Assaltaram a Gramática
 

Contar histórias, tradição familiar - 19/04/2012
José Ruy Lozano

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Uma das grandes obras literárias da humanidade, “As mil e uma noites”, narra a história de um rei vingativo.

Traído por sua esposa, resolve condená-la à morte e matar todas as rainhas que a sucederiam após o casamento e a primeira noite de amor.

Uma de suas escolhidas, no entanto, foi Sherazade. Ela conseguiu escapar do fatal decreto régio ao entreter o monarca, noite após noite, com histórias que se encadeavam e despertavam a curiosidade do rei.

Sempre ávido pela continuação dos contos, ele postergava a sentença de morte para o dia seguinte, até a absolvição final da rainha: ela não morreu porque contava histórias interessantes.

Um dos sentidos perenes da arte da narrativa pode ser entrevisto metaforicamente nesse enredo: contar histórias é não morrer, é perpetuar-se, é continuar a existir. Por isso, a humanidade sempre registrou suas memórias.

Das inscrições rupestres das cavernas de Lascaux até o mais sofisticado romance contemporâneo, os homens procuram gravar suas experiências e sua imaginação a fim de ser lembrados por seus sucessores.

Num mundo contaminado pelo instantâneo, porém, qual o sentido do que já foi, do que já não é? Nas sociedades tradicionais, conferia-se o nome de sabedoria à experiência dos antepassados.

Representando não apenas um acúmulo de informações, mas a elaboração delas na substância da vida, o saber dos mais velhos representava um manancial de histórias, transmitidas oralmente de geração em geração ou por meio da escrita.

O discurso do narrador mostrava-se, assim, pedagógico: não apenas ensinava os mais novos, mas dava sentido ao conhecimento adquirido por meio da vivência pessoal.

No mundo moderno, o cenário é bem diferente: encontramo-nos hiperconectados em notícias e esquecemos as narrativas.

A rapidez dominou nossa rotina, tornando a troca de experiências algo aparentemente sem utilidade objetiva, realizado de forma rara ou episódica.

As consequências de uma sociedade que destrói a narrativa são terríveis. A primeira delas é a falta de atenção. Nada é permanente, logo, muito pouco é registrado e lembrado.

A segunda é a redução do espaço para a imaginação. A ausência da dimensão do sonho ou da fantasia tem efeitos devastadores para a esfera pública, já que perpetua o conformismo com a realidade.

Se formos incapazes de imaginar, não conceberemos outro mundo; apenas o do presente, objetivo e “real”, existirá.

Deve-se ressaltar ainda que o cultivo da narrativa no ambiente familiar torna mais denso de sentido o que os mais jovens descobrem: a experiência de quem narra sempre enriquece as histórias.

A lembrança tem mais força e permanece muito além do dia em que foi produzida.

Se desejarmos que nossos filhos ampliem seus horizontes e adquiram maior consciência do mundo em que vivem, a narrativa dos que já viveram é um excelente meio.

Repleta de saberes e de vivência coletiva, constitui nossa identidade e nossa cultura. É com ela que devemos contar.

José Ruy Lozano é professor do Ético Sistema de Ensino, da Editora Saraiva, e coordenador da área de Linguagens do colégio Santo Américo, em São Paulo.

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