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Contar histórias em casa: A narrativa como memória familiar - 14/09/2011
José Ruy Lozano

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A palavra “narrativa” é bastante conhecida. As pessoas de mais idade cresceram ouvindo seus pais e avós contando histórias e aprenderam a produzir narrativas na escola, principalmente nas séries iniciais.

O universo dessa narrativa, no entanto, é pejorativamente associado às fábulas e aos contos maravilhosos, ligado necessariamente ao mundo da infância. No mundo dos adultos, informa-se, diz-se, descreve-se, opina-se, twitta-se, fofoca-se, mas muito pouco se narra. Na sociedade contemporânea em particular, o espaço da narrativa no meio familiar encontra-se cada vez mais reduzido, sitiado pelo distanciamento e pelas novas mídias.

Para esclarecer a importância social de “contar histórias” e seu eventual desaparecimento no mundo moderno, vamos tentar estabelecer um contraste entre passado e presente, a fim de descobrir a origem e os desdobramentos de muitos dos processos cuja trajetória vivenciamos hoje.

No mundo da tradição, anterior ao mundo moderno, a narrativa associava-se à experiência. O saber feito da experiência do passado e da vivência do mundo se tornava fonte de histórias, passadas oralmente de geração em geração, ou, nos meios letrados, por meio da escrita. O discurso do narrador continha intenções educativas: os enredos guardavam ensinamentos, justificavam provérbios ou sustentavam conselhos.

O aconselhamento tradicionalmente se configurava como necessidade social: tratava-se da transmissão do saber adquirido pelos mais idosos e experientes ou por aqueles que retornavam ao lar, que vieram de longe e carregavam conhecimentos inéditos. Ou mesmo pelos que jamais deixaram sua terra e sua gente, mas as conheciam como ninguém.

O narrador mostrava-se, assim, como portador de uma sabedoria especial. Mais que responder diretamente às perguntas, sugeria, por meio de suas histórias, possibilidades de respostas construídas pelo conjunto de sua vida e do passado da comunidade. À sua experiência mesclava a vivência dos outros, incluindo também em seus enredos o que ouviu ou leu.

Portanto, o aconselhamento elaborado internamente, na substância viva da vida, tinha o nome respeitável de sabedoria. Se a arte de contar histórias hoje está acabando, talvez a sabedoria esteja em processo de extinção. O mundo moderno preza “notícias” e não “narrativas”. Vivemos em um mundo em que a rapidez dominou nossa rotina, transformando o bate-papo e a troca de experiências sem utilidade objetiva em algo raro ou episódico.

Dessa forma, estamos cada vez mais privados de uma possibilidade que parecia estável e imprescindível: a possibilidade de trocar experiências. Adquirimos intensamente informações úteis em curto prazo e deixamos de lado o conhecimento experimentado ao longo do tempo. Nesse quadro, há pouco espaço para o encantamento. Todos os dias chega pelo noticiário uma enorme multiplicidade de fatos já acompanhados de explicações especializadas.

Mas o encanto e a arte da narrativa estão em não haver explicações prévias. Eventos extraordinários podem ser narrados com grande exatidão, mas o contexto psicológico do enredo não é necessariamente explicitado ao leitor. A interpretação é livre, e isso faz com que qualquer narrativa atinja sentidos que não existem na mera informação.

Os efeitos dessa configuração social que sufoca a narrativa são nefastos. O primeiro deles é a crise da atenção. Se nada é permanente, muito pouco deve ser registrado. Informações instantâneas têm duração curta: o interesse por elas é passageiro ou conjuntural. Outro efeito é a diminuição da imaginação. Ela, paulatinamente, tem desaparecido das redações escolares, por exemplo.

Quando um professor solicita uma narrativa, esta vem muitas vezes recheada de elementos da realidade mais cruel ou dura possível; o espaço do possível ou do imaginário é drasticamente reduzido, e a consequência disso é, cada vez mais, um enorme conformismo com a realidade que está posta. Não há outro mundo possível, só este, do presente, do agora, objetivo e “real”.

Se a informação simplesmente reproduz a realidade, a narrativa pode ter o condão de transformá-la, por meio da imaginação de um mundo diferente, inusitado. Sem a imaginação, estaremos condenados a repetir o cotidiano indefinidamente, sem vislumbrar saídas ou respostas que transcendam a realidade impositiva.

E o desaparecimento da arte de contar histórias na família? Qual o papel da memória, do passado, dos mais velhos, na educação dos mais jovens? Devemos ressaltar que uma das funções da narrativa é produzir a lembrança, perpetuar o que foi, imprimir alguma marca duradoura no mundo. A simples existência não garante a preservação do que fomos ou pelo que passamos.

A memória familiar só terá espaço no futuro das crianças pelo cultivo das histórias dos mais velhos, dos antepassados, representativos do sentido da presença e da inserção dos membros da família no mundo.

Além disso, o cultivo da narrativa em família engrandece de sentido o que vivemos, pois os fatos eventualmente narrados vêm atravessados pela experiência de quem os conta, o que os enriquece e os torna mais densos de significado.

A narrativa conserva suas forças por muito tempo, permanecendo na lembrança muito além do dia em que foi produzida. Se quisermos ensinar algo, o exemplo e a narrativa, portadora de saberes e plena de vivência coletiva –– de cultura, portanto ––, são os grandes veículos com os quais podemos contar.

José Ruy Lozano é professor do Ético Sistema de Ensino (www.sejaetico.com.br), da Editora Saraiva, e licenciado em ciências sociais e letras pela Universidade de São Paulo (USP).

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