A presidente Dilma Rousseff sancionou, nos últimos dias de
agosto, a lei que institui a reserva de 50% das vagas ofertadas em
instituições federais de
educação superior para estudantes oriundos de
escolas públicas.
A lei passa a valer para os próximos vestibulares das
federais e também na futura edição do
Sistema de Seleção Unificada (Sisu) do
Ministério da Educação.
Está prevista para este mês a
regulamentação da lei, assim como a
definição de cronograma para a
adequação das universidades.
Como cidadão, médico, professor, pai de
família e diretor da Escola Paulista de Medicina,
não me dou por convencido da necessidade de tal
obrigatoriedade.
Sendo assim, venho contribuir com reflexões para o
aprofundamento do debate.
O compromisso de cidadania é um dever de todos.
Permeia a democracia e representa a nossa
obrigação, enquanto cidadãos, com os
menos favorecidos.
Trata-se de uma dívida que precisa ser resgatada com aqueles
que foram relegados a um segundo plano.
Porém, é necessário cuidado para
não violar os princípios básicos e
já consagrados.
Estabelecer cotas para o segmento A ou B da
população é louvável, desde
que se respeite a autonomia universitária.
Outro problema é que essa medida, imposta de cima para
baixo, também deixa de contemplar o mérito de
cada um dos concorrentes à vaga.
Compreendo que a universidade pública deve trabalhar dentro
de um padrão de cotas definido por sua própria
comunidade.
Um curso não é igual a outro, assim como uma
escola não é igual às demais.
As particularidades têm que ser respeitadas, inclusive
levando em consideração a complexidade da
formação e o papel que o recém-formado
exercerá na sociedade.
A Escola Paulista de Medicina é um bom exemplo de
adesão voluntária às cotas.
Garantimos vagas para afrodescendentes, índios e alunos
provenientes de escolas públicas há tempos.
Salvo engano, fomos a primeira instituição
médica a aderir às ações
afirmativas por compreender sua relevância para o combate
à exclusão.
É preciso, contudo, que haja flexibilidade.
Volto a frisar que a autonomia deve ser respeitada, sob o risco de
adotarmos nova forma de segregação.
Somos altamente favoráveis ao pensamento da presidente
Dilma, mas é importante ampliar o debate sobre a
questão das cotas.
A princípio, nossa visão é de que elas
devem ser destinadas às camadas menos favorecidas.
O fato de ser afrodescendente, estudar em escola pública,
ser homem, mulher, ou seja lá o que for, não
significa necessariamente que pertence a esta ou àquela
faixa social/financeira.
Hoje, cada universidade federal deve adotar um número de
cotas estipulado pelo governo.
O que causa, consequentemente, um prejuízo muito grande no
qual o mérito não é contemplado.
Estão isentas da obrigatoriedade as escolas estaduais,
municipais e particulares, o que gera outra
distorção inadmissível.
Esperamos que a sociedade se posicione apoiando as cotas, mas
também garanta que o mérito seja respeitado,
permitindo indiretamente às escolas médicas a
adoção do número de vagas adequado.
A Escola Paulista de Medicina, inclusive, já enviou oficio
à Presidência da República salientando
os aspectos que devem ser levados em consideração
ao se estabelecer uma política rígida como esta.
Devemos nos atentar para o cerne da questão: a qualidade
insuficiente das escolas públicas de ensino fundamental e
médio no país.
Os jovens oriundos destas instituições deveriam
entrar na faculdade sem precisar de cotas.
Para tanto, é essencial investir em professores, na
formação e desenvolvimento profissional
continuado deles.
Temos de oferecer alimentação e
condições ideais de estudo aos alunos, melhorar
os recursos didáticos e a estrutura física.
Assim, investindo no ser humano, não serão mais
necessárias as cotas em futuro breve.
Enquanto isso, a oportunidade de justiça talvez venha por
intermédio das cotas, mas sem ferir a autonomia
universitária e a democracia.
Não será na base da força que
pagaremos a enorme dívida que temos com os
excluídos do Brasil.
Será com sensibilidade, compromisso e humanismo, sob os
nobres preceitos do Estado Democrático de Direito.
Antonio
Carlos Lopes
é
presidente da Sociedade Brasileira de Clínica
Médica e diretor da Escola Paulista de Medicina.