A palavra “narrativa” é bastante
conhecida. As pessoas de mais idade cresceram ouvindo seus pais e
avós contando histórias e aprenderam a produzir
narrativas na escola, principalmente nas séries iniciais.
O universo dessa narrativa, no entanto, é pejorativamente
associado às fábulas e aos contos maravilhosos,
ligado necessariamente ao mundo da infância. No mundo dos
adultos, informa-se, diz-se, descreve-se, opina-se, twitta-se,
fofoca-se, mas muito pouco se narra. Na sociedade
contemporânea em particular, o espaço da narrativa
no meio familiar encontra-se cada vez mais reduzido, sitiado pelo
distanciamento e pelas novas mídias.
Para esclarecer a importância social de “contar
histórias” e seu eventual desaparecimento no mundo
moderno, vamos tentar estabelecer um contraste entre passado e
presente, a fim de descobrir a origem e os desdobramentos de muitos dos
processos cuja trajetória vivenciamos hoje.
No mundo da tradição, anterior ao mundo moderno,
a narrativa associava-se à experiência. O saber
feito da experiência do passado e da vivência do
mundo se tornava fonte de histórias, passadas oralmente de
geração em geração, ou, nos
meios letrados, por meio da escrita. O discurso do narrador continha
intenções educativas: os enredos guardavam
ensinamentos, justificavam provérbios ou sustentavam
conselhos.
O aconselhamento tradicionalmente se configurava como necessidade
social: tratava-se da transmissão do saber adquirido pelos
mais idosos e experientes ou por aqueles que retornavam ao lar, que
vieram de longe e carregavam conhecimentos inéditos. Ou
mesmo pelos que jamais deixaram sua terra e sua gente, mas as conheciam
como ninguém.
O narrador mostrava-se, assim, como portador de uma sabedoria especial.
Mais que responder diretamente às perguntas, sugeria, por
meio de suas histórias, possibilidades de respostas
construídas pelo conjunto de sua vida e do passado da
comunidade. À sua experiência mesclava a
vivência dos outros, incluindo também em seus
enredos o que ouviu ou leu.
Portanto, o aconselhamento elaborado internamente, na
substância viva da vida, tinha o nome respeitável
de sabedoria. Se a arte de contar histórias hoje
está acabando, talvez a sabedoria esteja em processo de
extinção. O mundo moderno preza
“notícias” e não
“narrativas”. Vivemos em um mundo em que a rapidez
dominou nossa rotina, transformando o bate-papo e a troca de
experiências sem utilidade objetiva em algo raro ou
episódico.
Dessa forma, estamos cada vez mais privados de uma possibilidade que
parecia estável e imprescindível: a possibilidade
de trocar experiências. Adquirimos intensamente
informações úteis em curto prazo e
deixamos de lado o conhecimento experimentado ao longo do tempo. Nesse
quadro, há pouco espaço para o encantamento.
Todos os dias chega pelo noticiário uma enorme
multiplicidade de fatos já acompanhados de
explicações especializadas.
Mas o encanto e a arte da narrativa estão em não
haver explicações prévias. Eventos
extraordinários podem ser narrados com grande
exatidão, mas o contexto psicológico do enredo
não é necessariamente explicitado ao leitor. A
interpretação é livre, e isso faz com
que qualquer narrativa atinja sentidos que não existem na
mera informação.
Os efeitos dessa configuração social que sufoca a
narrativa são nefastos. O primeiro deles é a
crise da atenção. Se nada é
permanente, muito pouco deve ser registrado.
Informações instantâneas têm
duração curta: o interesse por elas é
passageiro ou conjuntural. Outro efeito é a
diminuição da imaginação.
Ela, paulatinamente, tem desaparecido das
redações escolares, por exemplo.
Quando um professor solicita uma narrativa, esta vem muitas vezes
recheada de elementos da realidade mais cruel ou dura
possível; o espaço do possível ou do
imaginário é drasticamente reduzido, e a
consequência disso é, cada vez mais, um enorme
conformismo com a realidade que está posta. Não
há outro mundo possível, só este, do
presente, do agora, objetivo e “real”.
Se a informação simplesmente reproduz a
realidade, a narrativa pode ter o condão de
transformá-la, por meio da imaginação
de um mundo diferente, inusitado. Sem a
imaginação, estaremos condenados a repetir o
cotidiano indefinidamente, sem vislumbrar saídas ou
respostas que transcendam a realidade impositiva.
E o desaparecimento da arte de contar histórias na
família? Qual o papel da memória, do passado, dos
mais velhos, na educação dos mais jovens? Devemos
ressaltar que uma das funções da narrativa
é produzir a lembrança, perpetuar o que foi,
imprimir alguma marca duradoura no mundo. A simples
existência não garante a
preservação do que fomos ou pelo que passamos.
A memória familiar só terá
espaço no futuro das crianças pelo cultivo das
histórias dos mais velhos, dos antepassados, representativos
do sentido da presença e da inserção
dos membros da família no mundo.
Além disso, o cultivo da narrativa em família
engrandece de sentido o que vivemos, pois os fatos eventualmente
narrados vêm atravessados pela experiência de quem
os conta, o que os enriquece e os torna mais densos de significado.
A narrativa conserva suas forças por muito tempo,
permanecendo na lembrança muito além do dia em
que foi produzida. Se quisermos ensinar algo, o exemplo e a narrativa,
portadora de saberes e plena de vivência coletiva
–– de cultura, portanto ––,
são os grandes veículos com os quais podemos
contar.
José
Ruy Lozano é
professor do Ético Sistema de Ensino (www.sejaetico.com.br),
da Editora Saraiva, e licenciado em ciências sociais e letras
pela Universidade de São Paulo (USP).