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Aprender com as Diferenças

Ubiratan Garcia Vieira Sociólogo e Lingüista. Pesquisador do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0390685754504716

Os Nomes da Trissomia 21: de Exclusão a Inclusão?
Ubiratan Garcia Vieira

No momento de dar o diagnóstico aos pais, o médico usa a designação Síndrome de Down “como uma estratégia à introjeção/realização do diagnóstico”, escreve Maria Helena Cardoso da Fundação Oswaldo Cruz, desta forma “opondo ao vulgar ‘mongolismo’ a denominação médica/científica da Síndrome”1


Trata-se de uma designação científica, pois usa o sobrenome do médico inglês John Langdon H. Down, que em 1866 publicou a primeira possível explicação científica para a trissomia21. Uma explicação, como muitas da época, refutada na atualidade. Propunha também um sistema de classificação para aquilo que, na sociedade inglesa do século XIX, se agrupava sob a categoria de “lesões mentais congênitas”.

Não era apenas sua preocupação justificar a reclusão das diferentes pessoas no asilo Earlswood , onde era médico-supervisor. O esclarecimento aos pais fazia parte de seus objetivos de pesquisa. “Poderá o sistema de classificação”, escreveu Down, “assistir o conselheiro médico na opinião que há de apresentar ou as sugestões que há de oferecer aos pais ansiosos?”2.

Entretanto, parece-me que algo falta a esta explicação da homenagem ao descobridor para a designação Síndrome de Down. Naquele artigo Down designou a trissomia21 de “tipo mongólico de idiotia” e não de “Síndrome de Down”. Sua hipótese era que existia um fator étnico relacionado ao que era percebido por ele e outros médicos de sua época como diferentes tipos de “lesões mentais congênitas”2.

A hipótese de J.L.H. Down tem de ser situada no seu contexto que é o do surgimento da eugenia. Uma ciência sustentada por teorias racistas e evolucionistas, que tinha por objetivo a criação de uma raça humana pelo controle seletivo da natalidade. 

Definem-se critérios para decidir quem tem e quem não tem direito a procriar, quem tem e quem não tem direito à vida. Nesse mesmo contexto, ocorre a exploração desumana de mão de obra nas fábricas inglesas, levando pensadores, como Marx, ao questionamento das formas de trabalho e produção. 

A primeira congregação internacional sobre o socialismo ocorreu na cidade de Londres em 1864. Mas, a crescente massa de trabalhadores e a crescente deterioração de suas condições de vida, promoveram também uma preocupação eugenista: a degeneração da espécie humana.

Sustentando esta infeliz tese da degeneração da espécie humana, está a percepção vitoriana sobre hereditariedade. Escrevendo sobre o contexto da publicação do artigo de J.L.H. Down, Thomas E. Jordan afirma que, “[p]ara os vitorianos, qualquer que fosse o traço adquirido seria provavelmente transmitido para as futuras gerações”3

Assim, a ocorrência de fenômenos tão distintos como doenças, deficiências e crimes – indícios de uma crise social marcada pela insalubridade pública e a exploração social exacerbada – eram percebidas como causas potenciais de uma possível degeneração biológica da espécie. Para J.L.H. Down, a trissomia21 era um indício dessa degeneração.

“O aspecto do rapaz é tal, que é difícil de acreditar que é um filho de europeus”, escreve J.L.H. Down sobre um de seus pacientes, “mas tão freqüentemente se apresentam estas características, que não há dúvida que estes aspectos étnicos são o resultado de degeneração”2

Então, para J.L.H. Down, a possibilidade de um casal de europeus gerarem um filho com “lesões mentais congênitas” e traços da chamada raça mongólica caracterizava esse suposto processo de degeneração da espécie humana. Como fator causal da trissomia21, J.L.H. Down apontava a tuberculose dos genitores, doença que era também a principal causa de óbito entre seus pacientes confinados no asilo, excluídos e estigmatizados pela sociedade.

As teses originais de J.L.H. Down não têm qualquer respaldo da comunidade científica nos dias atuais. A incidência de tuberculose deve ser entendida dentro de um contexto em que as condições de salubridade eram propícias ao seu quadro epidemiológico, atingindo seletivamente a população de pessoas com trissomia21 naquele ambiente de confinamento do asilo Earlswood. Por outro lado, desde 1959 a correlação racial não se sustenta frente às evidências da pesquisa citogenética. 

Nesse ano, Jérome Lejeune, um pesquisador francês, apresenta a não disjunção dos cromossomos do par 21 na geração de um espermatozóide ou óvulo como fator condicionante da trissomia21. Na fecundação, a fundição deste espermatozóide ou óvulo com outro espermatozóide ou óvulo resulta na geração de células com 22 pares de cromossomos e um trio. 

Um a mais no par 21. Comprova J. Lejeune desta forma que, contrariamente à hipótese de Down, a trissomia21 estava relacionada a um processo diferente de divisão celular na própria gênese do indivíduo, sem qualquer relação com distinções de raça.

Apesar da explicação de J. Lejeune derrubar a hipótese de Down em 1959, a comunidade científica não abandonou de imediato o termo mongolismo. O próprio J. Lejeune ainda publica dois artigos na década de 1960 constando no título mongolismo para designar a trissomia21. Isto tendo ele assinado, junto com outros pesquisadores de renome, uma carta publicada no periódico The Lancet em 1961, incitando à comunidade científica a abandonar o termo mongolismo

Outro acontecimento contra o uso do termo mongolismo também não teve a repercussão que teria se ocorresse hoje: na 8ª Assembléia da Organização Mundial da Saúde um representante da delegação da Mongólia “demandou informalmente ao diretor geral da OMS que este termo ofensivo deveria ser evitado no futuro”4. O termo mongolismo foi de uso corrente no vocabulário especializado internacional até 1975, quando a Medline passou a indexar as publicações pelo termo Síndrome de Down

No Brasil encontramos este termo ainda em 1988, quando foi publicada a segunda edição de Mongolismo – orientação para as famílias, um livro de referência que ironicamente foi projetado para ser lido por familiares de pessoas com trissomia21.

Qual é o leque de sentidos que o uso da linguagem acarreta? Refletir sobre a linguagem é uma forma de se apropriar dela e essa reflexão ocorre entre nós familiares que amiúde nos queixamos da forma como muitos médicos nos informam sobre a trissomia21 do filho ou da filha. 

Recentemente, o termo aberração cromossômica entrou em discussão numa lista de e-mail da qual participo. A validade do uso do termo dividiu nossas opiniões entre denotação e conotação. Isto é, entre a denotação do que acontece com os cromossomos nos processos de divisão celular e as conotações pejorativas que o termo aberração acarreta. 

Mas, é possível separar denotação de conotação quando o que é dito nos fere e ofende? Se aberração é pejorativo no sentido parental, porque profissionais de saúde usariam o termo se disso se dessem conta?

Um significante que num contexto se apresenta como despido de preconceitos, noutro se apresenta como estandarte de valores que dificilmente admitiríamos publicamente. O termo mongolismo, usado para designar a trissomia21 um século atrás, caiu em desuso no meio biomédico ao ser confrontado a um contexto social, onde a percepção crítica dos valores racistas e eugenistas faz com que se adscreva ao termo mongolismo um sentido pejorativo. 

Assim, com a designação Síndrome de Down, os médicos e demais profissionais de saúde pretendem promover nas mães e nos pais o abandono das crenças vulgares e do estigma social do retardo mental que herdaram da ciência passada. 

Adotar outra forma de designação implica em adotar uma abordagem científica atualizada e os melhores procedimentos clínicos e terapêuticos. Desta forma, as mães e pais podem contribuir para que estes procedimentos sejam seguidos e a criança possa aproveitar o conhecimento científico para ganhar autonomia.

A rejeição da noção de mongolismo, cunhada pela hipótese de J.L.H. Down, representa um avanço significativo e aponta para outras direções. Ora, é por romper com a herança racista e eugenista que o uso da designação Síndrome de Down me parece tão paradoxal.

Referências Bibliográficas:

1 CARDOSO, M. H. Uma produção de significados sobre a síndrome de Down. Cad. Saúde Pública, v.19, n.1, p. 101-9. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2003000100011&lng=en&nrm=iso> Acessado em: 17/05/2007.

2 DOWN, J. L. Observations on an ethnic classification of idiots. London Hospital Reports, v.3, p.259-262. 1866.Disponível em: <http://www.neonatology.org/classics/down.html> Acessado em: 17/05/2007.

3 JORDAN, T. E. Down`s (1866) essay and its sociomedical context. Mental Retardation, v.38, n.4, Ago, p.322-9. 2000.

4 HOWARD-JONES, N. On the diagnostic term “Down`s disease”. Medical History, v.23, n.1, p.102-104. 1979.

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