Bauman e as incertezas da modernidade líquida em que vivemos - 02/02/2017
João Luís de Almeida Machado
"No geral, podemos dizer que 15 anos depois da publicação de Modernidade Líquida, a nova era, ainda incipiente e pouco percebida em meio a 30 anos de orgia consumista, de gastar dinheiro não ganho e de viver o pouco tempo que resta em novos bairros já moribundos está chegando à sua total fruição: estamos vivendo à sombra de suas consequências. E isso significa incerteza existencial, medo do futuro, uma perpétua ansiedade e uma sensação de urgência sem fim, com a primeira geração do pós-guerra sentindo a queda do nível de bem-estar social conseguido por seus pais e, na vida pública, a perda total de confiança na capacidade dos governos cumprirem suas promessas e o dever de proteger os direitos dos cidadãos e atender aos seus interesses. O fim desta confiança engendra, por outro lado, um ambiente em que ‘ninguém assume o controle’, em que os assuntos do estado e seus sujeitos estão em queda livre, e prever com alguma certeza que caminho seguir, sem falar em controlar o curso dos acontecimentos, transcende a capacidade humana individual e coletiva." (Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, autor do conceito de Modernidade Líquida. Trecho de entrevista concedido ao jornal "O Estado de São Paulo")
A morte de Bauman, aos 91 anos, no início de 2017, encerra o seu ciclo de vida mas evidencia sua obra e contribuição para a análise de um mundo em mutação. E ao se referir as mudanças em curso, Bauman não enaltece as conquistas do homem, suas vitórias, a tecnologia de informação e comunicação e suas possibilidades. Seu olhar é crítico. Há a percepção das incertezas, da ansiedade, da urgência que toma conta de todos, da perda de confiança na humanidade, na quebra de fronteiras que não traz mais espaço e conhecimento, mas demonstra a fome, a ganância, o consumismo, a disputa por território.
A modernidade líquida de Bauman se refere a fatos concretos. A uma onda conservadora que consolida governos belicistas, de direita agora, de esquerda até alguns meses ou anos atrás. Não há respostas, as lideranças são escassas, a crise econômica bate a porta de ricos e pobres em diferentes momentos, a concentração de renda em todos os lugares é cada vez maior, os oprimidos reagem com violência, mas sem saber exatamente o que querem, para onde ir ou a quem recorrer.
A crise afeta a cultura, o conhecimento, a academia e a inteligência. Não há tempo para reflexões e busca de respostas firmes. Demandam-se soluções imediatas.
Não vivemos mais entre amigos. Temos contatos, pessoas que podem abrir portas para nós.
Todos hoje são vendedores de algo. Vendem produtos, serviços, ideias e sua força de trabalho.
As horas não nos pertencem. Por conta das “necessidades” que temos, imputadas pela mídia, pelas redes sociais, por nossos conhecidos, na busca de uma hipotética felicidade que se esgota rapidamente, o trabalho exige cada vez mais das pessoas.
Ser produtivo é a ordem, senão a lei, quiçá a regra universal a ser validada por corporações, governos e até mesmo pelas lideranças religiosas, se é que elas ainda têm tanto alcance e repercussão.
Buscamos receitas prontas para a ansiedade, o stress, o caos urbano, as enfermidades deste mundo, no entanto até os medicamentos que usamos são paliativos para tais dores e os diagnósticos dos doutores de jaleco branco parecem distantes daquilo que é realmente o quadro alarmante de epidemias cada vez maiores, a doença coletiva é igualmente líquida e a imprecisão nas prescrições associa-se a confusão dessa massa amorfa...
Bauman foi-se. Arauto de um tempo em que deixamos de ser, de nos relacionar com profundidade e real paixão, nossos sentimentos se tornaram efêmeros, o amor passou a ser somente um vocábulo de sentido variável que consta nos dicionários para que, em seu lugar, se estabeleçam relações físicas sem sentimento real ou profundo.
A esperança reside em avaliar de conscienciosamente o que temos, desconstruir o que nos restou, repensar ações e práticas, permitir a reflexão profunda, falar menos e ouvir mais, aprender com quem construiu histórias melhores – hoje e ontem, abrir mão das vaidades e agir coletivamente, sem desrespeitar as individualidades, as origens, a história e os sentimentos alheios.
O mundo ficou, certamente, mais pobre sem Bauman. Nos últimos anos, além do filósofo e sociólogo polonês perdemos o brilhantismo do escritor italiano Umberto Eco, o poder de análise crítica do historiador inglês Eric Hobsbawn, a poesia social do brasileiro Ferreira Gullar, a liderança respeitada e sóbria de Nelson Mandela, a arte única e original da nipo-brasileira Tomie Ohtake, somente para lembrar de algumas pessoas notáveis, cujas obras contribuíram muito para um mundo melhor.
Precisamos de novas lideranças e de novas mentes brilhantes para superar a modernidade líquida. Quem se habilita?
# Verificação ou Avaliação: observações a partir da teoria avaliativa de Luckesi
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