Uma das grandes obras literárias da humanidade,
“As mil e uma noites”, narra a história
de um rei vingativo.
Traído por sua esposa, resolve condená-la
à morte e matar todas as rainhas que a sucederiam
após o casamento e a primeira noite de amor.
Uma de suas escolhidas, no entanto, foi Sherazade. Ela conseguiu
escapar do fatal decreto régio ao entreter o monarca, noite
após noite, com histórias que se encadeavam e
despertavam a curiosidade do rei.
Sempre ávido pela continuação dos
contos, ele postergava a sentença de morte para o dia
seguinte, até a absolvição final da
rainha: ela não morreu porque contava histórias
interessantes.
Um dos sentidos perenes da arte da narrativa pode ser entrevisto
metaforicamente nesse enredo: contar histórias é
não morrer, é perpetuar-se, é
continuar a existir. Por isso, a humanidade sempre registrou suas
memórias.
Das inscrições rupestres das cavernas de Lascaux
até o mais sofisticado romance contemporâneo, os
homens procuram gravar suas experiências e sua
imaginação a fim de ser lembrados por seus
sucessores.
Num mundo contaminado pelo instantâneo, porém,
qual o sentido do que já foi, do que já
não é? Nas sociedades tradicionais, conferia-se o
nome de sabedoria à experiência dos antepassados.
Representando não apenas um acúmulo de
informações, mas a
elaboração delas na substância da vida,
o saber dos mais velhos representava um manancial de
histórias, transmitidas oralmente de
geração em geração ou por
meio da escrita.
O discurso do narrador mostrava-se, assim, pedagógico:
não apenas ensinava os mais novos, mas dava sentido ao
conhecimento adquirido por meio da vivência pessoal.
No mundo moderno, o cenário é bem diferente:
encontramo-nos hiperconectados em notícias e esquecemos as
narrativas.
A rapidez dominou nossa rotina, tornando a troca de
experiências algo aparentemente sem utilidade objetiva,
realizado de forma rara ou episódica.
As consequências de uma sociedade que destrói a
narrativa são terríveis. A primeira delas
é a falta de atenção. Nada
é permanente, logo, muito pouco é registrado e
lembrado.
A segunda é a redução do
espaço para a imaginação. A
ausência da dimensão do sonho ou da fantasia tem
efeitos devastadores para a esfera pública, já
que perpetua o conformismo com a realidade.
Se formos incapazes de imaginar, não conceberemos outro
mundo;
apenas o do presente, objetivo e “real”,
existirá.
Deve-se ressaltar ainda que o cultivo da narrativa no ambiente familiar
torna mais denso de sentido o que os mais jovens descobrem: a
experiência de quem narra sempre enriquece as
histórias.
A lembrança tem mais força e permanece muito
além do dia em que foi produzida.
Se desejarmos que nossos filhos ampliem seus horizontes e adquiram
maior consciência do mundo em que vivem, a narrativa dos que
já viveram é um excelente meio.
Repleta de saberes e de vivência coletiva, constitui nossa
identidade e nossa cultura. É com ela que devemos contar.
José
Ruy Lozano é
professor do Ético Sistema de Ensino, da Editora Saraiva, e
coordenador da área de Linguagens do colégio
Santo Américo, em São Paulo.