de indivíduo, um dos principais pilares da ciência e da economia moderna. Se resgatarmos os primórdios da civilização ocidental e naufragarmos pelo Mediterrâneo em seu berço ou seja, a Grécia Antiga, veremos que a noção de indivíduo só tem sentido na esfera da vida privada, no domínio público se edifica a noção de cidadania.


Ser cidadão não é ser único, mas ser a cidade, reconhecer-se nas leis da cidade e compreendê-las. As idéias de BEM, JUSTIÇA, VERDADE torna-se meta a ser atingida para o bem-viver e a ética torna-se o esforço de alcançar esses ideais...

A ética é busca do inteligível no sensível segundo Platão; a ética é o esforço de buscar a mediana, a busca da prudência, segundo Aristóteles. Em uma generalização grosseira, podemos afirmar que ética e cidadania grega são termos congruentes e não excludentes, a ética é trabalho de investigação racional para se alcançar o viver bem.

Ainda neste mesmo contexto, vale resgatar a noção de “phisis”. Para os primeiros filósofos compreender a “phisis” era compreender a ordem e a transformação presentes na natureza, compreender é buscar seu princípio, sua origem; é reconhecer a racionalidade inscrita no universo para fazer parte dela enquanto seres racionais. Dizia Heráclito que a própria natureza é “logos” que ama esconder-se. O Homem Grego buscava os princípios da “phisis” como quem buscava a si mesmo, o mundo era em si uno e múltiplo, bastava entendê-lo.

O mundo romano rompe as marcas desta unidade grega, a diversidade e domínio exigem regras e normas, a ética deixa de ser investigação e busca para tornar-se “mores”, costumes e leis, moral. O domínio público se dá na esfera do Direito, o homem está só e não confia no BEM, na JUSTIÇA ou na VERDADE, busca o viver cético ou estóico, temos aqui o embrião do indivíduo.

Tal embrião não pode e não deve se desenvolver no mundo cristão da Idade Média, a VERDADE ou a JUSTIÇA se reconhecem em Deus e para Deus, o homem é seu servo, na servidão e na busca de um BEM transcendente é que se busca a unidade perdida e se que se edifica uma moral que ultrapassa as regras porque incorpora a intencionalidade, não se peca apenas por atos, mas por atos e intenções.

Foi preciso ao homem moderno romper as amarras desta servidão para buscar o reconhecimento de si e da autonomia da razão. O homem torna-se medida de si, senhor de si, tudo pode e tudo faz. A unidade e a multiplicidade da “phisis” não pode mais ser reconhecida no divino, mas também não pode estar inscrita na ordem das coisas como previam os gregos. O mundo está desordenado, perdeu sua unidade religiosa com a Reforma Protestante, perdeu sua unidade política com a Revolução Inglesa e Francesa, perdeu seu eixo com a Revolução Copernicana. Só a racionalidade humana pode reordená-lo, não basta conhecer ou entender a natureza é preciso dominá-la, é preciso dividir, calcular, medir e transformar. O antropocentrismo não coloca apenas o homem como centro do universo, mas faz o universo girar em seu centro. Transformar implica em trabalho, em mercado e lucro. A natureza e o homem giram em torno do mercado e a ética a ele se curva. A busca da investigação ética se faz pela razão e promete a liberdade. Liberdade de compra e venda, liberdade para as leis do mercado, liberdade para a propriedade, liberdade para o INDIVÍDUO.

A unidade se dá no mercado e para o mercado, eliminam-se as fronteiras, temos um mundo globalizado. Somos livres e cidadãos do mundo, ou melhor, indivíduos do mundo, pois o mundo curva-se a nossos pés. Conquistamos a liberdade, a autonomia e a unidade prometidas, basta saber se a queremos e como a queremos.

Somos cidadãos de um mundo globalizado? O mundo curva-se a nossos pés?
De qual indivíduo estamos falando?

A fim de respondermos estas complexas questões seria preciso nos debruçar no próprio conceito de globalização e em suas implicações. Segundo o geógrafo Milton Santos estamos diante de um novo paradigma de conhecimento da economia, da política, da ciência, da cultura, da informação e do espaço. Todavia, de uma forma geral podemos sintetizar algumas das características deste difuso processo:

1)A transnacionalização das instituições, ou seja, segundo alguns cálculos de organismos internacionais, atualmente um terço do total da atividade econômica mundial, transcende a possibilidade de intervenção de um só Estado. A atividade econômica está organizada de uma forma que impede sua regulamentação. A economia torna-se autônoma frente à política, como previa Locke. O resultado da política dos consórcios transnacionais é a especulação monetária.


2)A desterritorialização, derivada do processo anteriormente citado, nos impede de ver um único espaço como centro de decisões não apenas na esfera da economia, mas do social, do cultural e do político. O resultado é um crescente sentimento de solidão que envolve indivíduos e segmentos sociais. Mas o contraponto também é verdadeiro, uma vez que a internacionalização da mídia impõe valores e padrões que deixam pouco espaço para a autoconsciência.

“O mundo não é apenas, ou principalmente, uma coleção de estados centrais e periféricos, arcaicos e modernos, agrários e industrializados, coloniais ou associados, dependentes e independentes, ocidentais e orientais, reais e imaginários. As nações se transformaram em espaços, territórios ou elos da sociedade global” segundo Otávio Ianni.

Como entender tal processo?

Vejamos apenas dois exemplos da necessidade de pensar a globalização.
O primeiro diz respeito à formação dessa nova configuração, a proliferação de novas nações provoca o acirramento das diferenças religiosas e étnicas, uma vez que as mesmas não tiveram o amadurecimento do processo histórico que lhes permitiria assimilar as diferenças.

O segundo diz respeito aos desafios da sociedade global que afetam a humanidade, como as catástrofes ecológicas, a emissão do gás carbônico, o efeito estufa, a desertificação das áreas férteis, o estoque de reservas não renováveis de energia e outros. Apenas estes dois exemplos tornam malograda a promessa de uma razão capaz de libertar e de uma humanidade que coloca o mundo a seus pés. O preço da ousadia no primeiro caso é a intolerância, no segundo é a própria ameaça de término das condições de toda e qualquer existência de vida, seja humana ou não.

Resta-nos ainda a questão da liberdade do indivíduo, tão cara na configuração do que denominamos “Modernidade”. O avanço do capitalismo mundial fez o Estado do Bem Estar Social perder a hegemonia para o neoliberalismo, enfraquecendo as economias nacionais. O capitalismo irrompe alterando as instituições econômicas, políticas e sociais, todavia esse processo de homogeneização não diminui as desigualdades sociais; ao contrário, grandes contingentes populacionais têm ficado à margem dos benefícios da globalização. O que chamamos de homogeneização revela-se dominação, uma vez que a nova ordem mundial impõe também uma visão de mundo. O exemplo mais evidente deste processo é a imposição do inglês como idioma oficial do mundo globalizado. A língua inglesa torna-se língua franca, pois seria mais moderna, concisa, flexível. Essa visão simplista esconde a ideologia do imperialismo lingüístico, imposição alheia à autenticidade dos idiomas nacionais. A globalização não anula as contradições sociais e culturais, mas as reelabora e as amplia.


De quais indivíduos estamos ,então, falando?

Numa época em que racionalidade e competividade são palavras de ordem, como entender o sonho de uma nova ordem internacional que seja capaz de buscar novos rumos às questões ambientais e sociais?

Se a proposta de uma nova aliança entre a natureza e cultura aparece como utopia nas mais diversas sociedades, poderíamos falar em uma sensibilidade ecológica?

Seria esse o elo perdido que articularia essa difusa ordem a que estamos submetidos?

Não seria possível admitir essa sensibilidade ecológica que se confira hoje como uma carta de intenções se não reavaliarmos os valores da cidadania. É preciso construir um novo conceito de cidadania que ultrapasse o individualismo, um novo conceito de razão que ultrapasse a racionalidade técnica e a lógica do mercado, um novo conceito de desenvolvimento que admita as intrínsecas relações entre natureza e cultura. A natureza dá mostras de que estamos após as revoluções científicas a seus pés, o feitiço virou-se contra o feiticeiro. O antropocentrismo não cumpre sua promessa, desta forma o conceito de desenvolvimento sustentável não está apenas ligado às questões morais, do que deve ou não ser feito, mas se torna em si mesmo embrião de uma investigação ética que se pergunta o que é o homem, quais seus valores e os valores da sociedade que quer. Não se trata de retornar ao homem natural como quem sonha com a infância perdida, mas de pensar nas múltiplas possibilidades de reavaliar o desenvolvimento e nossas relações com o ambiente não mais como meio, mas como fim último e primeiro. A sociedade civil tem aí uma importante tarefa, devolver à humanidade à unidade perdida, não mais como domínio, mas como inter-relação.

O compromisso da sociedade civil e dos órgãos governamentais deve estar primeiramente ligado à educação. A filosofia nas escolas é, neste contexto, imprescindível se não quisermos entender a ética como comissão de especialistas aptos a prescrever o que se deve fazer e emitir juízos sem critérios razoáveis ou mesmo confundir a cidadania com ações filantrópicas.

“A reconquista de um grau de autonomia criativa num campo particular invoca outras reconquistas em outros campos. Assim toda uma catálise da retomada de confiança da humanidade em si mesma está para ser forjada passo a passo” (Félix Guatari).

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19 COMENTÁRIOS

1 Otacília Clotildes do Prado - Itapaci Goiás
Foi um presente ter encontrado este artigo. Gostei muito e com toda certeza me acrescentou bastante. Parabéns a Mestra Dalva Aparecida.
26/02/2013 17:50:05


2 edivania - Tapiramuta
Super interessante vai lhe ajudar mnuito ..,.
30/09/2011 16:22:29


3 Bruna - Crixás Go
eu estou estudando isso vou fazer um pequena pesquisa para mim tirar 10 ta gente muito obrigado por colocar esse programa nesse computador eu amlo vcs ! TÁ ...♥... ...♥... ...♥...
27/05/2011 08:38:16


4 Dulci - S.P
Obrigado, me ajudou muito esta matéria. Boa sorte a todos!
22/04/2011 14:33:38


5 Suylla Sampaio - CabedeloPB
Seu artigo foi muito bem escrito e mostrou a interligação entre o papel da sociedade quando falamos em Ética e Cidadania. De que adianta um diploma, mestrado, doutorado ou qualquer outra qualificação se estes não servirem para beneficiar a sociedade. Acredito que todas as pessoas que se beneficiaram de alguma forma com este sistema desigual deveria contribuir por uma sociedade menos desigual e mais justa. Meus parabéns pelo artigo, adorei e ganhei tempo lendoo.
12/04/2011 01:02:12


6 Sielene Catunda - Gama/DF
Esse artigo nos ajuda em muito a repensar uma Educação de Esperança e Solidariedade, principalmente nas salas de aulas e para a lida constante com nossos jovens.
27/12/2008 00:20:26


7 Josilene Reis - Candeias Ba
Gostei muito do seu artigo, ele foi de grande validade para a construção do meu trabalho. PARABENS.
16/08/2008 12:35:50


8 Graça Andrade - Salvador/Bahia
Excelente artigo, me fez refletir bastante sobre a educação no mundo contemporâneo e deu um subsídio maravilhoso para o meu trabalho de pósgraduação em psicopedagogia, você está de parabéns. Deus lhe dê mais inteligência para novas publicações. Uma abraço, Graça
13/08/2008 20:43:47


9 RENATA MOTA - Salvador
Seu artigo é maravilhoso, mim ajudou muito na minha apresentação de ética, não só a mim mas as outras colegas da equipe, meus parabéns e muito obrigada!DEUS te abençõe, beijos. DEUS TE AMA MUITO.
14/11/2007 19:29:04


10 Amanda Rosadas - Rio de Janeiro/Petropolis
Seu artigo e simplismente expecional! Me AJUDOU MUITO EM UM TRABALHO DE GEOGRAFIA! Muito obrigado alem de voce ter me ajudado a conquistar uma boa nota vc me fez parar e pensar em muitas questoes de nosso dia a dia.Que muitas vezes passam desapercebidas! obrigado!!
27/10/2007 13:22:49


11 Sérgio Paes - Belém
Depois de ter lido tal primoroso artigo agradeço por contribuir com minha formação academica, entendendo o comprometimento da autora com o social, trazendo para a reflexão a comunidade. Parabéns Sérgio Paes Academico de Direito Belém - Pará
10/08/2007 10:37:42


12 camila - Valença-BA
Achei o seu artigo,ótimo.Faço o curso normal aqui na minha cidade e percebo que realmente precisamos de tolerância,de paz entre nós mesmos,emfim,esse assunto precisa ser mais discutido,pois ele é imprescindível para uma boa convivência.
07/08/2007 15:34:23


13 Edna Quadros - Lisboa -Pt
Fantastico teu artigo! Afinal o homem construio um mundo em que ele não se encontra nele. E agora? Outro ponto importante entre outros.1-..." lingua inglesa visão simplista esconde a ideologia do imperialismo lingüístico, imposição alheia à autenticidade dos idiomas nacionais"( tenho dificuldade em aprender inglês exatamente por causa disto)2-..."compromisso da sociedade civil e dos órgãos governamentais deve estar primeiramente ligado à educação" Educação é a base !Estudante Mestrado em Gestão Cultural-Univ. Católica
24/06/2007 15:04:41


14 edna - salvador
muito interesssante
10/06/2007 21:39:52


15 Audení - Paulo Afonso - Ba
Estou cursando pegagogia , na unopar virtual (Universidade do Norte do Paraná). E temos assistido muito sobre esse assunto nas nossas tele-aulas e também através da leitura do material didático da mesma. Esse artigo só veio reforçar tudo que temos visto, ouvido e debatido em sala de aula. Sempre tive essa visão crítica e estou cada vez mais me encontrando no sentido de me tornar crítico-reflexivo e mais do que isso despertando para a verdadeira cidadania que deixa claro que precisamos dar o primeiro passo para que ocorra mudanças éticas.
10/06/2007 12:33:42


16 Lurds Oliveira - ponta Delgada/Açores
Parabéns por este delicioso artigo. Eu adorei a clareza como foram expostas todas as ideias e como ideia final gostaria de acrescentar que a EDUCAÇÃO continua a ser um tesouro por descobrir, como diz Jacques Delors. É ela que constitui a chave da saída do Homem da sua menoridade. Enquanto nós não percebermos e reconhecermos o seu verdadeiro valor, estaremos cada vez mais condenados a vivermos na nossa individualidade solitária e a contribuimos para o desaparecimento do Humano no Homem, dum planeta sem VIDA.
30/05/2007 07:31:07


17 amarildo gomes pereira - bauru
Acho que a humanidade se encontra diante de um grande desafio,tão,quanto resolver a questão do aquecimeto global - o problema de resgatar o humano no ser humano, que vem sendo consumido pela falta de valores, compaixão para com o próximo,etc.
08/05/2007 21:28:01


18 Emerson Aquino Tonirio - Porto Seguro - Ba
Fiquei muito admirado com esse assunto tão importante, que trata de realidades que afetam direta ou indiretamente ou seres humanos de um mudo geral. Mas a senhora ñ leva em concideração a questão espíritual do ser como ser pecador POR QUE?
21/04/2007 17:34:49


19 Lisete Pôrto - Taquari
Como educadora concordo que temos que trabalhar as questões filosóficas que levem os alunos a constante reflexão do seu papel no mundo e as suas possibilidades de transformação do mesmo. Cito a frase de Gabano/1985: “Ensinem as crianças a serem perguntadoras, para quê, pedindo os porquês dos que as mandam fazer, se acostumem a obedecer à razão; não à autoridade como os limitados, nem ao costume como os estúpidos”.
06/04/2007 23:49:37


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