Planeta Educação

Aprender com as Diferenças

 

O Sonho em Cores
Maria Linda Lemos Bezerra

Foto-de-Maria-Linda-Lemos-Bezerra-do-artigo Dia 3 de dezembro de 2010, entrei no elevador em direção ao local de trabalho. Não foi um dia comum.


No pequeno espaço, as pessoas tinham a difícil tarefa de acomodarem-se a fim de chegar ao destino: uma das duzentas e vinte salas localizadas no Harmony Medical Center, dedicadas a cuidar da saúde física ou emocional das pessoas.

Pedi a alguém que apertasse o botão correspondente ao andar onde eu desejava ficar, pois não alcançava fazê-lo.

Em seguida, ouvi uma voz suave e doce atrás de mim: – “Doutora, a Senhora lembra-se de dez pessoas que bateram a sua porta? Talvez nem saiba, mas estão todas trabalhando e devem isso a Senhora”.

A voz vinha de um jovem pai, segurando uma criança nos braços.

Virei meu rosto e reconheci o líder do grupo que, em 2007, chegou ao meu consultório trazendo mais nove pessoas.

Queriam ser ouvidos. Todos insatisfeitos com o resultado de uma das etapas do concurso público municipal, a avaliação psicológica, na qual haviam sido considerados inaptos para desempenhar as funções anunciadas em edital.

Vinham de um profissional que não pode atendê-los e todos tinham algum tipo de deficiência.   

O exíguo tempo, entre o anúncio do resultado dos concursos públicos e o prazo dado para o candidato entrar com recurso administrativo ou judicial, normalmente dois dias, fora um desafio para nós profissionais.

Às vezes, temos apenas o final de semana para realizar os retestes, ou faltam testes no mercado local.

Preparar novos laudos, com as devidas exposições de motivos ou justificativas pertinentes, em tempo hábil, é tarefa difícil.

Cada caso é único, pois são diversas as peculiaridades individuais.

Ainda candidatos, não tendo assumido os empregos, nem sempre dispõem de meios financeiros para custear despesas processuais e advocatícias.

As dificuldades são evidentes. Havia, porém, uma grande aliada, a certeza de que eu faria tudo ao meu alcance para compreender o que havia acontecido a cada uma daquelas pessoas que me confiavam o sonho de ter acesso ao mercado de trabalho brasileiro.

Depois de ouvir-lhes e aplicar instrumentos que me permitiam fazer prognósticos do desempenho delas no trabalho e de posse das procurações que me confiaram, fui fazer as vistas dos testes que a Comissão de Avaliação Psicológica responsável por aquele concurso havia aplicado.

Convenci-me de que aquelas pessoas eram capazes, sim, de desempenhar as funções estabelecidas no edital.

A minha preocupação, como profissional psicóloga, foi me despir do estigma do preconceito que, infelizmente, ainda ronda a nossa volta em pleno século XXI.

Esse balizamento ético, os psicólogos precisam buscar no exercício profissional.

É verdade que temos limitações para cumprir a legislação brasileira em vigor, pois a existência da lei de cotas, com vagas no mercado de trabalho para pessoas com deficiência, existe enquanto inexistem instrumentos suficientes de avaliação psicológica validados no Brasil.

Quanto ao assunto igualdade de oportunidades para todas as pessoas, faltam testes específicos para as cegas, por exemplo.

O óbvio é que não podemos considerar essas pessoas inaptas com base numa simples entrevista.

Se assim fosse, usando o mesmo raciocínio para sermos justos, também poderíamos considerá-las aptas usando este mesmo recurso.

Vale registrar que nos Estados Unidos da América do Norte existem, pelos menos, quatro instrumentos psicológicos, amplamente utilizados, com este segmento da população.

Entre discussões e divergências de opiniões do psicólogo perito que representava os dez desclassificados e a Comissão de Avaliação Psicológica do concurso, prevaleceu o bom senso.

Conseguimos ser ouvidos e os dez candidatos estão trabalhando, segundo afirmou o líder do grupo naquele elevador apinhado de gente, naquela sexta-feira que marcou minha carreira e minha vida.

A Organização das Nações Unidas adotou o dia 3 de dezembro como Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, por meio da resolução A/RES/47/3, esperando que entidades mundiais da área passem a comemorar a data, gerando conscientização, compromisso e ações que transformem a situação desfavorável de exclusão de muitas pessoas no mundo.

Estou fazendo a minha parte. Peço desculpas pela falta de modéstia, mas tenho um compromisso com a minha consciência.

Lembro-me que a omissão, neste caso, é mais grave ainda que a pouca modéstia e, naturalmente, inadmissível.

Temos dez pessoas trabalhando incluindo uma com cegueira, vivendo seu sonho em cores, um apogeu de emoções.
 
Finalizo minha escritura citando o dispositivo do Decreto-Lei n. 3.298 (Art. 35, incisos I e II e $ 30), que regulamenta o acesso ao trabalho das pessoas com deficiência, assegurando o direito do candidato a ter apoios especiais quando vai se submeter a concurso, desde que informados no ato da inscrição.

Entendemos que a concessão de recursos e cuidados aos segmentos situados em desvantagem objetiva frente aos demais não poderá ser caracterizada como simples favorecimento a parcelas da sociedade, mas, sim, como a criação de condições necessárias para que todos estejam em situação objetiva de igualdade para o uso das oportunidades existentes.

Buscar reparar as desigualdades individuais, na verdade, não se trata de privilégio. No caso, falamos de reparar injustiças seculares. Falamos de direitos humanos.

Maria Linda Lemos Bezerra é psicóloga, membro fundador do Conselho Estadual de Defesa de Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado do Ceará – CEDEF-CE.  Natural de Várzea Alegre – CE. Membro efetivo da Academia de Letras dos Municípios do Estado do Ceará - ALMECE, ocupando a Cadeira N0 63 e da Associação dos Escritores Cearenses - ACE.   Contato: lindapsy03@yahoo.com.br

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