Planeta Educação

De Olho na História

Eduardo Simões Licenciado pela Universidade Federal do Ceará; Professor efetivo da rede de ensino estadual de São Paulo

Tormenta de Fogo em Calicute (Cabral na Índia)
Professor Eduardo Simões

Nós, os que fomos educados num tempo e numa escola que valorizavam muito a cultura brasileira de raiz e a história do Brasil, alimentavam uma constante e insatisfeita curiosidade sobre como se deram as coisas com portugueses na Índia, decorrentes dos sucessos das Grandes Navegações.

Isso porque não conseguíamos ver, em nossa ingenuidade pueril e um tanto xenófoba, nada mais incompatível, seja no aspecto físico ou no cultural, que um português e um indiano.

Havia, entretanto, outra razão pela qual não conseguíamos aprofundar essa questão: a ausência de fontes.

Eu morei numa capital de estado, porto com razoável importância, com uma população já expressiva – embora só mais tarde ficasse claro que boa parte dessa população (vista por nós como um indicativo de prosperidade) era fruto do inchamento artificial.

Esse “inchamento” era provocado pela seca e pela falta do que fazer nas noites de miséria, a qual era inchada pela indiferença pública e privada (mais a primeira do que a segunda) que tornava a barriga inchada das crianças, infestadas de verminose.

Era um retrato fiel de nossa demografia urbana e de nossos costumes políticos, igualmente infestados: a falta de bibliotecas e livrarias minimamente respeitáveis era muito desestimulante, sem falar no alto custo e no nível precário da informação escrita em livros e jornais ou propagada pela rádio e depois pela televisão.

Dá para sentir, pois, a alegria que experimenta uma pessoa de minha geração que, de repente, mergulha nesse oceano de informações em que se tornou a Internet, e como folga por célebre tentar suprir as lacunas informativas de sua educação.

Assim é que me interessou, sobremaneira, explorar um dos conteúdos mais escassos de nossa formação, até os dias de hoje, que são os acontecimentos históricos e as características evolutivas da sociedade portuguesa.

Esta parece que não tem nada a ver com a nossa ou, simplesmente, "saiu de moda" após o Sete de Setembro...

Será que um secreto sentimento de inferioridade nos impele a esconder nossa origem europeia aparentemente tão humilde?

Qual é o adolescente que não se esmera por esconder um pai de que se envergonha, mesmo que não haja razões para isso, da mesma forma que versa, ousado, sobre aquilo que desconhece em seu genitor?

Deixando essas imaturidades de lado, quero dividir com você, leitor, um episódio da história portuguesa que sempre me trouxe muitas indagações e que é muito rico de significado: a estadia de Pedro Álvares Cabral na Índia.

A chegada em Calicute
Quando Cabral chegou ao porto de Calicute, em inglês "Kozhikode", em 13 de setembro de 1500, e do mar vislumbrou a silhueta da mais importante cidade comercial do sul da Índia – suserana de várias outras e dirigida por uma dinastia de governantes chamados "samutiri" (grande senhor do mar) que foi aportuguesado para “samorim”, intimamente ligado aos interesses do grupo de mercadores, em especial àqueles vinculados aos interesses arábico-mediterrâneos e chineses – não tinha bem claro, mas além das mercadorias, estava sobrecarregado de tarefas, expectativas e símbolos que dificultariam em muito a sua missão.

A sua missão precípua era fazer um acordo de paz com o governante local e estabelecer uma feitoria, um entreposto comercial português permanente na cidade.

Algo, contudo, um tanto complicado em virtude da imagem deixada dois anos antes por Vasco da Gama, cuja fama de salteador de barcos árabes.

Estes, fregueses e sócios dos calicutenses, ganharam renome, atraindo medo e ódio contra os portugueses, sem falar dos presentes absolutamente inadequados que este levara ao samutiri – acostumados a negociar com pequenos reinos e régulos do litoral africano.

Vasco da Gama apresentou objetos tão "vis" ao representante do samutiri que este, em meio a gargalhadas, recusou-se a levá-los ao seu governante.

A forma "espontânea" com que os navegadores portugueses, a partir de Vasco da Gama, atacavam e saqueavam as frotas muçulmanas e até mesmo os reinos que não queriam, por algum motivo, franquear-lhe as portas.

Tudo isso é um importante indicativo do caráter militar-cruzadista, antes que comercial, dessas expedições, invariavelmente comandadas por uma pessoa da antiga nobreza agrária, como Cabral, e não por navegantes experientes, que serviam mais como assessoria ou por comerciantes de carreira.

O próprio responsável pela feitoria, que era uma representação comercial, o feitor, não era um comerciante experimentado, mas um funcionário público cujo maior mérito era sua lealdade ao rei. Ou seja, os dois elementos que podiam fazer a empreitada render ao máximo eram antecipadamente descartados.

Mesmo essa antiga nobreza agrária, a quem competia o comando das frotas, em processo de franca decadência (transformando-se cada vez mais em nobreza cortesã, misturada aos fidalgos de última hora, a nobreza togada, que alçara as vizinhanças do rei graças à compra de um título), sentia o peso dessas mudanças e via na guerra de viés religioso uma forma de conservar antigos privilégios e manter os atuais.

Isso porque, afinal, ela possuía o monopólio dos postos militares e o domínio da ciência da guerra, então, "vamos mandar chumbo!".

É claro que havia um viés mercantil nessas expedições e que esse viés era importante, mas não se tratava aqui de expandir os interesses e o poder econômico de uma classe social com um projeto próprio e autônomo de construção nacional a partir de uma cultura burguesa e urbana, mas de uma expansão pura e simples da base de impostos do Estado (leia-se o rei).

Tal expansão era vista mais como uma forma de aumento de renda que de lucro, e isso faz uma grande diferença, a ponto de, a meu ver, ser possível caracterizar essas expedições navais portuguesas mais como "fiscais" do que "comerciais".

Seja como for, segundo nos relata um contemporâneo dos fatos, o cronista e historiador da corte João de Barros, desde o início as coisas não saíram muito bem, pois, após receber o representante do samutiri a bordo, Cabral, repetindo um gesto já comum na Europa, resolveu saldar o retorno daquele a terra e o sucesso do primeiro encontro com uma salva dobrada de canhões:

"A trovoada da qual não fomente (às vezes se usa do "f" no lugar do "s" atual) avorreceo (aborreceu) ao Mouro por levar toda nas coftas, aftrogindo-lhe (ensurdecendo-lhe) as orelhas, mas ainda na Cidade fez tamanho efpanto, que eftando a praia cuberta do povo na vifta das náos, defamparáram tudo, recolhendo-fe muitos delles a fuas cafas" (pág. 409).

João de Barros era filho bastardo de um nobre, educado no palácio real e, por isso mesmo, nomeado feitor da Casa da Índia e da Mina (centros de decisão do comércio com a Ásia e a África). Embora ele nunca tenha estado no Brasil, tornou-se proprietário de uma capitania em nosso país, cuja colonização redundou em completo fracasso e em um grande desastre financeiro.

Voltando ao nosso assunto, Cabral deflagrou um pânico na cidade! Quem já havia esquecido as violências do Gama, dela teve, nesse momento, a mais viva recordação, sem atinar para o lado gentil, educado e "sutil" dessa demonstração de gentileza europeia! E você deve estar se perguntando: "mas, para que usar o raio de uma salva de artilharia em uma missão comercial"?

A novela dos reféns
O representante do samutiri fez um convite para que Cabral fosse a terra tratar diretamente com ele das condições de comércio entre os dois povos, mas Cabral, já alertado por Gama (sem falar do temperamento sempre desconfiado de quem foi treinado desde a juventude na arte da guerra), "bateu o pé" e disse que só desceria a terra se fossem enviados pessoas de alta posição social, já listadas em Portugal, para ficarem de reféns nos navios portugueses, enquanto durassem as tratativas e os carregamentos das naus, o que era uma forma de apressar o carregamento.

Depois de muito “vai não vai”, foram enviados a bordo alguns personagens importantes da cidade, pelo que Cabral se dispôs a conversar com o samutiri, que João de Barros chama de "ElRey", ajustando-o milimetricamente ao molde do sistema político português.

Seja como for, no encontro que se deu a 18 de dezembro, os presentes foram generosos o bastante para apagar a má impressão deixada pelas quinquilharias de Gama, mas como o samutiri não se apressasse ainda a consentir na instalação de uma feitoria e fizesse muitas restrições à permanência dos reféns nos barcos, logo surgiram impasses e desconfianças mútuas.

Enquanto isso, os reféns, seja pela demora nas tratativas, por má vontade (até certo ponto justificável para com os estrangeiros) ou por ordens contraditórias vindas de um lado e do outro, começaram a saltar ao mar, os que podiam, com os portugueses correndo atrás, em uma espécie de jogo de "gato e rato" junto às naus.

Os que não conseguiram escapar, principalmente os mais velhos, foram recolhidos ao porão do navio onde estavam, mas como um deles ameaçasse se matar de jejum (as prescrições alimentares e de ambiente são muito rigorosas entre os hindus), os soldados de Calicute também prenderam vários portugueses que desceram em terra, ameaçando só soltá-los após a libertação dos reféns, Cabral, então, recuou e libertou seus reféns.

Logo depois os portugueses conseguem uma sede para a sua feitoria. Tudo não passara de uma grande perda de tempo, sem falar no estremecimento prévio de uma relação que se pretendia, segundo recomendação do rei Manuel I e revelada por João de Barros, ser vantajosa para ambos os negociadores.

Mas, se os indianos reagiram numa atitude de franca curiosidade diante dos recém-chegados, a comunidade muçulmana local ficou claramente dividida. Segundo o relato de Barros, havia dois grupos poderosos de comerciantes muçulmanos: um vinculado ao comércio terrestre e aos interesses locais (chefiado por um tal "Coge Bequij" que desde o início mostrou simpatia pelos portugueses) e outro ligado ao comércio marítimo e aos intermediários árabes, chefiado por "Coge Cemecerij" que, ao contrário, sempre foi hostil aos recém-chegados.

Os navegantes e cronistas portugueses também notaram essa diferença, definindo os dois grupos como "mouros de meca" e "mouros da terra" (indianos islamizados ou muçulmanos não árabes), sendo que o primeiro deveria ser tratado à bala, enquanto que o segundo poderia ter relações amistosas, algo complicado devido à mentalidade comunitária e integrativa do Islã.

João de Barros, analisando a disparidade de sentimentos e posturas dos dois personagens, atribui-a (como cortesão aplicado que era) à mera indisposição pessoal ou à lógica do poder: dois homens muito poderosos não podem viver juntos sem entrarem em conflito decisivo ou, como diria Alexandre o Grande, "não há lugar para dois sois na Ásia".

Mas é possível, não certo, que esse posicionamento se deva por motivos mais "concretos".

Estando mais ligado aos interesses terrestres e, logicamente, locais, Bequij tinha mais interesse que crescesse a demanda ou a concorrência entre os importadores para fazer crescer seus lucros, enquanto Cemecerij (respondendo pelos interesses de grupos importadores específicos – a maioria da Arábia que ganhava muito com o monopólio) estava mais propenso a ver os portugueses como concorrentes a ser eliminados, para a manutenção dos grossos lucros que até ali vinham tendo.

Manobrando com habilidade, Cemecerij começou a envolver os desastrados portugueses numa série de situações embaraçosas, semelhantes àquelas que tinham conseguido escorraçar as missões chinesas, igualmente comandadas por burocratas e não por comerciantes tarimbados, segundo os autores portugueses.

Para a desgraça destes, o seu tosco representante comercial, o feitor Aires Correia, caiu como um "patinho" nas manobras do concorrente – as manobras de Cemecerij, muito astuciosas e por vezes desleais, poderiam ser desfeitas ou atenuadas pelo mesmo jogo de astúcia e manha em sentido inverso, mas os burocratas portugueses só conheciam um argumento: a força bruta, uma vez que havia ali e em outros entreveros uma disputa entre o bem e o mal, vista de forma absoluta, como uma antecipação do Apocalipse.

O episódio dos elefantes e o bombardeio final
O tempo foi passando, já era dezembro, e os carregamentos de especiarias caíam como contagotas nos navios portugueses. Isso começou a preocupar Cabral, afinal, a frota tinha uma data limite para poder voltar com uma margem mínima de segurança, aproveitando-se das condições climáticas e de ventos favoráveis.

Os contatos dos portugueses com o samutiri eram feitos por meio de Aires Correia, facilmente encantado pelo maior concorrente dos portugueses, Cemecerij, enquanto Cabral ficava nos navios, agindo de acordo com as instruções de Correia.

Foi nesse ínterim que chegou a Cabral a notícia (saída do palácio do samutiri) de que iria passar por ali um grande navio mercante árabe, de Meca, carregado de especiarias e com um elefante que o samutiri ficaria muito feliz de o possuir.

Era capturar um navio inimigo e resolver vários problemas de uma vez e, segundo algumas fontes (como "Relação do Piloto Anônimo"), o samutiri fez questão de assistir ao apresamento da praia e de mandar um oficial a bordo só para observar como os portugueses lutavam.

Quando ele viu os estrangeiros ligeiramente dominarem rápida e facilmente a situação com apenas um barco pequeno contra um grande barco comercial guarnecido, afastou-se da praia, visivelmente preocupado, talvez começando a temer o grande poderio dos europeus.

Mas isso não foi o pior! O barco não era dos árabes de Meca, mas dos comerciantes de Cochim, um reino próximo, menor, mas não hostil aos portugueses, e não estava carregado com especiarias, mas com sete elefantes de guerra, importados de outra região da Índia, um dos quais morrera no combate.

Cabral cometera um ato de pirataria gratuita contra um reino neutro. Restou repreender o capitão do barco indiano por não ter permitido a abordagem pacífica, solicitada no início, e libertá-lo com o restante da carga, com o devido pedido de desculpas.

A história acima é a versão que foi contada por João de Barros, mas o Piloto Anônimo e Fernão Lopes Castanheda contam-na um tanto modificada. Nesta versão, o samutiri faz Cabral saber desde o início que a nave era de Cochim e que ele queria um elefante que ela transportava.

O comandante português relutou diante do pedido, mas como o carregamento das naus estivesse atrasado ameaçando todo o empreendimento, reuniu-se em conselho com os principais chefes da armada que o instigaram a fazer a vontade do samutiri.

Houve a batalha e, conforme este falara, havia apenas um elefante que foi capturado pelos portugueses e entregue ao governante de Calicute, que teria ficado muito agradecido, mas que fora justamente isso que exacerbou o medo e a ira do grupo mercantil árabe, preocupado com o efeito positivo daquela ação sobre o samutiri, criando uma armadilha fatal para os portugueses.

Pelo contexto e as repercussões seguintes, a versão de João de Barros parece-me a mais verossímil, mas não brigarei por isso. Pouco depois, chega da feitoria a notícia de que havia um grande navio mercante árabe no porto de Calicute, abastecendo-se secretamente, à noite, de especiarias.

O samutiri, querendo compensar os visitantes da maçada do cargueiro de elefantes, autorizara a apreensão da carga do navio pelos portugueses e, novamente, aconteceu o inesperado: ao alvorecer de 16 de dezembro de 1500, os portugueses abordaram o navio e houve uma intensa luta a bordo: o barco era de fato árabe, mas não carregava especiarias, mas apenas mantimentos comprados aos produtores de Calicute.

Foi o que bastou para os comerciantes árabes começarem um motim na cidade, que uniu muçulmanos e hindus contra os piratas portugueses.

Segundo a Relação do Piloto Anônimo, os conflitos de rua começaram logo após o ataque ao barco, com uma multidão furiosa de árabes e indianos cercando e linchando os portugueses que encontravam, forçando os sobreviventes a correrem para a feitoria que foi imediatamente cercada e invadida por centenas de manifestantes furiosos.

Lutando desesperadamente, os portugueses presentes, entre 60 e 80 pessoas, correram para a praia, ficando a maioria pelo caminho, inclusive vários membros importantes, como o feitor Aires Correia e o primeiro fã do Brasil: o escrivão Pero Vaz de Caminha.

Cabral ainda mandou barcos à praia para resgatar os sobreviventes (alguém colocara a bandeira de "feitoria sob ataque" no telhado, visível às naus), mais ou menos uns 20.

Todos esses números são incertos e variam de autor para autor. Entre os que chegaram salvos às naves portuguesas, estavam o nosso conhecido frei Henrique de Coimbra, o da primeira missa, e o filho de 12 anos do feitor, ambos muito feridos.

Informado do ocorrido, Cabral dirige o grosso das naus portuguesas para o porto da cidade, e se apodera de 10 ou 15 grandes navios comerciais árabes (o número varia por autor), massacra e prende uma parte da sua tripulação e põe fogo nos navios.

Segundo o piloto anônimo, uns 500 árabes pereceram nessa ação, enquanto Fernão Lopes dá outro detalhe sombrio: os árabes capturados durante a tomada dos navios foram amarrados e deixados dentro dos navios a queimar.

O excesso de imperícia e o amadorismo dos portugueses arrastaram uma missão comercial difícil a um grande desastre.

Da popa de seu navio na ponte de comando, Cabral observa o fogaréu consumindo barcos e tripulantes no porto, ainda hesitava, pois não era esse o objetivo da expedição sob seu comando, o pior acontecera, agora só restava dar voz às armas.

Depois dessa primeira ação, Cabral pôs os navios em linha e esperou alguma tentativa de contato com o samutiri, que explicasse o ocorrido e resolvesse, inclusive, a questão da devolução dos corpos daqueles que caíram na feitoria.

Como nada acontecia, no dia 17 de dezembro de 1500, os navios fizeram uma barragem de fogo de artilharia contra a cidade.

Dos fortins existentes saía uma fraca resposta da artilharia indiana que não causava, em absoluto, dano aos portugueses, e assim passou-se o primeiro e o segundo dia de bombardeio contínuo sobre a cidade.

Quando os artilheiros já estavam rogando praga na sétima geração do comandante, Cabral fez cessar o fogo e afastou seus navios dali, deixando a cidade desolada, com muitos prédios destruídos e várias colunas de fumaça se elevando das ruínas, rumando para o sul, para Cochim, que, apesar do embaraçoso episódio dos elefantes, recebeu os portugueses de braços abertos.

Lá, os portugueses souberam que o seu bombardeio à cidade custara umas 500 a 600 vidas, e o próprio samutiri fugira após ver um importante chefe militar tombar morto no bombardeio do seu palácio.

A justificativa para essa boa vontade de Cochim é que essa cidade era vassala e rival de Calicute e, por isso, tinha interesse na ruína desta: "o inimigo do meu inimigo é meu amigo", algo perfeitamente compreensível, aceitável e aproveitável por quem é do ramo, mas esse não era o caso de Cabral.

Segundo Chagas e Monteiro (1848), Cabral ficou um bom tempo ao largo, mergulhado em desconfianças, temeroso tanto do caso dos elefantes como da possibilidade de mais uma traição e, resguardando-se em demasia, não fora à intervenção de um converso de frei Henrique, que descera a terra e trouxera a garantira que as intenções do rajá de Cochim, em relação aos portugueses, eram a melhores possíveis.

E de fato, vencida a desconfiança inicial, os portugueses fizeram um forte aliado e conseguiram um rápido carregamento de especiarias, voltando para Portugal em 16 de janeiro de 1501, conseguindo muito mais em um mês de estadia num reino menor, do que nos três meses passados em Calicute, saindo a tempo de ver uma impressionante exibição de força do samutiri, que mandou uma esquadra com dezenas de navios de guerra, 25 de grande porte, apresentar-se diante dos portugueses. Prudentemente, os dois lados evitaram o combate.

O rescaldo
No aspecto financeiro, a viagem de Cabral foi muito bem-sucedida. João de Barros no seu livro "Da Ásia" ou "Décadas da Ásia", volume 2, relata:

"Porque foi tamanho o ganho das mercadorias que foram naquela armada de Pedralvares, que em muitas coisas com um se fez de proveito, no retorno, cinco, dez, vinte, trinta e até cinquenta, por conta das quais todas as outras razões (para se mandar ou não outra frota à Índia) ficaram dependentes desse bom proveito" (texto adaptado para o português atual).

Isso pelo menos para os conselheiros do rei Manuel I, pois, para ele, segundo o cronista, o que mais importava era a salvação das almas e, pensava o rei, vai ver que foi por isso que Deus permitiu tamanho sucesso, para melhor estimular os portugueses à salvação desses gentios.

Um sentimento muito curioso em alguém que era, de fato, o maior comerciante do reino. O comércio possibilita, mantém e leva ao auge um regime aristocrático, tocado por uma elite aristocrática por meio de uma ideologia aristocrática.

Os ganhos compensaram amplamente a perda de mais da metade dos navios da frota original, e boa parte de sua tripulação.

Pelo menos era assim que eles pensavam em relação a esse último item, relativizando e justificando a perda não só de muitas vidas humanas, mas de profissionais especializados, cujo valor e raridade não foram bem-aquilatados nesse momento, até que a sua escassez começou a ameaçar as frotas para o Oriente. Essa elite se habituara a planejar apenas no curtíssimo prazo.

Do ponto de vista econômico, também não se pode dizer que não tenha havido avanços.

É verdade que o objetivo de conseguir um acordo comercial com o reino mais poderoso do sul da Índia falhara, assim como a fixação de uma feitoria permanente lá, sem falar do custo, de agora em diante, de manter uma guerra contra um reino poderoso, além daquela que já se travava contra os árabes, mas, confiados na superioridade de seus armamentos e nas alianças de última hora, os portugueses estavam dispostos a "falar grosso".

Outro aspecto inesperado do ataque a Calicute, benéfico aos portugueses, foi o afloramento da rivalidade entre os vários reinos indianos da região que, segundo Barros, não tardaram a enviar embaixadores a Cochim, solicitando, encarecidos, que Cabral fosse aos seus portos se carregar de especiaria, oferecendo-lhe acordos vantajosos.

Para manter-se fiel ao seu projeto original e não gerar mais melindres, Cabral concentrou-se em Cochim, onde fundou uma feitoria e partiu deixando o embrião de uma futura rede comercial e de alianças políticas promissoras.

No aspecto político e até "cultural", podemos dizer que a frota de Cabral, embora não usando tanto dos métodos de seu antecessor, acabou por cristalizar em muita gente da região a imagem do português como gente de "pavio curto", o que tornava mais fácil aos seus adversários isolar e combater.

Portugal teria que buscar aliança com reinos menores para lidar com a hostilidade do maior dos reinos meridionais, o que demandava recursos e ajudou a denegrir a imagem das navegações portuguesas na região até os dias de hoje, sempre associadas à violência. O aspecto religioso-cruzadista se impôs e marcou as frotas da Índia, ainda que não fosse essa, vá saber!, a intenção original.

Os negociadores lusos, não raro, mostravam-se ingênuos e despreparados, como no caso de Aires Correia, que se aproximou com excessiva confiança dos membros do grupo que tinha mais razões para temer a presença portuguesa, e deles se fez íntimo, sem falar da gafe final de Pedro Álvares, que ao se retirar de Cochim, ante a ameaça de confronto com a esquadra de Calicute, levou consigo os reféns que o rajá de Cochim havia deixado, como garantia, causando mágoas.

João de Barros garante que a retirada de Cabral se deu em ordem, pressionada apenas pelo avançado da estação e pelo foco no carregamento de especiarias, mas o episódio dos reféns, se Cabral não era um grande mau caráter, aponta mais para uma fuga desabalada.

O início catastrófico dos contatos com a Índia, a mistura confusa de cruzadismo com comércio e interesses fiscais, arrastou Portugal a uma guerra contra Calicute e reinos muçulmanos do Índico.

Essa guerra durou décadas, consumiu recursos e reduziu consideravelmente os lucros que se poderiam obter por meio de empreendimentos comerciais pacíficos e/ou uma política mais abrangente e flexível de alianças que minimizasse os custos das guerras.

Foi assim que os ingleses se tornaram, posteriormente, os colonizadores mais bem-sucedidos da região.

Havia muito que aprender, mas a forma como o império português se firmou na região nos mostra, aparentemente, que os portugueses estavam muito mais dispostos a ensinar que a aprender e, talvez por isso, sua lição tenha sido tão breve.

Do lado do samutiri e dos comerciantes árabes, a coisa não saiu melhor, pois o incidente com Cabral provocou retaliações severas (a cidade sofreu um bombardeio mais pesado ainda em 1502) que obrigaram os calicutenses ao engajamento numa guerra demorada e custosa, da qual saíram derrotados e a cidade perdeu definitivamente o seu poderio e a sua imagem de grande suserana, passando a ser aliada menor em grandes alianças antilusas ou vassala de outras potências europeias, como a Holanda, a partir do século XVII, e a Inglaterra, a partir do século XVIII.

Os mercadores árabes também sofreram prejuízo, perdendo definitivamente o controle do grande comércio marítimo do Oceano Índico.

Talvez, se tivessem agido com mais habilidade (percebendo o poderio dos portugueses e se dispondo a esvaziar a mentalidade de guerra religiosa), eles pudessem negociar posições vantajosas nesse comércio que fatalmente teria que ser dividido com as potências europeias, com mais oportunidades para propagar a sua cultura e a sua fé.

O ataque da Wikipédia
É fato sabido da importância e da influência da enciclopédia eletrônica "Wikipédia" como fonte de coleta de informações para os estudantes e para o homem comum, mesmo que reconheçamos a qualidade extremamente precária das informações nela contidas, principalmente na que é versada em língua portuguesa, mais acessível ao nosso estudante, mas vale consultá-la para sabermos como determinados temas de nossa história são vistos por outros povos e, nesse sentido, a sua contribuição é inestimável.

Buscando informações sobre como a ação de Cabral era vista pelos historiadores e pesquisadores de língua inglesa (ingleses e norte-americanos, além de indianos), afinal, a Índia foi colônia da Inglaterra por mais de 200 anos, encontrei algumas coisas interessantes:

a) Para eles, a pessoa de Cabral é tratada com muita hostilidade, divulgando-se que ele vinha carregado de más intenções desde o início. O site indiano www.india-world.net afirma que Cabral foi o primeiro comandante a exercer a diplomacia da canhoneira (1).

b) Afirmam que Cabral já chegou com imposições descabidas, como a expulsão dos árabes de Calicute . No india-world.net, essa exigência é assinalada no texto com letras em negrito (2).

c) Eles reconhecem que os comerciantes árabes ficaram preocupados e que certamente urdiram tramas, cujo alcance não dá para saber.

d) Que a disputa era só entre árabes e portugueses, o que não justificava o bombardeio da cidade. No site india-world.net, o massacre dos portugueses é citado rapidamente como se fosse uma briga de rua, sem maiores consequências (3), enquanto a resposta de Cabral ao massacre é ressaltada em toda sua crueldade, novamente em negrito (4).

d) A Wikipédia vai mais longe ao afirmar que a frota de Cabral foi um fracasso "cuidadosamente ocultado" (5).

A causa disso seria a grande quantidade de barcos afundados e as perdas de vidas.

A alegação de incompetência (incompetence) correu nos círculos mais fechados da corte e, por isso, segundo um autor indiano, Sanjay Subrahmanyam, o comando da frota de 1502 foi-lhe oferecido apenas "pro forma" e não de forma sincera (6), e a imposição de um comando limitado e supervisionado (7) foi a forma de criar uma condição humilhante para forçá-lo a pedir demissão do comando da chamada "Frota da Vingança" (8), pasmem! Não adianta correr para o verbete em português, pois este não passa de uma tradução do inglês.

O curioso de todas essas colocações é que elas não fazem uso em nenhuma vez de citações das diversas fontes portuguesas contemporâneas, mostrando o seu caráter mais propagandístico e panfletário que histórico.

A defesa da história
Embora a agressividade dos navegantes portugueses seja notória e incontestável, principalmente no caso de Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque, não creio que ela se enquadre bem no caso de Cabral em Calicute, visto o conjunto das circunstâncias que se formaram e que apontam mais para uma diplomacia desastrada, antes que agressiva, no caso específico de Calicute.

Acusar Cabral de ser o iniciador da "política das canhoneiras" alivia muito o peso da consciência de ingleses e norte-americanos que a usaram de maneira muito mais frequente e agressiva, como na abertura forçada dos portos chineses e japoneses, inclusive pela mais imoral de todas as guerras: a Guerra do Ópio de 1842, numa época em que a diplomacia e os costumes internacionais já haviam evoluído e se "civilizado" muito desde Cabral.

Seria de fato muito estranho, para dizer o mínimo, se o rei de Portugal já chegasse ao primeiro contato com o soberano de um país desconhecido, impondo condições mais cabíveis a um vassalo ou súdito.

Seria extravagante até para os costumes do século XVI, a não ser que já houvesse o nítido objetivo de fazer guerra a esse país – o que não parece ser o caso, a não ser que apareça algum documento novo.

O historiador português Fernão Lopes Castanheda, em sua obra "História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses" (ele foi um historiador contemporâneo aos acontecimentos e famoso por fazer uso de fontes fidedignas) reproduz a carta de Manuel I ao samutiri que, apesar da sua prolixidade e menções veladas à superioridade da religião cristã e à evidência do seu Deus, só fala em aliança e amizade, sem citar os mercadores árabes.

Sem falar que nas outras cidades indianas, nas quais os portugueses construíram alianças, nenhum pedido dessa natureza foi feito. Por que só em Calicute houve essa imposição extravagante?

Quem primeiro fez menção sobre a expulsão dos mercadores árabes de Calicute, que o samutiri, em sua correspondência, fez alçar a uns quatro mil, segundo João de Barros, foi o navegador Vasco da Gama na expedição de 1502, em seu ultimato entregue às vésperas do segundo bombardeio da cidade.

Os portugueses têm um sério problema com essa história: se a conspiração dos mercadores árabes existiu mesmo, não ficaram provas concretas, enquanto que a tomada e a queima dos navios, assim como o bombardeio da cidade são fatos incontestáveis. Nos casos do conluio dos mercadores, ficará sempre a palavra dos portugueses contra a dos árabes e hindus.

A imagem de Cabral ficou sobremaneira desgastada por apenas uma razão: ele era o comandante da seção naval da expedição, mas ele só desceu em terra uma vez para negociar com o samutiri.

Todas as negociações foram feitas pelo feitor Aires Correia, pois era essa a sua função e era por meio de Correia, depois de ouvi-lo, que Cabral agia.

Por conseguinte, se houve alguém que pôs tudo a perder e pode ser considerado o principal causador da catástrofe final, foi aquele que teve a vantagem, "histórica", de sair morto do conflito.

Segundo João de Barros, que provavelmente reproduz apenas o espírito das palavras de Cabral, se é que os antigos não tinham uma memória muito mais privilegiada que a nossa (o que também é possível), após se inteirar do massacre na feitoria, teria dito:

"Louvado seja Deus! Que é mais poderoso para nos destruir um amigo simulado que um inimigo em campo aberto. Aires Correia tinha por amigo aquele mouro Cemecerij e confiava em suas palavras e eu descansava nas suas (de Correia), e assim ele morreu, desenganado do falso amigo, e eu morro (de arrependimento) porque enganei a muitos, parecendo-me que acertava ao seguir os seus conselhos. Entretanto, ele morreu como um nobre guerreiro, assim como os outros que com ele se vão [mortos], e todos eles, por servirem a El Rey Nosso Senhor, findaram nobremente a sua vida, e eu invejo mais ainda a sua morte, mais do que essas minhas quartans (acessos de malária, que ele pegou durante a viagem, e que poderiam ser usadas como sinal de sua dedicação ao Rei): todavia, eu trocaria uma hora da vida de Aires Correia por dez anos da minha, somente para poder argui-lo de algumas coisas que eu lhe avisei e ele não me cria. Porém, como foi da vontade de Nosso Senhor (Deus) que viéssemos a finalizar o nosso encontro com esse Samorim em pior estado do que quando chegamos, tomemos esse desastre na conta dos mortos, pois estes acabaram nele, e a nossa causa por princípio de bom despacho (de boa fé), pois nos dá razão a não diminuir [a impressão de] quantos enganos há três meses sofremos" (texto adaptado para o português atual).

Dizer que a esquadra de Cabral foi um grande fracasso financeiro "claramente silenciado" (conspicuously muted) sem citar uma fonte é, no mínimo, irresponsabilidade, quando todas as fontes contemporâneas falam de grandes lucros e festas de recepção.

A primeira expedição de Vasco da Gama, proporcionalmente, sofreu perdas muito maiores que justificavam o envio de frotas, uma após outra, para lá, a não ser que o rei de Portugal gostasse de levar prejuízo ou que essas missões eram puramente militares. Faziam a guerra pela guerra, por puro prazer!

Quanto a um possível trauma real pela perda de tantas vidas humanas no contexto daquele período histórico, deixo essa questão para ser discutida por quem acredita em fadas e duendes.

O mesmo raciocínio vale para as disputas entre os grupos palacianos que visavam "queimar" a esse ou aquele cortesão que estivesse subindo muito na conta do rei.

O fato de haver uma forte corrente oposta a Cabral é, pelo contrário, um forte indicativo do aumento do seu prestígio, o que fatalmente provocará a sua queda a seguir.

Sanjay Subrahmanyam parece entender tanto de corte europeia renascentista quanto os portugueses renascentistas entendiam de elefantes indianos.

Não dá para fazer uma análise histórica de uma era recuada usando conceitos morais e valores (éticos e financeiros) criados em épocas muito posteriores.

A questão sobre o comando da expedição de 1502 e o consequente afastamento de Cabral dos empreendimentos navais, se é que a expedição de 1500 foi tão bem-sucedida como dizem os portugueses, merece alguma consideração mais cuidadosa.

Os autores contemporâneos são muito reticentes quando falam desse assunto, parecem temer algo, como se Cabral tivesse caído em grande desgraça, confirmando, parcialmente, a tese do "fracasso" dele.

A única fonte que fala um pouco mais é João de Barros, no volume 2 de "Da Ásia", onde na pág. 22 da versão online, diz que o rei resolveu colocar cinco navios, dos 15 que faziam parte da armada, sob o comando de Vicente Sodré, tio de Vasco da Gama, com a missão específica de fechar o estreito do Mar Vermelho aos árabes, para inviabilizar, em definitivo, a sua participação no comércio de especiarias.

Esse grupo teria um comando independente, vinculado diretamente ao rei.

"Pedro Álvares Cabral quando viu esse apartamento de velas, de modo quase isento ao seu comando, não ficou contente. E como ele era homem de muitos primores acerca de pontos de honra, teve sobre este negócio alguns requerimentos, a que ElRey não satisfez. Finalmente ele não foi" (adaptado do português antigo).

Aparentemente, ele pediu demissão de modo enfático e inesperado, obrigando o rei a dar o comando a Vasco da Gama, que não era a melhor das soluções, pois o comando da missão ficava quase todo com uma família – um dos navios da esquadrilha de Sodré era comandado por um irmão deste: Braz Sodré.

Tudo indica que houve uma intensa e desgastante luta de bastidores entre duas facções, "cabralistas" e "vascaístas", tão desgastante que o rei proibiu, sob pena de degredo, que se falasse nesse assunto na sua frente, segundo o verberte "Pedro Álvares Cabral", na Wikipédia em inglês, citando um autor desconhecido: William Greenlee.

Isso explicaria a parcimônia dos portugueses da época em falar sobre esse assunto e, no mais, essa ideia de comando compartilhado, muito estranha e inadequada em termos de eficiência, é bem conhecida de nós brasileiros que tivemos a experiência de uma estrutura de governo-geral onde cada titular respondia diretamente ao rei; uma bela forma de não criar funcionários muito poderosos e autônomos frente a um soberano cioso do seu poder.

Mais tarde, em 1514, Afonso de Albuquerque intercedeu por Cabral, a Wikipédia, citando Subrahmanian e Greenlee, diz que ele foi mal-sucedido, mas segundo Abramo (1972) aconteceu justo o contrário: Cabral teve um aumento na sua pensão e, em 1518, foi nomeado para o Conselho Régio, e, embora não tenha voltado mais ao mar, ele estava de novo entre os maiores.

Mais lenha na fogueira
A querela de Calicute, no seu estado atual, coloca as duas posições em contraste absoluto: ou os detratores de Cabral têm razão, e nesse caso Cabral, e a liderança da esquadra portuguesa em Calicute não passa de um conluio de piratas e criminosos - genocidas em potencial - ou, no caso dos historiadores portugueses estarem mais próximos da verdade, ele foi vítima de uma das mais infames tramas da história das relações internacionais, com muita lama respingando no samutiri, cujo papel, estranhamente, não é citado pelas fontes anglo-indianas.

Os autores portugueses falam de certa duplicidade, de uma manha, por parte daquele governante, embora não de uma hostilidade aberta.

Ele teria como que ficado em cima do muro tentado se acomodar aos dois contendores procurando discernir qual era o lado que mais lhe interessava, pois ainda não conhecia o poderio dos portugueses nem queria entrar em choque com a poderosa comunidade mercantil árabe da cidade.

Outros autores, como o piloto anônimo, que participou pessoalmente no combate da feitoria, assevera que viu guardas do samutiri junto aos árabes, durante o ataque, o que compromete a teoria de um conflito apenas entre árabes e portugueses.

Uma descoberta recente, porém, acende esse assunto de uma maneira inesperada: Uma carta enviada por representantes da comunidade cristã de Calicute, supostamente fundada pela ação missionária do Apóstolo Tomé, que foram testemunhas dos acontecimentos na Índia, dirigida ao patriarca de sua igreja, na Síria, traduzida e impressa no número XXXVI da Revista da Universidade de Coimbra de 1991, confirma a versão dos historiadores portugueses e "carrega" na culpa do samutiri, que teria participado ativamente do conluio contra os portugueses

Com isso, fica a questão: por morarem lá eles teriam um acesso privilegiado ao que estava acontecendo e seriam as testemunhas conclusivas ou a questão religiosa, o fato de os portugueses serem cristãos como eles, teria pesado mais? Ao que se sabe, não havia conflitos sérios entre cristãos e muçulmanos na Índia, não havendo, portanto, uma predisposição antimuçulmana ou anti-hindu "declarada".

Eis o trecho da carta:

"De novo [menção à esquadra anterior de Vasco da Gama] mandou o dito Rei... seis enormes navios [os que sobraram da esquadra de Cabral]... Mas há na cidade de Calicut Ismaelitas numerosos... e acenderam na sua inveja aos cristãos; e foram caluniá-los perante o rei gentio; e mentiram-lhe àcerca deles... E aquele rei gentio acreditou na palavra deles e fez-lhes a vontade: como que tomado de loucura mandou matar todos aqueles ditos Frangues [portugueses] que estavam na sua cidade, setenta homens e cinco sacerdotes justos que estavam com eles [os companheiros de frei Henrique, acredita-se que morreram dois frades franciscanos e três padres, cujos nomes se perdeu], pois não partem sem sacerdote para parte alguma. E o resto dos homens que tinham ficado a bordo fizeram-se ao mar com grande tristeza, amargura e pranto, e foram para junto de cristãos nossos, na cidade que se chama Cochim" (pág. 137-138).

Uma concordância com agravante: o samutiri participou ativamente do ataque aos portugueses, o que o coloca entre os mais infames personagens das relações internacionais, mas também uma divergência: supõe que todos os portugueses morreram (será que esta foi a versão oficial em Calicute?) e não faz menção do bombardeio de Cabral, que os portugueses afirmam que houve – mais adiante, a carta cita o bombardeio realizado por Vasco da Gama em 1502.

Se tivéssemos que escolher uma frase para fechar esse artigo nós ficaríamos a seguinte: o povo que não cuida da sua história a conhecerá contada por povos que o desprezam, do jeito que melhor lhes convém.

Epílogo bizarro
Em um programa da década de 1990, a apresentadora Regina Casé fez uma viagem a Portugal com a finalidade de mostrar a casa onde viveu Pedro Álvares Cabral, e depois de algumas matérias muito interessantes sobre o temperamento (ora desconfiado ora depressivo do povo português quando comparado ao brasileiro) e algumas situações malucas (Regina quase nocauteou uma velha portuguesa com uma "traseirada"), ela chegou à casa de Cabral em Santarém.

Foi então que soubemos que a casa de nosso ilustre "descobridor" fora, em épocas anteriores, a sede de um bordel, e que estava, naquele instante, em reformas para se transformar na "Casa do Brasil"... sem ironia.

Que ligação mais melancólica para alguém tão cioso dos "primores" da honra! Se Cabral soubesse disso, naquele tempo, certamente teria preferido virar poeira nas ruas de Calicute junto ao nosso Pero Vaz.

Notas
(1) "Gunboat diplomacy", usada para expressar um tipo de política colonialista, principalmente do século XIX, quando os países europeus fazia demonstrações de força, estacionando uma poderosa frota de navios no principal porto da do país da África ou da Ásia que eles queriam intimidar. A América do Sul e o Brasil também foram vítimas dessa diplomacia, com aconteceu durante a caça dos navios que faziam o tráfico de escravos e durante a Questão Christie, durante o século XIX.

(2) "Mana Vikrama [o samutiri] was seated on a throne this time, wearing a lungi, the local form of sarong. He was offered a treaty of friendship, which he accepted; and an order to expel all Muslims, which he refused. In the harbour, Cabral..."

(3) "The portuguese compound was attacked by Arab merchants"

(4) "Cabral seized ten merchant ships and their crew were burn alive in full view of the citizens. (Three elephants found in the cargo were eaten)". Observe-se que o texto chama a atenção para três elefantes que estavam nos navios de carga incendiados, que foram mortos e comidos pelos portugueses, que ainda não sabiam que o elefante é um dos animais mais sagrados da cultura hindu. Um grande "fora"! A citação destacada de que os membros da tripulação dos navios foram queimados vivos às vistas de todos, não deixa de ser uma grande de hipocrisia, pois nessa época muitas senhoras eram queimadas vivas, junto ao cadáver de seus maridos recém-falecidos, na Índia, em grandes eventos públicos.

(5) "On the surface, Pedro Álvares Cabrals 2nd Armada had been a failure and the reaction was conspicuously muted" ("2nd Portuguese India Armada (Cabral,1500)").

(6) "Pro forma gesture than a sincere oferr".

(7) "Limited and supervised".

(8) "Revenge fleet".

Bibliogafia
A carta que mandaram os padres da Índia da China e da Magna China - um relato siríaco da chegada dos portugueses ao Malabar e seu primeiro encontro com a hierarquia cristã local; Luiz Felipe F R Thomaz (Universidade de Lisboa) in Revista da Universidade de Coimbra, ano XXXVI, 1991, pg 119 -181. In, http://books.google.com.br/books?id=GPJNuytLU7cC&pg=PA161&lpg=PA161&dq=ataque+%C3%A0+feitoria+portuguesa+em+calicute&source=bl&ots=dcQwcLzBEo&sig=pSMofzEJRoYeJTM5asVfE6gI15E&hl=pt-BR&sa=X&ei=eiJGT8OLB8fE0QGE7dykDg&ved=0CC8Q6AEwAjgK#v=onepage&q=ataque%20%C3%A0%20feitoria%20portuguesa%20em%20calicute&f=false

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CASTANHEDA, Fernão Lopes. Historia do descobrimento e (conqvista da índia) pelos portvgveses. Nova edição. Lisboa. typographia rollandiana. MDCCCXXXIII. por ordem superior. pg 102-130. In

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http://www.india-world.net/op-ed/portuguese.htm - acesso 13 de fevereiro de 2012.

Relação do piloto anônimo (trechos); apresentada por Jean Marcel França. In, http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/histdescob1.htm - acesso 15 de fevereiro de 2012.

http://veja.abril.com.br/historia/descobrimento/pedro-alvares-cabral.shtml - acesso 20 de fevereiro de 2012.

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