Nós, os que fomos educados num tempo e numa escola que
valorizavam muito a cultura brasileira de raiz e a história
do Brasil, alimentavam uma constante e insatisfeita curiosidade sobre
como se deram as coisas com portugueses na Índia,
decorrentes dos sucessos das Grandes Navegações.
Isso porque não conseguíamos ver, em nossa
ingenuidade pueril e um tanto xenófoba, nada mais
incompatível, seja no aspecto físico ou no
cultural, que um português e um indiano.
Havia, entretanto, outra razão pela qual não
conseguíamos aprofundar essa questão: a
ausência de fontes.
Eu morei numa capital de estado, porto com razoável
importância, com uma população
já expressiva – embora só mais tarde
ficasse claro que boa parte dessa população
(vista por nós como um indicativo de prosperidade) era fruto
do inchamento artificial.
Esse “inchamento” era provocado pela seca e pela
falta do que fazer nas noites de miséria, a qual era inchada
pela indiferença pública e privada (mais a
primeira do que a segunda) que tornava a barriga inchada das
crianças, infestadas de verminose.
Era um retrato fiel de nossa demografia urbana e de nossos costumes
políticos, igualmente infestados: a falta de bibliotecas e
livrarias minimamente respeitáveis era muito desestimulante,
sem falar no alto custo e no nível precário da
informação escrita em livros e jornais ou
propagada pela rádio e depois pela televisão.
Dá para sentir, pois, a alegria que experimenta uma pessoa
de minha geração que, de repente, mergulha nesse
oceano de informações em que se tornou a
Internet, e como folga por célebre tentar suprir as lacunas
informativas de sua educação.
Assim é que me interessou, sobremaneira, explorar um dos
conteúdos mais escassos de nossa
formação, até os dias de hoje, que
são os acontecimentos históricos e as
características evolutivas da sociedade portuguesa.
Esta parece que não tem nada a ver com a nossa ou,
simplesmente, "saiu de moda" após o Sete de Setembro...
Será que um secreto sentimento de inferioridade nos impele a
esconder nossa origem europeia aparentemente tão humilde?
Qual é o adolescente que não se esmera por
esconder um pai de que se envergonha, mesmo que não haja
razões para isso, da mesma forma que versa, ousado, sobre
aquilo que desconhece em seu genitor?
Deixando essas imaturidades de lado, quero dividir com você,
leitor, um episódio da história portuguesa que
sempre me trouxe muitas indagações e que
é muito rico de significado: a estadia de Pedro
Álvares Cabral na Índia.
A
chegada em Calicute
Quando Cabral chegou ao porto de Calicute, em inglês
"Kozhikode", em 13 de setembro de 1500, e do mar vislumbrou a silhueta
da mais importante cidade comercial do sul da Índia
– suserana de várias outras e dirigida por uma
dinastia de governantes chamados "samutiri" (grande senhor do mar) que
foi aportuguesado para “samorim”, intimamente
ligado aos interesses do grupo de mercadores, em especial
àqueles vinculados aos interesses
arábico-mediterrâneos e chineses –
não tinha bem claro, mas além das mercadorias,
estava sobrecarregado de tarefas, expectativas e símbolos
que dificultariam em muito a sua missão.
A sua missão precípua era fazer um acordo de paz
com o governante local e estabelecer uma feitoria, um entreposto
comercial português permanente na cidade.
Algo, contudo, um tanto complicado em virtude da imagem deixada dois
anos antes por Vasco da Gama, cuja fama de salteador de barcos
árabes.
Estes, fregueses e sócios dos calicutenses, ganharam renome,
atraindo medo e ódio contra os portugueses, sem falar dos
presentes absolutamente inadequados que este levara ao samutiri
– acostumados a negociar com pequenos reinos e
régulos do litoral africano.
Vasco da Gama apresentou objetos tão "vis" ao representante
do samutiri que este, em meio a gargalhadas, recusou-se a
levá-los ao seu governante.
A forma "espontânea" com que os navegadores portugueses, a
partir de Vasco da Gama, atacavam e saqueavam as frotas
muçulmanas e até mesmo os reinos que
não queriam, por algum motivo, franquear-lhe as portas.
Tudo isso é um importante indicativo do caráter
militar-cruzadista, antes que comercial, dessas
expedições, invariavelmente comandadas por uma
pessoa da antiga nobreza agrária, como Cabral, e
não por navegantes experientes, que serviam mais como
assessoria ou por comerciantes de carreira.
O próprio responsável pela feitoria, que era uma
representação comercial, o feitor, não
era um comerciante experimentado, mas um funcionário
público cujo maior mérito era sua lealdade ao
rei. Ou seja, os dois elementos que podiam fazer a empreitada render ao
máximo eram antecipadamente descartados.
Mesmo essa antiga nobreza agrária, a quem competia o comando
das frotas, em processo de franca decadência
(transformando-se cada vez mais em nobreza cortesã,
misturada aos fidalgos de última hora, a nobreza togada, que
alçara as vizinhanças do rei graças
à compra de um título), sentia o peso dessas
mudanças e via na guerra de viés religioso uma
forma de conservar antigos privilégios e manter os atuais.
Isso porque, afinal, ela possuía o monopólio dos
postos militares e o domínio da ciência da guerra,
então, "vamos mandar chumbo!".
É claro que havia um viés mercantil nessas
expedições e que esse viés era
importante, mas não se tratava aqui de expandir os
interesses e o poder econômico de uma classe social com um
projeto próprio e autônomo de
construção nacional a partir de uma cultura
burguesa e urbana, mas de uma expansão pura e simples da
base de impostos do Estado (leia-se o rei).
Tal expansão era vista mais como uma forma de aumento de
renda que de lucro, e isso faz uma grande diferença, a ponto
de, a meu ver, ser possível caracterizar essas
expedições navais portuguesas mais como "fiscais"
do que "comerciais".
Seja como for, segundo nos relata um contemporâneo dos fatos,
o cronista e historiador da corte João de Barros, desde o
início as coisas não saíram muito bem,
pois, após receber o representante do samutiri a bordo,
Cabral, repetindo um gesto já comum na Europa, resolveu
saldar o retorno daquele a terra e o sucesso do primeiro encontro com
uma salva dobrada de canhões:
"A
trovoada da qual não fomente (às vezes se usa do
"f" no lugar do "s" atual) avorreceo (aborreceu) ao Mouro por levar
toda nas coftas, aftrogindo-lhe (ensurdecendo-lhe) as orelhas, mas
ainda na Cidade fez tamanho efpanto, que eftando a praia cuberta do
povo na vifta das náos, defamparáram tudo,
recolhendo-fe muitos delles a fuas cafas" (pág.
409).
João de Barros era filho bastardo de um nobre, educado no
palácio real e, por isso mesmo, nomeado feitor da Casa da
Índia e da Mina (centros de decisão do
comércio com a Ásia e a África).
Embora ele nunca tenha estado no Brasil, tornou-se
proprietário de uma capitania em nosso país, cuja
colonização redundou em completo fracasso e em um
grande desastre financeiro.
Voltando ao nosso assunto, Cabral deflagrou um pânico na
cidade! Quem já havia esquecido as violências do
Gama, dela teve, nesse momento, a mais viva
recordação, sem atinar para o lado gentil,
educado e "sutil" dessa demonstração de gentileza
europeia! E você deve estar se perguntando: "mas, para que
usar o raio de uma salva de artilharia em uma missão
comercial"?
A
novela dos reféns
O representante do samutiri fez um convite para que Cabral fosse a
terra tratar diretamente com ele das condições de
comércio entre os dois povos, mas Cabral, já
alertado por Gama (sem falar do temperamento sempre desconfiado de quem
foi treinado desde a juventude na arte da guerra), "bateu o
pé" e disse que só desceria a terra se fossem
enviados pessoas de alta posição social,
já listadas em Portugal, para ficarem de reféns
nos navios portugueses, enquanto durassem as tratativas e os
carregamentos das naus, o que era uma forma de apressar o carregamento.
Depois de muito “vai não vai”, foram
enviados a bordo alguns personagens importantes da cidade, pelo que
Cabral se dispôs a conversar com o samutiri, que
João de Barros chama de "ElRey", ajustando-o
milimetricamente ao molde do sistema político
português.
Seja como for, no encontro que se deu a 18 de dezembro, os presentes
foram generosos o bastante para apagar a má
impressão deixada pelas quinquilharias de Gama, mas como o
samutiri não se apressasse ainda a consentir na
instalação de uma feitoria e fizesse muitas
restrições à permanência dos
reféns nos barcos, logo surgiram impasses e
desconfianças mútuas.
Enquanto isso, os reféns, seja pela demora nas tratativas,
por má vontade (até certo ponto
justificável para com os estrangeiros) ou por ordens
contraditórias vindas de um lado e do outro,
começaram a saltar ao mar, os que podiam, com os portugueses
correndo atrás, em uma espécie de jogo de "gato e
rato" junto às naus.
Os que não conseguiram escapar, principalmente os mais
velhos, foram recolhidos ao porão do navio onde estavam, mas
como um deles ameaçasse se matar de jejum (as
prescrições alimentares e de ambiente
são muito rigorosas entre os hindus), os soldados de
Calicute também prenderam vários portugueses que
desceram em terra, ameaçando só
soltá-los após a libertação
dos reféns, Cabral, então, recuou e libertou seus
reféns.
Logo depois os portugueses conseguem uma sede para a sua feitoria. Tudo
não passara de uma grande perda de tempo, sem falar no
estremecimento prévio de uma relação
que se pretendia, segundo recomendação do rei
Manuel I e revelada por João de Barros, ser vantajosa para
ambos os negociadores.
Mas, se os indianos reagiram numa atitude de franca curiosidade diante
dos recém-chegados, a comunidade muçulmana local
ficou claramente dividida. Segundo o relato de Barros, havia dois
grupos poderosos de comerciantes muçulmanos: um vinculado ao
comércio terrestre e aos interesses locais (chefiado por um
tal "Coge Bequij" que desde o início mostrou simpatia pelos
portugueses) e outro ligado ao comércio marítimo
e aos intermediários árabes, chefiado por "Coge
Cemecerij" que, ao contrário, sempre foi hostil aos
recém-chegados.
Os navegantes e cronistas portugueses também notaram essa
diferença, definindo os dois grupos como "mouros de meca" e
"mouros da terra" (indianos islamizados ou muçulmanos
não árabes), sendo que o primeiro deveria ser
tratado à bala, enquanto que o segundo poderia ter
relações amistosas, algo complicado devido
à mentalidade comunitária e integrativa do
Islã.
João de Barros, analisando a disparidade de sentimentos e
posturas dos dois personagens, atribui-a (como cortesão
aplicado que era) à mera indisposição
pessoal ou à lógica do poder: dois homens muito
poderosos não podem viver juntos sem entrarem em conflito
decisivo ou, como diria Alexandre o Grande, "não
há lugar para dois sois na Ásia".
Mas é possível, não certo, que esse
posicionamento se deva por motivos mais "concretos".
Estando mais ligado aos interesses terrestres e, logicamente, locais,
Bequij tinha mais interesse que crescesse a demanda ou a
concorrência entre os importadores para fazer crescer seus
lucros, enquanto Cemecerij (respondendo pelos interesses de grupos
importadores específicos – a maioria da
Arábia que ganhava muito com o monopólio) estava
mais propenso a ver os portugueses como concorrentes a ser eliminados,
para a manutenção dos grossos lucros que
até ali vinham tendo.
Manobrando com habilidade, Cemecerij começou a envolver os
desastrados portugueses numa série de
situações embaraçosas, semelhantes
àquelas que tinham conseguido escorraçar as
missões chinesas, igualmente comandadas por
burocratas e não por comerciantes tarimbados, segundo os
autores portugueses.
Para a desgraça destes, o seu tosco representante comercial,
o feitor Aires Correia, caiu como um "patinho" nas manobras do
concorrente – as manobras de Cemecerij, muito astuciosas e
por vezes desleais, poderiam ser desfeitas ou atenuadas pelo mesmo jogo
de astúcia e manha em sentido inverso, mas os burocratas
portugueses só conheciam um argumento: a força
bruta, uma vez que havia ali e em outros entreveros uma disputa entre o
bem e o mal, vista de forma absoluta, como uma
antecipação do Apocalipse.
O
episódio dos elefantes e o bombardeio final
O tempo foi passando, já era dezembro, e os carregamentos de
especiarias caíam como contagotas nos navios portugueses.
Isso começou a preocupar Cabral, afinal, a frota tinha uma
data limite para poder voltar com uma margem mínima de
segurança, aproveitando-se das
condições climáticas e de ventos
favoráveis.
Os contatos dos portugueses com o samutiri eram feitos por meio de
Aires Correia, facilmente encantado pelo maior concorrente dos
portugueses, Cemecerij, enquanto Cabral ficava nos navios, agindo de
acordo com as instruções de Correia.
Foi nesse ínterim que chegou a Cabral a notícia
(saída do palácio do samutiri) de que iria passar
por ali um grande navio mercante árabe, de Meca, carregado
de especiarias e com um elefante que o samutiri ficaria muito feliz de
o possuir.
Era capturar um navio inimigo e resolver vários problemas de
uma vez e, segundo algumas fontes (como "Relação
do Piloto Anônimo"), o samutiri fez questão de
assistir ao apresamento da praia e de mandar um oficial a bordo
só para observar como os portugueses lutavam.
Quando ele viu os estrangeiros ligeiramente dominarem rápida
e facilmente a situação com apenas um barco
pequeno contra um grande barco comercial guarnecido, afastou-se da
praia, visivelmente preocupado, talvez começando a temer o
grande poderio dos europeus.
Mas isso não foi o pior! O barco não era dos
árabes de Meca, mas dos comerciantes de Cochim, um reino
próximo, menor, mas não hostil aos portugueses, e
não estava carregado com especiarias, mas com sete elefantes
de guerra, importados de outra região da Índia,
um dos quais morrera no combate.
Cabral cometera um ato de pirataria gratuita contra um reino neutro.
Restou repreender o capitão do barco indiano por
não ter permitido a abordagem pacífica,
solicitada no início, e libertá-lo com o restante
da carga, com o devido pedido de desculpas.
A história acima é a versão que foi
contada por João de Barros, mas o Piloto Anônimo e
Fernão Lopes Castanheda contam-na um tanto modificada. Nesta
versão, o samutiri faz Cabral saber desde o
início que a nave era de Cochim e que ele queria um elefante
que ela transportava.
O comandante português relutou diante do pedido, mas como o
carregamento das naus estivesse atrasado ameaçando todo o
empreendimento, reuniu-se em conselho com os principais chefes da
armada que o instigaram a fazer a vontade do samutiri.
Houve a batalha e, conforme este falara, havia apenas um elefante que
foi capturado pelos portugueses e entregue ao governante de Calicute,
que teria ficado muito agradecido, mas que fora justamente isso que
exacerbou o medo e a ira do grupo mercantil árabe,
preocupado com o efeito positivo daquela ação
sobre o samutiri, criando uma armadilha fatal para os portugueses.
Pelo contexto e as repercussões seguintes, a
versão de João de Barros parece-me a mais
verossímil, mas não brigarei por
isso. Pouco depois, chega da feitoria a notícia de
que havia um grande navio mercante árabe no porto de
Calicute, abastecendo-se secretamente, à noite, de
especiarias.
O samutiri, querendo compensar os visitantes da maçada do
cargueiro de elefantes, autorizara a apreensão da carga do
navio pelos portugueses e, novamente, aconteceu o inesperado: ao
alvorecer de 16 de dezembro de 1500, os portugueses abordaram o navio e
houve uma intensa luta a bordo: o barco era de fato árabe,
mas não carregava especiarias, mas apenas mantimentos
comprados aos produtores de Calicute.
Foi o que bastou para os comerciantes árabes
começarem um motim na cidade, que uniu muçulmanos
e hindus contra os piratas portugueses.
Segundo a Relação do Piloto
Anônimo, os conflitos de rua começaram logo
após o ataque ao barco, com uma multidão furiosa
de árabes e indianos cercando e linchando os portugueses que
encontravam, forçando os sobreviventes a correrem para a
feitoria que foi imediatamente cercada e invadida por centenas de
manifestantes furiosos.
Lutando desesperadamente, os portugueses
presentes, entre 60 e 80 pessoas, correram para a praia, ficando a
maioria pelo caminho, inclusive vários membros importantes,
como o feitor Aires Correia e o primeiro fã do Brasil: o
escrivão Pero Vaz de Caminha.
Cabral ainda mandou barcos à praia para resgatar os
sobreviventes (alguém colocara a bandeira de "feitoria sob
ataque" no telhado, visível às naus), mais ou
menos uns 20.
Todos esses números são incertos e
variam de autor para autor. Entre os que chegaram salvos às
naves portuguesas, estavam o nosso conhecido frei Henrique de Coimbra,
o da primeira missa, e o filho de 12 anos do feitor, ambos muito
feridos.
Informado do ocorrido, Cabral dirige o grosso das naus portuguesas para
o porto da cidade, e se apodera de 10 ou 15 grandes navios comerciais
árabes (o número varia por autor), massacra e
prende uma parte da sua tripulação e
põe fogo nos navios.
Segundo o piloto anônimo,
uns 500 árabes pereceram nessa ação,
enquanto Fernão Lopes dá outro detalhe sombrio:
os árabes capturados durante a tomada dos navios foram
amarrados e deixados dentro dos navios a queimar.
O excesso de imperícia e o amadorismo dos portugueses
arrastaram uma missão comercial difícil a um
grande desastre.
Da popa de seu navio na ponte de comando, Cabral
observa o fogaréu consumindo barcos e tripulantes no porto,
ainda hesitava, pois não era esse o objetivo da
expedição sob seu comando, o pior acontecera,
agora só restava dar voz às armas.
Depois dessa primeira ação, Cabral pôs
os navios em linha e esperou alguma tentativa de contato com o
samutiri, que explicasse o ocorrido e resolvesse, inclusive, a
questão da devolução dos corpos
daqueles que caíram na feitoria.
Como nada acontecia, no dia 17 de dezembro de 1500, os navios fizeram
uma barragem de fogo de artilharia contra a cidade.
Dos fortins
existentes saía uma fraca resposta da artilharia indiana que
não causava, em absoluto, dano aos portugueses, e assim
passou-se o primeiro e o segundo dia de bombardeio contínuo
sobre a cidade.
Quando os artilheiros já estavam rogando praga na
sétima geração do comandante, Cabral
fez cessar o fogo e afastou seus navios dali, deixando a cidade
desolada, com muitos prédios destruídos e
várias colunas de fumaça se elevando das
ruínas, rumando para o sul, para Cochim, que, apesar do
embaraçoso episódio dos elefantes, recebeu os
portugueses de braços abertos.
Lá, os portugueses souberam que o seu bombardeio
à cidade custara umas 500 a 600 vidas, e o
próprio samutiri fugira após ver um importante
chefe militar tombar morto no bombardeio do seu palácio.
A justificativa para essa boa vontade de Cochim é que essa
cidade era vassala e rival de Calicute e, por isso, tinha interesse na
ruína desta: "o inimigo do meu inimigo é meu
amigo", algo perfeitamente compreensível,
aceitável e aproveitável por quem é do
ramo, mas esse não era o caso de Cabral.
Segundo Chagas e Monteiro (1848), Cabral ficou um bom tempo ao largo,
mergulhado em desconfianças, temeroso tanto do caso dos
elefantes como da possibilidade de mais uma
traição e, resguardando-se em demasia,
não fora à intervenção de
um converso de frei Henrique, que descera a terra e trouxera a
garantira que as intenções do rajá de
Cochim, em relação aos portugueses, eram a
melhores possíveis.
E de fato, vencida a desconfiança inicial, os
portugueses fizeram um forte aliado e conseguiram um rápido
carregamento de especiarias, voltando para Portugal em 16 de janeiro de
1501, conseguindo muito mais em um mês de estadia num reino
menor, do que nos três meses passados em Calicute, saindo a
tempo de ver uma impressionante exibição de
força do samutiri, que mandou uma esquadra com dezenas de
navios de guerra, 25 de grande porte, apresentar-se diante dos
portugueses. Prudentemente, os dois lados evitaram o combate.
O
rescaldo
No aspecto financeiro, a viagem de Cabral foi muito bem-sucedida.
João de Barros no seu livro "Da Ásia" ou
"Décadas da Ásia", volume 2, relata:
"Porque
foi tamanho o ganho das mercadorias que foram naquela armada de
Pedralvares, que em muitas coisas com um se fez de proveito, no
retorno, cinco, dez, vinte, trinta e até cinquenta, por
conta das quais todas as outras razões (para se mandar ou
não outra frota à Índia) ficaram
dependentes desse bom proveito" (texto adaptado para o
português atual).
Isso pelo menos para os conselheiros do rei Manuel I, pois, para ele,
segundo o cronista, o que mais importava era a
salvação das almas e, pensava o rei, vai ver que
foi por isso que Deus permitiu tamanho sucesso, para melhor estimular
os portugueses à salvação desses
gentios.
Um sentimento muito curioso em alguém que era, de fato, o
maior comerciante do reino. O comércio possibilita,
mantém e leva ao auge um regime aristocrático,
tocado por uma elite aristocrática por meio de uma ideologia
aristocrática.
Os ganhos compensaram amplamente a perda de mais da metade dos navios
da frota original, e boa parte de sua tripulação.
Pelo menos era assim que eles pensavam em relação
a esse último item, relativizando e justificando a perda
não só de muitas vidas humanas, mas de
profissionais especializados, cujo valor e raridade não
foram bem-aquilatados nesse momento, até que a sua escassez
começou a ameaçar as frotas para o Oriente. Essa
elite se habituara a planejar apenas no curtíssimo prazo.
Do ponto de vista econômico, também não
se pode dizer que não tenha havido avanços.
É verdade que o objetivo de conseguir um acordo comercial
com o reino mais poderoso do sul da Índia falhara, assim
como a fixação de uma feitoria permanente
lá, sem falar do custo, de agora em diante, de manter uma
guerra contra um reino poderoso, além daquela que
já se travava contra os árabes, mas, confiados na
superioridade de seus armamentos e nas alianças de
última hora, os portugueses estavam dispostos a "falar
grosso".
Outro aspecto inesperado do ataque a Calicute, benéfico aos
portugueses, foi o afloramento da rivalidade entre os vários
reinos indianos da região que, segundo Barros,
não tardaram a enviar embaixadores a Cochim, solicitando,
encarecidos, que Cabral fosse aos seus portos se carregar de
especiaria, oferecendo-lhe acordos vantajosos.
Para manter-se fiel ao seu projeto original e não gerar mais
melindres, Cabral concentrou-se em Cochim, onde fundou uma feitoria e
partiu deixando o embrião de uma futura rede comercial e de
alianças políticas promissoras.
No aspecto político e até "cultural", podemos
dizer que a frota de Cabral, embora não usando tanto dos
métodos de seu antecessor, acabou por cristalizar em muita
gente da região a imagem do português como gente
de "pavio curto", o que tornava mais fácil aos seus
adversários isolar e combater.
Portugal teria que buscar aliança com reinos menores para
lidar com a hostilidade do maior dos reinos meridionais, o que
demandava recursos e ajudou a denegrir a imagem das
navegações portuguesas na região
até os dias de hoje, sempre associadas à
violência. O aspecto religioso-cruzadista se impôs
e marcou as frotas da Índia, ainda que não fosse
essa, vá saber!, a intenção original.
Os negociadores lusos, não raro, mostravam-se
ingênuos e despreparados, como no caso de Aires Correia, que
se aproximou com excessiva confiança dos membros do grupo
que tinha mais razões para temer a presença
portuguesa, e deles se fez íntimo, sem falar da gafe final
de Pedro Álvares, que ao se retirar de Cochim, ante a
ameaça de confronto com a esquadra de Calicute, levou
consigo os reféns que o rajá de Cochim havia
deixado, como garantia, causando mágoas.
João de Barros garante que a retirada de Cabral se deu em
ordem, pressionada apenas pelo avançado da
estação e pelo foco no carregamento de
especiarias, mas o episódio dos reféns, se Cabral
não era um grande mau caráter, aponta mais para
uma fuga desabalada.
O início catastrófico dos contatos com a
Índia, a mistura confusa de cruzadismo com
comércio e interesses fiscais, arrastou Portugal a uma
guerra contra Calicute e reinos muçulmanos do
Índico.
Essa guerra durou décadas, consumiu recursos e
reduziu consideravelmente os lucros que se poderiam obter por meio de
empreendimentos comerciais pacíficos e/ou uma
política mais abrangente e flexível de
alianças que minimizasse os custos das guerras.
Foi assim
que os ingleses se tornaram, posteriormente, os colonizadores mais
bem-sucedidos da região.
Havia muito que aprender, mas a forma como o império
português se firmou na região nos mostra,
aparentemente, que os portugueses estavam muito mais dispostos a
ensinar que a aprender e, talvez por isso, sua
lição tenha sido tão breve.
Do lado do samutiri e dos comerciantes árabes, a coisa
não saiu melhor, pois o incidente com Cabral provocou
retaliações severas (a cidade sofreu um
bombardeio mais pesado ainda em 1502) que obrigaram os calicutenses ao
engajamento numa guerra demorada e custosa, da qual saíram
derrotados e a cidade perdeu definitivamente o seu poderio e a sua
imagem de grande suserana, passando a ser aliada menor em grandes
alianças antilusas ou vassala de outras potências
europeias, como a Holanda, a partir do século XVII, e a
Inglaterra, a partir do século XVIII.
Os mercadores árabes também sofreram
prejuízo, perdendo definitivamente o controle do grande
comércio marítimo do Oceano Índico.
Talvez, se tivessem agido com mais habilidade (percebendo o poderio dos
portugueses e se dispondo a esvaziar a mentalidade de guerra
religiosa), eles pudessem negociar posições
vantajosas nesse comércio que fatalmente teria que ser
dividido com as potências europeias, com mais oportunidades
para propagar a sua cultura e a sua fé.
O
ataque da Wikipédia
É fato sabido da importância e da
influência da enciclopédia eletrônica
"Wikipédia" como fonte de coleta de
informações
para os estudantes e para o homem
comum, mesmo que reconheçamos a qualidade extremamente
precária das informações nela
contidas, principalmente na que é versada em
língua portuguesa, mais acessível ao nosso
estudante, mas vale consultá-la para sabermos como
determinados temas de nossa história são vistos
por outros povos e, nesse sentido, a sua
contribuição é inestimável.
Buscando informações sobre como a
ação de Cabral era vista pelos historiadores e
pesquisadores de língua inglesa (ingleses e
norte-americanos, além de indianos), afinal, a
Índia foi colônia da Inglaterra por mais de 200
anos, encontrei algumas coisas interessantes:
a)
Para eles, a pessoa de Cabral é tratada com muita
hostilidade, divulgando-se que ele vinha carregado de más
intenções desde o início. O site
indiano www.india-world.net afirma que Cabral foi o primeiro comandante
a exercer a diplomacia da canhoneira (1).
b)
Afirmam que Cabral já chegou com
imposições descabidas, como a expulsão
dos árabes de Calicute . No india-world.net, essa
exigência é assinalada no texto com letras em
negrito (2).
c)
Eles reconhecem que os comerciantes árabes ficaram
preocupados e que certamente urdiram tramas, cujo alcance
não dá para saber.
d)
Que a disputa era
só entre árabes e portugueses, o que
não justificava o bombardeio da cidade. No site
india-world.net, o massacre dos portugueses é citado
rapidamente como se fosse uma briga de rua, sem maiores
consequências (3), enquanto a resposta de Cabral ao massacre
é ressaltada em toda sua crueldade, novamente em negrito (4).
d)
A Wikipédia vai mais longe ao afirmar que a frota de Cabral
foi um fracasso "cuidadosamente ocultado" (5).
A causa disso seria a grande quantidade de barcos afundados e as perdas
de vidas.
A alegação de incompetência
(incompetence) correu nos círculos mais fechados da corte e,
por isso, segundo um autor indiano, Sanjay Subrahmanyam, o comando da
frota de 1502 foi-lhe oferecido apenas "pro forma" e não de
forma sincera (6), e a imposição de um comando
limitado e supervisionado (7) foi a forma de criar uma
condição humilhante para
forçá-lo a pedir demissão do comando
da chamada "Frota da Vingança" (8), pasmem! Não
adianta correr para o verbete em português, pois
este não passa de uma tradução do
inglês.
O curioso de todas essas colocações é
que elas não fazem uso em nenhuma vez de
citações das diversas fontes portuguesas
contemporâneas, mostrando o seu caráter mais
propagandístico e panfletário que
histórico.
A
defesa da história
Embora a agressividade dos navegantes portugueses seja
notória e incontestável, principalmente no caso
de Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque, não creio que ela
se enquadre bem no caso de Cabral em Calicute, visto o conjunto das
circunstâncias que se formaram e que apontam mais para uma
diplomacia desastrada, antes que agressiva, no caso
específico de Calicute.
Acusar Cabral de ser o iniciador da "política das
canhoneiras" alivia muito o peso da consciência de ingleses e
norte-americanos que a usaram de maneira muito mais frequente e
agressiva, como na abertura forçada dos portos chineses e
japoneses, inclusive pela mais imoral de todas as guerras: a Guerra do
Ópio de 1842, numa época em que a diplomacia e os
costumes internacionais já haviam evoluído e se
"civilizado" muito desde Cabral.
Seria de fato muito estranho, para dizer o mínimo, se o rei
de Portugal já chegasse ao primeiro contato com o soberano
de um país desconhecido, impondo
condições mais cabíveis a um vassalo
ou súdito.
Seria extravagante até para os costumes do século
XVI, a não ser que já houvesse o
nítido objetivo de fazer guerra a esse país
– o que não parece ser o caso, a não
ser que apareça algum documento novo.
O historiador português Fernão Lopes Castanheda,
em sua obra "História do descobrimento e conquista da
Índia pelos portugueses" (ele foi um historiador
contemporâneo aos acontecimentos e famoso por fazer uso de
fontes fidedignas) reproduz a carta de Manuel I ao samutiri que, apesar
da sua prolixidade e menções veladas à
superioridade da religião cristã e à
evidência do seu Deus, só fala em
aliança e amizade, sem citar os mercadores árabes.
Sem falar que nas outras cidades indianas, nas quais os portugueses
construíram alianças, nenhum pedido dessa
natureza foi feito. Por que só em Calicute houve essa
imposição extravagante?
Quem primeiro fez menção sobre a
expulsão dos mercadores árabes de Calicute, que o
samutiri, em sua correspondência, fez alçar a uns
quatro mil, segundo João de Barros, foi o navegador Vasco da
Gama na expedição de 1502, em seu ultimato
entregue às vésperas do segundo bombardeio da
cidade.
Os portugueses têm um sério problema com essa
história: se a conspiração dos
mercadores árabes existiu mesmo, não ficaram
provas concretas, enquanto que a tomada e a queima dos navios, assim
como o bombardeio da cidade são fatos
incontestáveis. Nos casos do conluio dos mercadores,
ficará sempre a palavra dos portugueses contra a dos
árabes e hindus.
A imagem de Cabral ficou sobremaneira desgastada por apenas uma
razão: ele era o comandante da seção
naval da expedição, mas ele só desceu
em terra uma vez para negociar com o samutiri.
Todas as negociações foram feitas pelo feitor
Aires Correia, pois era essa a sua função e era
por meio de Correia, depois de ouvi-lo, que Cabral agia.
Por conseguinte, se houve alguém que pôs tudo a
perder e pode ser considerado o principal causador da
catástrofe final, foi aquele que teve a vantagem,
"histórica", de sair morto do conflito.
Segundo João de Barros, que provavelmente reproduz apenas o
espírito das palavras de Cabral, se é que os
antigos não tinham uma memória muito mais
privilegiada que a nossa (o que também é
possível), após se inteirar do massacre na
feitoria, teria dito:
"Louvado
seja Deus! Que é mais poderoso para nos destruir um amigo
simulado que um inimigo em campo aberto. Aires Correia tinha por amigo
aquele mouro Cemecerij e confiava em suas palavras e eu descansava nas
suas (de Correia), e assim ele morreu, desenganado do falso amigo, e eu
morro (de arrependimento) porque enganei a muitos, parecendo-me que
acertava ao seguir os seus conselhos. Entretanto, ele morreu como um
nobre guerreiro, assim como os outros que com ele se vão
[mortos], e todos eles, por servirem a El Rey Nosso Senhor, findaram
nobremente a sua vida, e eu invejo mais ainda a sua morte, mais do que
essas minhas quartans (acessos de malária, que ele pegou
durante a viagem, e que poderiam ser usadas como sinal de sua
dedicação ao Rei): todavia, eu trocaria uma hora
da vida de Aires Correia por dez anos da minha, somente para poder
argui-lo de algumas coisas que eu lhe avisei e ele não me
cria. Porém, como foi da vontade de Nosso Senhor (Deus) que
viéssemos a finalizar o nosso encontro com esse Samorim em
pior estado do que quando chegamos, tomemos esse desastre na conta dos
mortos, pois estes acabaram nele, e a nossa causa por
princípio de bom despacho (de boa fé), pois nos
dá razão a não diminuir [a
impressão de] quantos enganos há três
meses sofremos" (texto adaptado para o português atual).
Dizer que a esquadra de Cabral foi um grande fracasso financeiro
"claramente silenciado" (conspicuously muted) sem citar uma fonte
é, no mínimo, irresponsabilidade, quando todas as
fontes contemporâneas falam de grandes lucros e festas de
recepção.
A primeira expedição de Vasco da Gama,
proporcionalmente, sofreu perdas muito maiores que
justificavam o envio de frotas, uma após outra, para
lá, a não ser que o rei de Portugal gostasse de
levar prejuízo ou que essas missões eram
puramente militares. Faziam a guerra pela guerra, por puro prazer!
Quanto a um possível trauma real pela perda de tantas vidas
humanas no contexto daquele período histórico,
deixo essa questão para ser discutida por quem acredita em
fadas e duendes.
O mesmo raciocínio vale para as disputas entre os grupos
palacianos que visavam "queimar" a esse ou aquele cortesão
que estivesse subindo muito na conta do rei.
O fato de haver uma forte corrente oposta a Cabral é, pelo
contrário, um forte indicativo do aumento do seu
prestígio, o que fatalmente provocará a sua queda
a seguir.
Sanjay Subrahmanyam parece entender tanto de corte europeia
renascentista quanto os portugueses renascentistas entendiam de
elefantes indianos.
Não dá para fazer uma análise
histórica de uma era recuada usando conceitos morais e
valores (éticos e financeiros) criados em épocas
muito posteriores.
A questão sobre o comando da expedição
de 1502 e o consequente afastamento de Cabral dos empreendimentos
navais, se é que a expedição de 1500
foi tão bem-sucedida como dizem os portugueses, merece
alguma consideração mais cuidadosa.
Os autores contemporâneos são muito reticentes
quando falam desse assunto, parecem temer algo, como se Cabral tivesse
caído em grande desgraça, confirmando,
parcialmente, a tese do "fracasso" dele.
A única fonte que fala um pouco mais é
João de Barros, no volume 2 de "Da Ásia", onde na
pág. 22 da versão online, diz que o rei resolveu
colocar cinco navios, dos 15 que faziam parte da armada, sob o comando
de Vicente Sodré, tio de Vasco da Gama, com a
missão específica de fechar o estreito do Mar
Vermelho aos árabes, para inviabilizar, em definitivo, a sua
participação no comércio de
especiarias.
Esse grupo teria um comando independente, vinculado diretamente ao rei.
"Pedro
Álvares Cabral quando viu esse apartamento de velas, de modo
quase isento ao seu comando, não ficou contente. E como ele
era homem de muitos primores acerca de pontos de honra, teve sobre este
negócio alguns requerimentos, a que ElRey não
satisfez. Finalmente ele não foi" (adaptado do
português antigo).
Aparentemente, ele pediu demissão de modo
enfático e inesperado, obrigando o rei a dar o comando a
Vasco da Gama, que não era a melhor das
soluções, pois o comando da missão
ficava quase todo com uma família – um dos navios
da esquadrilha de Sodré era comandado por um
irmão deste: Braz Sodré.
Tudo indica que houve uma intensa e desgastante luta de bastidores
entre duas facções, "cabralistas" e
"vascaístas", tão desgastante que o rei proibiu,
sob pena de degredo, que se falasse nesse assunto na sua frente,
segundo o verberte "Pedro Álvares Cabral", na
Wikipédia em inglês, citando um autor
desconhecido: William Greenlee.
Isso explicaria a parcimônia dos portugueses da
época em falar sobre esse assunto e, no mais, essa ideia de
comando compartilhado, muito estranha e inadequada em termos de
eficiência, é bem conhecida de nós
brasileiros que tivemos a experiência de uma estrutura de
governo-geral onde cada titular respondia diretamente ao rei; uma bela
forma de não criar funcionários muito poderosos e
autônomos frente a um soberano cioso do seu poder.
Mais tarde, em 1514, Afonso de Albuquerque intercedeu por
Cabral, a Wikipédia, citando Subrahmanian e Greenlee, diz
que ele foi mal-sucedido, mas segundo Abramo (1972) aconteceu justo o
contrário: Cabral teve um aumento na sua pensão
e, em 1518, foi nomeado para o Conselho Régio, e, embora
não tenha voltado mais ao mar, ele estava de novo entre os
maiores.
Mais
lenha na fogueira
A querela de Calicute, no seu estado atual, coloca as duas
posições em contraste absoluto: ou os detratores
de Cabral têm razão, e nesse caso Cabral, e a
liderança da esquadra portuguesa em Calicute não
passa de um conluio de piratas e criminosos - genocidas em potencial -
ou, no caso dos historiadores portugueses estarem mais
próximos da verdade, ele foi vítima de uma das
mais infames tramas da história das
relações internacionais, com muita lama
respingando no samutiri, cujo papel, estranhamente, não
é citado pelas fontes anglo-indianas.
Os autores portugueses falam de certa duplicidade, de uma manha, por
parte daquele governante, embora não de uma hostilidade
aberta.
Ele teria como que ficado em cima do muro tentado se acomodar aos dois
contendores procurando discernir qual era o lado que mais lhe
interessava, pois ainda não conhecia o poderio dos
portugueses nem queria entrar em choque com a poderosa comunidade
mercantil árabe da cidade.
Outros autores, como o piloto anônimo, que participou
pessoalmente no combate da feitoria, assevera que viu guardas do
samutiri junto aos árabes, durante o ataque, o que
compromete a teoria de um conflito apenas entre árabes e
portugueses.
Uma descoberta recente, porém, acende esse assunto de uma
maneira inesperada: Uma carta enviada por representantes da
comunidade cristã de Calicute, supostamente fundada pela
ação missionária do
Apóstolo Tomé, que foram testemunhas dos
acontecimentos na Índia, dirigida ao patriarca de sua
igreja, na Síria, traduzida e impressa no número
XXXVI da Revista da Universidade de Coimbra de 1991, confirma a
versão dos historiadores portugueses e "carrega" na culpa do
samutiri, que teria participado ativamente do conluio contra os
portugueses
Com isso, fica a questão: por morarem lá eles
teriam um acesso privilegiado ao que estava acontecendo e seriam as
testemunhas conclusivas ou a questão religiosa, o fato de os
portugueses serem cristãos como eles, teria pesado mais? Ao
que se sabe, não havia conflitos sérios entre
cristãos e muçulmanos na Índia,
não havendo, portanto, uma
predisposição antimuçulmana ou
anti-hindu "declarada".
Eis o trecho da carta:
"De
novo [menção à esquadra anterior de
Vasco da Gama] mandou o dito Rei... seis enormes navios [os que
sobraram da esquadra de Cabral]... Mas há na cidade de
Calicut Ismaelitas numerosos... e acenderam na sua inveja aos
cristãos; e foram caluniá-los perante o rei
gentio; e mentiram-lhe àcerca deles... E aquele rei gentio
acreditou na palavra deles e fez-lhes a vontade: como que tomado de
loucura mandou matar todos aqueles ditos Frangues [portugueses] que
estavam na sua cidade, setenta homens e cinco sacerdotes justos que
estavam com eles [os companheiros de frei Henrique,
acredita-se que morreram dois frades franciscanos e três
padres, cujos nomes se perdeu], pois não partem sem
sacerdote para parte alguma. E o resto dos homens que tinham ficado a
bordo fizeram-se ao mar com grande tristeza, amargura e pranto, e foram
para junto de cristãos nossos, na cidade que se chama
Cochim" (pág. 137-138).
Uma concordância com agravante: o samutiri participou
ativamente do ataque aos portugueses, o que o coloca entre os mais
infames personagens das relações internacionais,
mas também uma divergência: supõe que
todos os portugueses morreram (será que esta foi a
versão oficial em Calicute?) e não faz
menção do bombardeio de Cabral, que os
portugueses afirmam que houve – mais adiante, a carta cita o
bombardeio realizado por Vasco da Gama em 1502.
Se tivéssemos que escolher uma frase para fechar esse artigo
nós ficaríamos a seguinte: o povo que
não cuida da sua história a conhecerá
contada por povos que o desprezam, do jeito que melhor lhes
convém.
Epílogo
bizarro
Em um programa da década de 1990, a apresentadora Regina
Casé fez uma viagem a Portugal com a finalidade de mostrar a
casa onde viveu Pedro Álvares Cabral, e depois de algumas
matérias muito interessantes sobre o temperamento (ora
desconfiado ora depressivo do povo português quando comparado
ao brasileiro) e algumas situações malucas
(Regina quase nocauteou uma velha portuguesa com uma "traseirada"), ela
chegou à casa de Cabral em Santarém.
Foi então que soubemos que a casa de nosso ilustre
"descobridor" fora, em épocas anteriores, a sede de um
bordel, e que estava, naquele instante, em reformas para se transformar
na "Casa do Brasil"... sem ironia.
Que ligação mais melancólica para
alguém tão cioso dos "primores" da honra! Se
Cabral soubesse disso, naquele tempo, certamente teria preferido virar
poeira nas ruas de Calicute junto ao nosso Pero Vaz.
Notas
(1)
"Gunboat diplomacy", usada
para expressar um tipo de política colonialista,
principalmente do século XIX, quando os países
europeus fazia demonstrações de força,
estacionando uma poderosa frota de navios no principal porto da do
país da África ou da Ásia que eles
queriam intimidar. A América do Sul e o Brasil
também foram vítimas dessa diplomacia, com
aconteceu durante a caça dos navios que faziam o
tráfico de escravos e durante a Questão Christie,
durante o século XIX.
(2)
"Mana Vikrama [o samutiri]
was seated on a throne this time, wearing a lungi, the local form of
sarong. He was offered a treaty of friendship, which he accepted; and
an order to expel all Muslims, which he refused. In the harbour,
Cabral..."
(3)
"The portuguese
compound was attacked by Arab merchants"
(4)
"Cabral seized ten merchant
ships and their crew were burn alive in full view of the citizens.
(Three elephants found in the cargo were eaten)". Observe-se que o
texto chama a atenção para três
elefantes que estavam nos navios de carga incendiados, que foram mortos
e comidos pelos portugueses, que ainda não sabiam que o
elefante é um dos animais mais sagrados da cultura hindu. Um
grande "fora"! A citação destacada de que os
membros da tripulação dos navios foram queimados
vivos às vistas de todos, não deixa de ser uma
grande de hipocrisia, pois nessa época muitas senhoras eram
queimadas vivas, junto ao cadáver de seus maridos
recém-falecidos, na Índia, em grandes eventos
públicos.
(5)
"On the surface, Pedro Álvares Cabrals 2nd Armada had been
a failure and the reaction was conspicuously muted" ("2nd Portuguese
India Armada (Cabral,1500)").
(6)
"Pro forma gesture than a
sincere oferr".
(7) "Limited and supervised".
(8)
"Revenge fleet".
Bibliogafia
A carta que mandaram os padres da Índia da China e da Magna
China - um relato siríaco da chegada dos portugueses ao
Malabar e seu primeiro encontro com a hierarquia cristã
local; Luiz Felipe F R Thomaz (Universidade de Lisboa) in Revista da
Universidade de Coimbra, ano XXXVI, 1991, pg 119 -181. In,
http://books.google.com.br/books?id=GPJNuytLU7cC&pg=PA161&lpg=PA161&dq=ataque+%C3%A0+feitoria+portuguesa+em+calicute&source=bl&ots=dcQwcLzBEo&sig=pSMofzEJRoYeJTM5asVfE6gI15E&hl=pt-BR&sa=X&ei=eiJGT8OLB8fE0QGE7dykDg&ved=0CC8Q6AEwAjgK#v=onepage&q=ataque%20%C3%A0%20feitoria%20portuguesa%20em%20calicute&f=false
BARROS, João de. Da Ásia. Nova
edição offerecida a sua Magestade D. Maria I
rainha felicissima. Lisboa. Reggia Ophicina Typografica. 1778 pg
398-408. In,
http://books.google.com.br/books?id=Epo2AAAAMAAJ&dq=editions:UOM39015057112644&lr=&as_brr=1&pg=PP35&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false
CASTANHEDA, Fernão Lopes. Historia do descobrimento e
(conqvista da índia) pelos portvgveses. Nova
edição. Lisboa. typographia rollandiana.
MDCCCXXXIII. por ordem superior. pg 102-130. In
http://books.google.com.br/books?id=yBwPAAAAYAAJ&pg=1&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false
http://www.india-world.net/op-ed/portuguese.htm - acesso 13 de
fevereiro de 2012.
Relação do piloto anônimo (trechos);
apresentada por Jean Marcel França. In,
http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/histdescob1.htm - acesso 15
de fevereiro de 2012.
http://veja.abril.com.br/historia/descobrimento/pedro-alvares-cabral.shtml
- acesso 20 de fevereiro de 2012.