Educação Profissional
Marta Gil Consultora na área da Inclusão de Pessoas com Deficiência, socióloga, Coordenadora Executiva do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas, associada à Ashoka Empreendedores Sociais, colaboradora do Planeta Educação e colunista da Revista Reação. Autora do livro “Caminhos da Inclusão – a trajetória da formação profissional de pessoas com deficiência no SENAI-SP” (Editora SENAI, 2012), organizou livros, tem artigos publicados, participa de eventos no Brasil e no exterior. Áreas de competência: Inclusão na Educação e no Trabalho. E-mail: martaalmeidagil@gmail.com.

Complexo de vira-lata? Na área da Educação Inclusiva, não! - 19/04/2016
Marta Gil

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perspectiva de uma sala de aula

Nelson Rodrigues, escritor, dramaturgo e torcedor fanático de futebol cunhou a expressão “complexo de vira-lata” para se referir “(...) à inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um Narciso às avessas”. Esta expressão, que se referia inicialmente à terrível sensação vivida no final da Copa Mundial de Futebol de 1950, quando o Brasil perdeu para o Uruguai, se aplica também a outras situações da vida.

Estamos sempre nos comparando a outros países, especialmente com os do chamado Primeiro Mundo. Os jornalistas fazem sempre esta pergunta aos entrevistados, seja qual for o tema: condições sanitárias, educação, transportes. E, no fundo, meio que antecipamos a resposta da autoridade entrevistada: estamos mal, muito mal mesmo e temos muito a aprender com os “países adiantados”, sem levar em conta as condições históricas, o processo de desenvolvimento, o tamanho dos países e outros fatores. De antemão já nos encolhemos e, para continuar a metáfora, colocamos o “rabo entre as pernas”.

Em fevereiro deste ano me dei conta que também tenho este “complexo”. Vou contar como descobri.

Fui assistir ao mais recente evento do Zero Project, que aconteceu em Viena, na Áustria.

Vou dar alguns números sobre a Conferência de 2016: 516 participantes, vindos de 70 países; apresentação de 98 práticas inovadoras, em 35 sessões plenárias, durante 3 dias; a Conferência também pôde ser acompanhada, em tempo real, por um link acessível. Os temas abordados incluíram intervenção precoce, educação nos níveis primário, secundário e superior, educação profissionalizante, educação não formal, materiais pedagógicos acessíveis, educação inclusiva em situações de emergência, entre outros.

Resumindo: participei de um evento riquíssimo, que escancarou minha visão de mundo e minhas concepções.

Bem, e o que tem a ver o Zero Project, a Conferência de 2016 e o complexo de vira-lata?

Prá mim, teve tudo a ver: as apresentações falavam de problemas semelhantes aos que enfrentamos aqui, ressalvadas as características locais, claro. Mas a essência das questões abordadas era a mesma, independente do país. Fiquei surpresa: não era isso que eu esperava ouvir, principalmente de profissionais e ativistas do chamado Primeiro Mundo.

Foi aí que me dei conta do meu “complexo de vira-lata”: o que eu esperava, sem ter consciência disso, era ouvir relatos de maravilhas e até já me imaginava como um Marco Polo, voltando e contando avanços extraordinários. Queria aprender com eles e ver como adaptar os “avanços” para as terras tupiniquins.

Contrariando essa minha expectativa, da qual não tinha consciência, me dei conta que todos os que lutamos por uma Educação Inclusiva enfrentamos situações e problemas semelhantes, pois pelo menos uma de suas raízes é comum à natureza humana: o preconceito. E o preconceito além de muito, muito resistente, está presente nos países adiantados e naqueles em desenvolvimento. Pode diminuir, porque foi enfrentado com ferramentas e estratégias eficientes, pode recuar e assumir disfarces – mas está presente, de um jeito ou de outro.

Esta constatação pode parecer ingênua e até simplória. Afinal, estou há tantos anos nessa área...

É verdade, trabalho há muitos anos, inicialmente com a integração e depois com a inclusão, fazendo pesquisas, consultorias, vídeos, livros, palestras. Mas nunca tinha participado de um evento com 70 países!

Enquanto assistia atentamente às exposições, cenas passavam pela minha mente: iniciativas, literalmente do Oiapoque ao Chuí, de escolas públicas e privadas, de creches a universidades: algumas com recursos (em todos os sentidos do termo) mais generosos, outras improvisando com materiais de sucata, com acompanhamento de consultores renomados ou entrando de cabeça, “com a cara e a coragem”, depoimentos de professores sobre estratégias de ensino, desenvolvimento de metodologias e de material didático, sobre sua vontade de fazer o melhor, de aprender no contato direto com o aluno com deficiência, buscando conhecimentos que dessem conta das lacunas de sua formação...

O “filme” que eu assistia na minha memória começou a ser “rodado” em 1990, quando comecei a REINTEGRA – Rede de Informações Integradas sobre Deficiência, numa parceria entre a Universidade de São Paulo e o Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas, que cresceu e deu origem à Rede SACI/USP. Continuo acompanhando cenas deste “filme”, nas redes sociais, nos eventos de que participo, nas publicações e nas ações voltadas para a Inclusão.

Confesso que senti orgulho dos educadores brasileiros, ao evocar estas cenas: esse caminho foi construído com empenho, competência, criatividade, suor e teimosia. Muitas dessas ações fariam bonito, se fossem ali apresentadas, em Viena.

Não me entendam mal: não estou menosprezando e nem anulando as conquistas de outros países. Elas existem, são reais e devem nos inspirar: temos a aprender com eles.

Também não estou exaltando as conquistas brasileiras e dizendo que somos “os reis da cocada” – não, não somos.

Temos realizações e conquistas que merecem ser conhecidas, divulgadas, analisadas e aperfeiçoadas. Em minha opinião, elas ainda são pontuais, como luzinhas isoladas – por isso, usamos o termo “experiências”. Há iniciativas de professores e de escolas, da rede pública e privada; foram desenvolvidos softwares, metodologias, estratégias de ensino; há livros e artigos; há produção acadêmica. Mas ainda são pouco conhecidos: vale a pena pesquisar em todas as áreas: há materiais planejados para alunos com deficiência visual que podem ser utilizados por crianças com outros tipos de deficiência e também por quem não tem deficiência.

Temos uma legislação de qualidade, mas ela precisa ser conhecida e colocada em prática.

É preciso aproximar famílias e escolas, pois são aliados, cada um em sua esfera.

É preciso unir estas luzinhas, para formar um clarão.

Sim, também temos muito a fazer, para fortalecer e ampliar a Educação Inclusiva. É importante reconhecer o que foi feito e celebrar, para ganhar fôlego e prosseguir. Há um caminho longo e desafiador à nossa frente.

Saí do evento com uma visão ampliada e mais equilibrada: o tal “complexo de vira-lata” praticamente desapareceu – que alívio!

Constato que estamos caminhando na perspectiva da Educação Inclusiva e temos muito a aprender uns com os outros – em escala mundial. Como diziam os antigos: “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”.

Parabéns a todas (os) educadores, alunos, familiares anônimos que estão construindo a Educação inclusiva, no Brasil e nos demais países! Estamos juntos.



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