Dia 3
de dezembro de 2010, entrei no elevador em
direção ao local de trabalho. Não foi
um dia comum.
No pequeno espaço, as pessoas tinham a difícil
tarefa de acomodarem-se a fim de chegar ao destino: uma das duzentas e
vinte salas localizadas no Harmony Medical Center, dedicadas a cuidar
da saúde física ou emocional das pessoas.
Pedi a alguém que apertasse o botão
correspondente ao andar onde eu desejava ficar, pois não
alcançava fazê-lo.
Em seguida, ouvi uma voz suave e doce atrás de mim:
– “Doutora, a Senhora lembra-se de dez pessoas que
bateram a sua porta? Talvez nem saiba, mas estão todas
trabalhando e devem isso a Senhora”.
A voz vinha de um jovem pai, segurando uma criança nos
braços.
Virei meu rosto e reconheci o líder do grupo que, em 2007,
chegou ao meu consultório trazendo mais nove pessoas.
Queriam ser ouvidos. Todos insatisfeitos com o resultado de uma das
etapas do concurso público municipal, a
avaliação psicológica, na qual haviam
sido considerados inaptos para desempenhar as
funções anunciadas em edital.
Vinham de um profissional que não pode atendê-los
e todos tinham algum tipo de deficiência.
O exíguo tempo, entre o anúncio do resultado dos
concursos públicos e o prazo dado para o candidato entrar
com recurso administrativo ou judicial, normalmente dois dias, fora um
desafio para nós profissionais.
Às vezes, temos apenas o final de semana para realizar os
retestes, ou faltam testes no mercado local.
Preparar novos laudos, com as devidas exposições
de motivos ou justificativas pertinentes, em tempo hábil,
é tarefa difícil.
Cada caso é único, pois são diversas
as peculiaridades individuais.
Ainda candidatos, não tendo assumido os empregos, nem sempre
dispõem de meios financeiros para custear despesas
processuais e advocatícias.
As dificuldades são evidentes. Havia, porém, uma
grande aliada, a certeza de que eu faria tudo ao meu alcance para
compreender o que havia acontecido a cada uma daquelas pessoas que me
confiavam o sonho de ter acesso ao mercado de trabalho brasileiro.
Depois de ouvir-lhes e aplicar instrumentos que me permitiam fazer
prognósticos do desempenho delas no trabalho e de posse das
procurações que me confiaram, fui fazer as vistas
dos testes que a Comissão de Avaliação
Psicológica responsável por aquele concurso havia
aplicado.
Convenci-me de que aquelas pessoas eram capazes, sim, de desempenhar as
funções estabelecidas no edital.
A minha preocupação, como profissional
psicóloga, foi me despir do estigma do preconceito que,
infelizmente, ainda ronda a nossa volta em pleno século XXI.
Esse balizamento ético, os psicólogos precisam
buscar no exercício profissional.
É verdade que temos limitações para
cumprir a legislação brasileira em vigor, pois a
existência da lei de cotas, com vagas no mercado de trabalho
para pessoas com deficiência, existe enquanto inexistem
instrumentos suficientes de avaliação
psicológica validados no Brasil.
Quanto ao assunto igualdade de oportunidades para todas as pessoas,
faltam testes específicos para as cegas, por exemplo.
O óbvio é que não podemos considerar
essas pessoas inaptas com base numa simples entrevista.
Se assim fosse, usando o mesmo raciocínio para sermos
justos, também poderíamos
considerá-las aptas usando este mesmo recurso.
Vale registrar que nos Estados Unidos da América do Norte
existem, pelos menos, quatro instrumentos psicológicos,
amplamente utilizados, com este segmento da
população.
Entre discussões e divergências de
opiniões do psicólogo perito que representava os
dez desclassificados e a Comissão de
Avaliação Psicológica do concurso,
prevaleceu o bom senso.
Conseguimos ser ouvidos e os dez candidatos estão
trabalhando, segundo afirmou o líder do grupo naquele
elevador apinhado de gente, naquela sexta-feira que marcou minha
carreira e minha vida.
A Organização das Nações
Unidas adotou o dia 3 de dezembro como Dia Internacional das Pessoas
com Deficiência, por meio da resolução
A/RES/47/3, esperando que entidades mundiais da área passem
a comemorar a data, gerando conscientização,
compromisso e ações que transformem a
situação desfavorável de
exclusão de muitas pessoas no mundo.
Estou fazendo a minha parte. Peço desculpas pela falta de
modéstia, mas tenho um compromisso com a minha
consciência.
Lembro-me que a omissão, neste caso, é mais grave
ainda que a pouca modéstia e, naturalmente,
inadmissível.
Temos dez pessoas trabalhando incluindo uma com cegueira, vivendo seu
sonho em cores, um apogeu de emoções.
Finalizo minha escritura citando o dispositivo do Decreto-Lei n. 3.298
(Art. 35, incisos I e II e $ 30), que regulamenta o acesso ao trabalho
das pessoas com deficiência, assegurando o direito do
candidato a ter apoios especiais quando vai se submeter a concurso,
desde que informados no ato da inscrição.
Entendemos que a concessão de recursos e cuidados aos
segmentos situados em desvantagem objetiva frente aos demais
não poderá ser caracterizada como simples
favorecimento a parcelas da sociedade, mas, sim, como a
criação de condições
necessárias para que todos estejam em
situação objetiva de igualdade para o uso das
oportunidades existentes.
Buscar reparar as desigualdades individuais, na verdade, não
se trata de privilégio. No caso, falamos de reparar
injustiças seculares. Falamos de direitos humanos.
Maria
Linda Lemos Bezerra
é psicóloga, membro fundador do Conselho Estadual
de Defesa de Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado do
Ceará – CEDEF-CE. Natural de
Várzea Alegre – CE. Membro efetivo da Academia de
Letras dos Municípios do Estado do Ceará -
ALMECE, ocupando a Cadeira N0 63 e da Associação
dos Escritores Cearenses - ACE. Contato:
lindapsy03@yahoo.com.br