Natal no Morro - 20/12/2017
João Luís de Almeida Machado
A chuva cai torrencialmente lá fora. O calor exasperante do verão brasileiro tem alguns minutos de trégua quando São Pedro decide abrir as comportas. Quase toda a tarde é assim e, naquele bairro simples, construído de forma aleatória, num destes inúmeros morros que ladeiam as grandes cidades do país. É nesta hora que as crianças, descalças ou com sandálias de borracha, saem pelas ruas para se refrescar, chutar poças d’água e se divertir com seus pares. Em momentos assim a pobreza e a vida simples daquele misto de favela e cortiço são esquecidas e, a contagiante e espontânea alegria das crianças atinge toda a comunidade.
Dezembro chegou e, com o mês que finda o ano, também a publicidade de Natal se espalha por outdoors, anúncios nos jornais, propagandas em rádio e televisão a anunciar todo o tipo de produto, em especial brinquedos a despertar a atenção e o desejo das crianças.
Mas neste bairro pobre, o Morro do Jacaré, no qual as crianças brincam com latas, caixas de papelão e qualquer outro tipo de sucata retirado do lixo dos condomínios estabelecidos ali ao lado, não passam de sonhos os brinquedos anunciados de forma tão enfática por toda a cidade.
Os pais até tentam comprar algum presente para seus filhos, mas o desemprego e o subemprego são realidades estabelecidas por ali, por isso o dinheiro é curto, cobrindo apenas aquilo que é essencial, em especial o pão de cada dia.
Ter comida na mesa de Natal já é, por si só, um luxo para muitos moradores dali. Isso não arrefece a fé e a esperança em dias melhores. Os padres e pastores que por ali trabalham, na contramão de todo a propaganda, tentam explicar o verdadeiro sentido de uma das maiores festividades religiosas para a população local. Encontram eco entre as mulheres e algumas crianças, muitos estão, no entanto, desistindo de acompanhar as cerimônias religiosas e continuam indo somente para conseguir alguma coisa para comer após as missas ou cultos. Há vários deles que se fazem presentes em 2 ou 3 igrejas ali estabelecidas somente para encher a barriga.
Quem, muitas vezes, faz as vezes de Papai Noel são os traficantes que dominam a distribuição de drogas e armas na região. Para arregimentar moradores e usar as crianças e adolescentes na venda de seus “produtos”, pagam por serviços realizados e dão presentes de Natal para quem os ajuda. Muitos moradores já se deram conta do risco que correm e, por conta própria, apesar dos riscos e do medo, deixaram de colaborar com o tráfico.
Cientes de que sua popularidade não é grande na localidade, os marginais têm se omitido do bairro e da distribuição de bonecas e bolas entre as crianças. Apesar da aparente perda para sua comunidade, as famílias preferem ficar sem os presentes porque assim também se livram da bandidagem.
Neste cenário desolador até mesmo as luzes de Natal parecem inexistir... Os postes de luz funcionam de forma precária, há muitos “gatos” a buscar energia para os casebres dali; o dinheiro contado mal dá para pagar a conta de luz, quanto menos de colocar luzes coloridas na fachada ou nas pobres habitações em que os cômodos mal são divisados. Árvore de Natal é algo que poucos ali conhecem na prática, somente tendo visto uma delas em fotos, na televisão ou em bairros nobres da cidade.
Ainda assim os pequenos Luís, Janaína e Débora aguardam o milagre de Natal. Como eles, toda a turma de pequenos do Morro do Jacaré observa atentamente a cada novo dia de dezembro, no início da noite, na linha do horizonte, para ver se as tais luzes se acendem para eles.
Estas crianças têm entre 5 e 8 anos e, apesar da vida dura em seu entorno, da rudeza que rege as relações humanas por ali, ainda guardam dentro de si toda a candura da infância que os faz acreditar que o nascimento do menino Jesus carrega, em si, o milagre do nascimento que irá fazer florescer um ano novo melhor para todos eles.
Os padres e pastores que circulam pela região é que contaram para eles, de forma diversa, o que a vinda daquele menino representou para o mundo. Cada uma daquelas crianças, por sua vez, alimentou fantasias próprias e misturou religião com o imaginário do Natal vendido pelos anúncios com os quais têm contato quando circulam pelas ruas da cidade em busca de alguns trocados para ajudar suas famílias.
Quase todos os anos alguém aparece, de última hora que seja, trazendo brinquedos novos ou usados, roupas e alimentos que são dados para as famílias dali e, com isso, para aquelas crianças parece que o sonho do Natal Cristão se realizou mais uma vez.
A crise que assola o país, neste ano, no entanto, diminuiu ao longo dos meses, a doação de cestas básicas e a procura por mão de obra local para serviços nas casas dos bairros de classe média ou alta. Isso fez com que as crianças passassem a esmolar de forma mais constante pelas ruas da cidade, muitas delas dormindo ao relento com o cair da noite, afastadas de seus pais.
O drama da pobreza alimentou, por sua vez, os vícios entre os adultos, e com eles, a violência e os abandonos. Muitos homens evadiram e as dificuldades se tornaram ainda maiores para tantas famílias dali. Aqueles que ficaram se tornaram mais céticos quanto à possibilidade de que doações viessem a acontecer neste Natal. Menos as crianças, que até o último momento continuaram a acreditar...
Janaína, a mais velha dos irmãos da família Souza, todas as noites canta para os irmãos e vizinhos, do alto de seus 9 anos incompletos, algumas músicas natalinas que aprendeu com o pai, um jovem e habilidoso marceneiro que permanece na região e que, apesar de seus reconhecidos dotes profissionais, viu neste ano minguar o serviço que o ajudava a ter uma vida mais digna.
Débora e Luís, que tem 5 e 4 anos, respectivamente, correm de um lado para outro, com brinquedos imaginários, criados com caixas de leite ou latas de óleo, a sonhar com bonecas e carrinhos iguais aos de outras crianças que observam em casas e escolas das regiões de melhor renda na cidade em que vivem. Eles não têm maldade no coração e a inveja ainda não os amargurou ou os fez ter raiva da vida, dos pais ou de Deus, como alguns adultos, inconformados com sua existência miserável.
O problema é que já é véspera de Natal e até agora, nenhum sinal das pessoas que todos os anos chegam ao morro com os presentes e alimentos para a ceia neste dia tão especial. Talvez as luzes e a magia do Natal não existam mais, pensam algumas crianças. Pode ser que o menino Jesus tenha esquecido de nós, perdidos neste morro afastado de tudo e de todos como estamos. Pode ser que não tenhamos merecido nenhum presente este ano...
A noite cai e, com ela, chega a desesperança que faz com que a tristeza possa ser percebida nas lágrimas que escorrem dos olhos de Janaína, Débora e Luís... seus pais e o de todas as outras crianças do morro mal tem o que oferecer para suas famílias como alimento nesta noite que deveria ser feliz...
É neste momento que uma profusão de luzes se anuncia naquela noite escura. Uma caravana de veículos segue em direção ao Morro do Jacaré sem que ninguém saiba ao certo quem está a caminho. Pode ser a polícia a perseguir traficantes que fugiram recentemente de uma cadeia próxima... E se forem os bandidos que querem ali se alojar para fugir das autoridades?
Quando os carros chegam, no entanto, o que se vê são pessoas fantasiadas de Papai e Mamãe Noel, várias delas, que saem dos veículos e que rapidamente montam uma mesa com comida farta, montam um belo presépio, tocam instrumentos, convidam as pessoas do bairro para se juntar a elas, fazem algumas orações e iniciam a distribuição de presentes para as crianças. Começa então uma festa inesquecível para quem distribui os presentes e para quem recebe, algo que para sempre irá perdurar na memória de Débora, Luís e Janaína... Tanto que, anos depois, já adultos, tendo superado a pobreza, todos os anos passam a realizar ações semelhantes em alguns dos mais carentes bairros das cidades em que vivem e alimentam, desta forma, o espírito de Natal.
# Assistentes de voz, amigos imaginários e grilos falantes...
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