Os Nomes da Trissomia 21: de Exclusão a Inclusão? - 31/05/2007
Ubiratan Garcia Vieira
No momento de dar o diagnóstico aos pais, o médico usa a designação Síndrome de Down “como uma estratégia à introjeção/realização do diagnóstico”, escreve Maria Helena Cardoso da Fundação Oswaldo Cruz, desta forma “opondo ao vulgar ‘mongolismo’ a denominação médica/científica da Síndrome”1.
Trata-se de uma designação científica,
pois usa o sobrenome do médico inglês John Langdon
H. Down, que em 1866 publicou a primeira possível
explicação científica para a
trissomia21. Uma explicação, como muitas da
época, refutada na atualidade. Propunha também um
sistema de classificação para aquilo que, na
sociedade inglesa do século XIX, se agrupava sob a categoria
de “lesões mentais congênitas”.
Não era apenas sua preocupação justificar a reclusão das diferentes pessoas no asilo Earlswood , onde era médico-supervisor. O esclarecimento aos pais fazia parte de seus objetivos de pesquisa. “Poderá o sistema de classificação”, escreveu Down, “assistir o conselheiro médico na opinião que há de apresentar ou as sugestões que há de oferecer aos pais ansiosos?”2.
Entretanto, parece-me que algo falta a esta explicação da homenagem ao descobridor para a designação Síndrome de Down. Naquele artigo Down designou a trissomia21 de “tipo mongólico de idiotia” e não de “Síndrome de Down”. Sua hipótese era que existia um fator étnico relacionado ao que era percebido por ele e outros médicos de sua época como diferentes tipos de “lesões mentais congênitas”2.
A hipótese de J.L.H. Down tem de ser situada no seu contexto que é o do surgimento da eugenia. Uma ciência sustentada por teorias racistas e evolucionistas, que tinha por objetivo a criação de uma raça humana pelo controle seletivo da natalidade.
Definem-se critérios para decidir quem tem e quem não tem direito a procriar, quem tem e quem não tem direito à vida. Nesse mesmo contexto, ocorre a exploração desumana de mão de obra nas fábricas inglesas, levando pensadores, como Marx, ao questionamento das formas de trabalho e produção.
A primeira congregação internacional sobre o socialismo ocorreu na cidade de Londres em 1864. Mas, a crescente massa de trabalhadores e a crescente deterioração de suas condições de vida, promoveram também uma preocupação eugenista: a degeneração da espécie humana.
Sustentando esta infeliz tese da degeneração da espécie humana, está a percepção vitoriana sobre hereditariedade. Escrevendo sobre o contexto da publicação do artigo de J.L.H. Down, Thomas E. Jordan afirma que, “[p]ara os vitorianos, qualquer que fosse o traço adquirido seria provavelmente transmitido para as futuras gerações”3.
Assim, a ocorrência de fenômenos tão distintos como doenças, deficiências e crimes – indícios de uma crise social marcada pela insalubridade pública e a exploração social exacerbada – eram percebidas como causas potenciais de uma possível degeneração biológica da espécie. Para J.L.H. Down, a trissomia21 era um indício dessa degeneração.
“O aspecto do rapaz é tal, que é difícil de acreditar que é um filho de europeus”, escreve J.L.H. Down sobre um de seus pacientes, “mas tão freqüentemente se apresentam estas características, que não há dúvida que estes aspectos étnicos são o resultado de degeneração”2.
Então, para J.L.H. Down, a possibilidade de um casal de europeus gerarem um filho com “lesões mentais congênitas” e traços da chamada raça mongólica caracterizava esse suposto processo de degeneração da espécie humana. Como fator causal da trissomia21, J.L.H. Down apontava a tuberculose dos genitores, doença que era também a principal causa de óbito entre seus pacientes confinados no asilo, excluídos e estigmatizados pela sociedade.
As teses originais de J.L.H. Down não têm qualquer respaldo da comunidade científica nos dias atuais. A incidência de tuberculose deve ser entendida dentro de um contexto em que as condições de salubridade eram propícias ao seu quadro epidemiológico, atingindo seletivamente a população de pessoas com trissomia21 naquele ambiente de confinamento do asilo Earlswood. Por outro lado, desde 1959 a correlação racial não se sustenta frente às evidências da pesquisa citogenética.
Nesse ano, Jérome Lejeune, um pesquisador francês, apresenta a não disjunção dos cromossomos do par 21 na geração de um espermatozóide ou óvulo como fator condicionante da trissomia21. Na fecundação, a fundição deste espermatozóide ou óvulo com outro espermatozóide ou óvulo resulta na geração de células com 22 pares de cromossomos e um trio.
Um a mais no par 21. Comprova J. Lejeune desta forma que, contrariamente à hipótese de Down, a trissomia21 estava relacionada a um processo diferente de divisão celular na própria gênese do indivíduo, sem qualquer relação com distinções de raça.
Apesar da explicação de J. Lejeune derrubar a hipótese de Down em 1959, a comunidade científica não abandonou de imediato o termo mongolismo. O próprio J. Lejeune ainda publica dois artigos na década de 1960 constando no título mongolismo para designar a trissomia21. Isto tendo ele assinado, junto com outros pesquisadores de renome, uma carta publicada no periódico The Lancet em 1961, incitando à comunidade científica a abandonar o termo mongolismo.
Outro acontecimento contra o uso do termo mongolismo também não teve a repercussão que teria se ocorresse hoje: na 8ª Assembléia da Organização Mundial da Saúde um representante da delegação da Mongólia “demandou informalmente ao diretor geral da OMS que este termo ofensivo deveria ser evitado no futuro”4. O termo mongolismo foi de uso corrente no vocabulário especializado internacional até 1975, quando a Medline passou a indexar as publicações pelo termo Síndrome de Down.
No Brasil encontramos este termo ainda em 1988, quando foi publicada a segunda edição de Mongolismo – orientação para as famílias, um livro de referência que ironicamente foi projetado para ser lido por familiares de pessoas com trissomia21.
Qual é o leque de sentidos que o uso da linguagem acarreta? Refletir sobre a linguagem é uma forma de se apropriar dela e essa reflexão ocorre entre nós familiares que amiúde nos queixamos da forma como muitos médicos nos informam sobre a trissomia21 do filho ou da filha.
Recentemente, o termo aberração cromossômica entrou em discussão numa lista de e-mail da qual participo. A validade do uso do termo dividiu nossas opiniões entre denotação e conotação. Isto é, entre a denotação do que acontece com os cromossomos nos processos de divisão celular e as conotações pejorativas que o termo aberração acarreta.
Mas, é possível separar denotação de conotação quando o que é dito nos fere e ofende? Se aberração é pejorativo no sentido parental, porque profissionais de saúde usariam o termo se disso se dessem conta?
Um significante que num contexto se apresenta como despido de preconceitos, noutro se apresenta como estandarte de valores que dificilmente admitiríamos publicamente. O termo mongolismo, usado para designar a trissomia21 um século atrás, caiu em desuso no meio biomédico ao ser confrontado a um contexto social, onde a percepção crítica dos valores racistas e eugenistas faz com que se adscreva ao termo mongolismo um sentido pejorativo.
Assim, com a designação Síndrome de Down, os médicos e demais profissionais de saúde pretendem promover nas mães e nos pais o abandono das crenças vulgares e do estigma social do retardo mental que herdaram da ciência passada.
Adotar outra forma de designação implica em adotar uma abordagem científica atualizada e os melhores procedimentos clínicos e terapêuticos. Desta forma, as mães e pais podem contribuir para que estes procedimentos sejam seguidos e a criança possa aproveitar o conhecimento científico para ganhar autonomia.
A rejeição da noção de mongolismo, cunhada pela hipótese de J.L.H. Down, representa um avanço significativo e aponta para outras direções. Ora, é por romper com a herança racista e eugenista que o uso da designação Síndrome de Down me parece tão paradoxal.
Referências Bibliográficas:
1 CARDOSO, M. H. Uma produção de significados sobre a síndrome de Down. Cad. Saúde Pública, v.19, n.1, p. 101-9. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2003000100011&lng=en&nrm=iso> Acessado em: 17/05/2007.
2 DOWN, J. L. Observations on an ethnic classification of idiots. London Hospital Reports, v.3, p.259-262. 1866.Disponível em: <http://www.neonatology.org/classics/down.html> Acessado em: 17/05/2007.
3 JORDAN, T. E. Down`s (1866) essay and its sociomedical context. Mental Retardation, v.38, n.4, Ago, p.322-9. 2000.
4 HOWARD-JONES, N. On the diagnostic term “Down`s disease”. Medical History, v.23, n.1, p.102-104. 1979.
1 Leandro Becker - Porto Alegre
Meu comentário será extremamente objetivo e curto: "A inclusão deve começar na família, na vizinhança, na área da saúde. Enquanto o sujeito que for portador de "mongolismo", "síndrome de down" ou "Pessoa Portadora de Deficiência" tiver sido discriminado, não haverá inclusão.
25/06/2007 14:23:22
2 Elisa Helena Maya Fruet - Brasília
Excelente reflexão. Chamou minha atenção principalmente a observação quanto ao pedido feito pelo representante da Mongólia na a Assembléia da Organização MUndial da Saúde: " um representante da delegação da Mongólia “demandou informalmente ao diretor geral da OMS que este termo ofensivo deveria ser evitado no futuro”. O pedido pode ser lido de duas maneiras e pergunta que fica é: ofensivo para quem? Seria considerado ofensivo pelos que nascem na Mongólia, por serem associados a quem tem Síndrome de Down? Mas então, os próprios cidadãos mongóis estavam registrando seu preconceito para com as pessoas com Síndrome de Down, por se sentirem associados com quem tem alguma discapacidade.Ou seria ofensivo a quem tem Síndrome de Down por serem comparados aos nascidos na Mongólia - e afinal, quem são estes mongóis, se não os tais que popularmente são conhecidos como os que antigamente andaram invadindo meio mundo de forma muito truculenta e sanguinária?... Por outro lado, esta reflexão sem dúvida nos remete à questão muito recente que tem a ver com o progresso científico-tecnológico, principalmente na área médica, e as possibiliddades que estão disponíveis para que se tenha muitas informações sobre o feto e seu desenvolvimento, sabendo-se desde muito precocemente quando um bebê, no útero materno, apresenta algum tipo de problema ou característica especial(vide o teste através de amniocentese, disponível há muito tempo). Estaríamos com todos os instrumentos científicos à disposição para entrar numa nova fase de eugenia? Francamente, isto me deixa, no mínimo, muito confusa e não consigo me posicionar muito claramente em relação ao tema. Acaso vocês teriam algumas referências interessantes sobre este assunto?
04/06/2007 18:35:04
3 Cristina Maria Brumatti Bertotto - Dourados/MS
As deficiências, de modo geral, ainda são vistas com preconceitos. As pessoas tem medo do que é diferente, se esquecem que todos somos seres humanos, independente da forma como nos aparecemos. A raiz de tudo continua sendo a ignorância de quem somos, pois refletimos nos outros o que somos. Na minha modesta opinião, o autoconhecimento melhoraria as relações humanas. Dentro da área médica e educacional, inclusive.
Ótimo artigo. Parabéns ao autor!
03/06/2007 19:18:46
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