Filosofando
Ética e Cidadania no mundo contemporâneo
Coluna Educação para o pensar
O século XXI trouxe em seu bojo uma série de promessas apocalípticas, assim como a profunda sensação de severas mudanças nas relações econômicas e sócio-culturais. Contemplamos essas mudanças na busca de diretrizes e de novos valores que possam redirecionar as múltiplas relações a que estamos submetidos e traçar um novo perfil de escola, de trabalho e de desenvolvimento social.
Não é de se admirar que nos últimos tempos todas as instituições passem por uma sensação de desorientação que integra tanto as perspectivas do futuro quanto as amarras do passado:
Como conciliar uma lógica de mercado marcada pela expansão e busca de lucros de forma desenfreada com o apelo à preservação da natureza e aos direitos humanos? Como tornar compatível a autonomia dos educadores e dos alunos exigida pelas novas orientações da LDB e pelas novas concepções do trabalho com as regras do mercado capitalista?
Em suma, poderíamos afirmar que o grande desafio da sociedade contemporânea é o estabelecimento de um compromisso que ultrapasse o âmbito do tecnicismo para afetar o âmbito do pessoal, do profissional e do social. Portanto, não basta desejar um perfil de sociedade com profissionais reflexivos e capazes de desfrutar de um grau maior de autonomia, é antes preciso favorecer a reflexão com o objetivo de desvincular os processos de atomização, corporativismo e individualismo que marcam a esfera da produção capitalista.
Ora, é certo que o individualismo é fruto das sociedades modernas. Se por um lado, a valorização do indivíduo livrou a humanidade dos entraves do dogmatismo religioso e abriu as portas para a conquista do desenvolvimento; por outro, transformou também a natureza em domínio e conquista e o humano em moeda de troca. Se a “globalização” religiosa, utopia que marcou os interesses da Igreja Católica em toda a Idade Média e legitimou os interesses políticos das chamadas “Cruzadas” falhou, a globalização econômica mostra, hoje, os sinais de sua força e legitima em nome da liberdade e do indivíduo a intolerância, a homogeneização dos valores, dos gostos e até da língua. Em nome da unidade se exerce o domínio e a conquista seja ela do mercado, dos valores ou da natureza.
Neste contexto, seria pertinente recuperar a noção de indivíduo, um dos principais pilares da ciência e da economia moderna. Se resgatarmos os primórdios da civilização ocidental e naufragarmos pelo Mediterrâneo em seu berço ou seja, a Grécia Antiga, veremos que a noção de indivíduo só tem sentido na esfera da vida privada, no domínio público se edifica a noção de cidadania.
Ser cidadão não é ser
único, mas ser a cidade, reconhecer-se nas leis da cidade e
compreendê-las. As idéias de BEM,
JUSTIÇA, VERDADE torna-se meta a ser atingida para o
bem-viver e a ética torna-se o esforço de
alcançar esses ideais...
A ética é busca do inteligível no sensível segundo Platão; a ética é o esforço de buscar a mediana, a busca da prudência, segundo Aristóteles. Em uma generalização grosseira, podemos afirmar que ética e cidadania grega são termos congruentes e não excludentes, a ética é trabalho de investigação racional para se alcançar o viver bem.
Ainda neste mesmo contexto, vale resgatar a noção de “phisis”. Para os primeiros filósofos compreender a “phisis” era compreender a ordem e a transformação presentes na natureza, compreender é buscar seu princípio, sua origem; é reconhecer a racionalidade inscrita no universo para fazer parte dela enquanto seres racionais. Dizia Heráclito que a própria natureza é “logos” que ama esconder-se. O Homem Grego buscava os princípios da “phisis” como quem buscava a si mesmo, o mundo era em si uno e múltiplo, bastava entendê-lo.
O mundo romano rompe as marcas desta unidade grega, a diversidade e domínio exigem regras e normas, a ética deixa de ser investigação e busca para tornar-se “mores”, costumes e leis, moral. O domínio público se dá na esfera do Direito, o homem está só e não confia no BEM, na JUSTIÇA ou na VERDADE, busca o viver cético ou estóico, temos aqui o embrião do indivíduo.
Tal embrião não pode e não deve se desenvolver no mundo cristão da Idade Média, a VERDADE ou a JUSTIÇA se reconhecem em Deus e para Deus, o homem é seu servo, na servidão e na busca de um BEM transcendente é que se busca a unidade perdida e se que se edifica uma moral que ultrapassa as regras porque incorpora a intencionalidade, não se peca apenas por atos, mas por atos e intenções.
Foi preciso ao homem moderno romper as amarras desta servidão para buscar o reconhecimento de si e da autonomia da razão. O homem torna-se medida de si, senhor de si, tudo pode e tudo faz. A unidade e a multiplicidade da “phisis” não pode mais ser reconhecida no divino, mas também não pode estar inscrita na ordem das coisas como previam os gregos. O mundo está desordenado, perdeu sua unidade religiosa com a Reforma Protestante, perdeu sua unidade política com a Revolução Inglesa e Francesa, perdeu seu eixo com a Revolução Copernicana. Só a racionalidade humana pode reordená-lo, não basta conhecer ou entender a natureza é preciso dominá-la, é preciso dividir, calcular, medir e transformar. O antropocentrismo não coloca apenas o homem como centro do universo, mas faz o universo girar em seu centro. Transformar implica em trabalho, em mercado e lucro. A natureza e o homem giram em torno do mercado e a ética a ele se curva. A busca da investigação ética se faz pela razão e promete a liberdade. Liberdade de compra e venda, liberdade para as leis do mercado, liberdade para a propriedade, liberdade para o INDIVÍDUO.
A unidade se dá no mercado e para o mercado, eliminam-se as fronteiras, temos um mundo globalizado. Somos livres e cidadãos do mundo, ou melhor, indivíduos do mundo, pois o mundo curva-se a nossos pés. Conquistamos a liberdade, a autonomia e a unidade prometidas, basta saber se a queremos e como a queremos.
Somos
cidadãos de um mundo globalizado? O mundo curva-se a nossos
pés?
De qual indivíduo
estamos falando?
A fim de respondermos estas complexas questões seria preciso nos debruçar no próprio conceito de globalização e em suas implicações. Segundo o geógrafo Milton Santos estamos diante de um novo paradigma de conhecimento da economia, da política, da ciência, da cultura, da informação e do espaço. Todavia, de uma forma geral podemos sintetizar algumas das características deste difuso processo:
1)A transnacionalização das instituições, ou seja, segundo alguns cálculos de organismos internacionais, atualmente um terço do total da atividade econômica mundial, transcende a possibilidade de intervenção de um só Estado. A atividade econômica está organizada de uma forma que impede sua regulamentação. A economia torna-se autônoma frente à política, como previa Locke. O resultado da política dos consórcios transnacionais é a especulação monetária.
2)A desterritorialização, derivada do processo
anteriormente citado, nos impede de ver um único
espaço como centro de decisões não
apenas na esfera da economia, mas do social, do cultural e do
político. O resultado é um crescente sentimento
de solidão que envolve indivíduos e segmentos
sociais. Mas o contraponto também é verdadeiro,
uma vez que a internacionalização da
mídia impõe valores e padrões que
deixam pouco espaço para a autoconsciência.
“O mundo não é apenas, ou principalmente, uma coleção de estados centrais e periféricos, arcaicos e modernos, agrários e industrializados, coloniais ou associados, dependentes e independentes, ocidentais e orientais, reais e imaginários. As nações se transformaram em espaços, territórios ou elos da sociedade global” segundo Otávio Ianni.
Como entender tal processo?
Vejamos
apenas dois exemplos da necessidade de pensar a
globalização.
O primeiro diz respeito à formação
dessa nova configuração, a
proliferação de novas
nações provoca o acirramento das
diferenças religiosas e étnicas, uma vez que as
mesmas não tiveram o amadurecimento do processo
histórico que lhes permitiria assimilar as
diferenças.
O segundo diz respeito aos desafios da sociedade global que afetam a humanidade, como as catástrofes ecológicas, a emissão do gás carbônico, o efeito estufa, a desertificação das áreas férteis, o estoque de reservas não renováveis de energia e outros. Apenas estes dois exemplos tornam malograda a promessa de uma razão capaz de libertar e de uma humanidade que coloca o mundo a seus pés. O preço da ousadia no primeiro caso é a intolerância, no segundo é a própria ameaça de término das condições de toda e qualquer existência de vida, seja humana ou não.
Resta-nos ainda a questão da liberdade do indivíduo, tão cara na configuração do que denominamos “Modernidade”. O avanço do capitalismo mundial fez o Estado do Bem Estar Social perder a hegemonia para o neoliberalismo, enfraquecendo as economias nacionais. O capitalismo irrompe alterando as instituições econômicas, políticas e sociais, todavia esse processo de homogeneização não diminui as desigualdades sociais; ao contrário, grandes contingentes populacionais têm ficado à margem dos benefícios da globalização. O que chamamos de homogeneização revela-se dominação, uma vez que a nova ordem mundial impõe também uma visão de mundo. O exemplo mais evidente deste processo é a imposição do inglês como idioma oficial do mundo globalizado. A língua inglesa torna-se língua franca, pois seria mais moderna, concisa, flexível. Essa visão simplista esconde a ideologia do imperialismo lingüístico, imposição alheia à autenticidade dos idiomas nacionais. A globalização não anula as contradições sociais e culturais, mas as reelabora e as amplia.
De quais indivíduos
estamos ,então, falando?
Numa época em que racionalidade e competividade são palavras de ordem, como entender o sonho de uma nova ordem internacional que seja capaz de buscar novos rumos às questões ambientais e sociais?
Se a proposta de uma nova aliança entre a natureza e cultura aparece como utopia nas mais diversas sociedades, poderíamos falar em uma sensibilidade ecológica?
Seria esse o elo perdido que articularia essa difusa ordem a que estamos submetidos?
Não seria possível admitir essa sensibilidade ecológica que se confira hoje como uma carta de intenções se não reavaliarmos os valores da cidadania. É preciso construir um novo conceito de cidadania que ultrapasse o individualismo, um novo conceito de razão que ultrapasse a racionalidade técnica e a lógica do mercado, um novo conceito de desenvolvimento que admita as intrínsecas relações entre natureza e cultura. A natureza dá mostras de que estamos após as revoluções científicas a seus pés, o feitiço virou-se contra o feiticeiro. O antropocentrismo não cumpre sua promessa, desta forma o conceito de desenvolvimento sustentável não está apenas ligado às questões morais, do que deve ou não ser feito, mas se torna em si mesmo embrião de uma investigação ética que se pergunta o que é o homem, quais seus valores e os valores da sociedade que quer. Não se trata de retornar ao homem natural como quem sonha com a infância perdida, mas de pensar nas múltiplas possibilidades de reavaliar o desenvolvimento e nossas relações com o ambiente não mais como meio, mas como fim último e primeiro. A sociedade civil tem aí uma importante tarefa, devolver à humanidade à unidade perdida, não mais como domínio, mas como inter-relação.
O compromisso da sociedade civil e dos órgãos governamentais deve estar primeiramente ligado à educação. A filosofia nas escolas é, neste contexto, imprescindível se não quisermos entender a ética como comissão de especialistas aptos a prescrever o que se deve fazer e emitir juízos sem critérios razoáveis ou mesmo confundir a cidadania com ações filantrópicas.
“A reconquista de um grau de autonomia criativa num campo particular invoca outras reconquistas em outros campos. Assim toda uma catálise da retomada de confiança da humanidade em si mesma está para ser forjada passo a passo” (Félix Guatari).