A vida real é um videogame? - 12/09/2013
Wanda Camargo
No espaço de pouco mais de um ano, convivemos com duas tragédias de características semelhantes: o comandante de um transatlântico pilotou temerariamente seu navio e provocou um naufrágio; o maquinista de um trem imprimiu velocidade excessiva a seu veículo e causou descarrilamento. Nos dois casos, houve dezenas de vítimas fatais.
O que torna esses desastres mais terríveis é que não foram causados por fatalidades, condições atmosféricas adversas, falhas mecânicas ou eletrônicas - foram provocados, ainda que não intencionalmente, pela presunção e arrogância de seus principais protagonistas.
Comandantes de navios e aviões, maquinistas e outros, são profissionais treinados que chegam às suas posições após anos de prática e experiência, e devemos a eles muito da segurança que sentimos ao utilizar os meios de transporte que conduzem. Entretanto, como em todas as atividades humanas, há aqueles que se deixam infantilizar por equipamentos que, aparentemente, expandiriam suas competências e, no limite, seus intelectos, dotando-os de uma autoconfiança quase suicida e, às vezes, assassina.
Quando foram lançados os primeiros automóveis equipados com airbags, noticiou-se que na Alemanha grupos de jovens delinquentes roubavam carros que possuíam o recurso, apenas para provocarem acidentes e, supostamente, saírem ilesos. Porém, nenhuma tecnologia garante totalmente a isenção de riscos - o número de mortes e ferimentos ocorridos diminuiu drasticamente tal prática “esportiva”.
Se o Titanic contasse com um elementar sistema de radar com alcance de alguns quilômetros, muito provavelmente não teria colidido com um iceberg. Todavia, igualmente existe perigo no distanciamento que o uso de certos aparatos eletrônicos causa entre o usuário e a realidade, como se tudo se tornasse um jogo, um videogame em que participantes não são reais, os acidentes não tem maiores consequências - e o jogador tem inúmeras “vidas” à disposição.
Imaginemos as consequências futuras do uso de aeronaves não tripuladas, os “drones”, em guerras reais e com armamentos reais. É fato conhecido entre analistas militares que, em condições de batalha, apenas uma minoria de soldados atira realmente para matar o oponente - muitos, na percepção de enfrentamento com outros seres humanos, erram os tiros, preferem provocar apenas danos materiais. No entanto, se o inimigo for apenas uma imagem, algo localizado a milhares de quilômetros de distancia, nenhum sentimento de humanidade sobreviverá para reduzir as perdas.
É preciso pensar se nosso sistema educacional, ao lado da qualificação técnica, também está adequado para não colaborar na desumanização do estudante, preparando-o adequadamente para o convívio social, para o controle dos excessos, para a reflexão. O exibicionismo, aparente causador das duas tragédias, a perda do sentido de realidade, a sensação de poder ilimitado, parece ser característica da nossa época, transcendendo fronteiras e transformando pessoas em verdadeiras máquinas de matar.
Imaginação constitui-se em poderoso meio de ensino-aprendizagem, está associada à criatividade e à inovação, expande as fronteiras emocionais e nos prepara para a vida. Só não pode sobrepujar a realidade.
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