Aprender com as Diferenças
 

Em terra de cego, quem tem um olho pode ser escravo! - 30/08/2010
Sonia B. Hoffmann

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É corriqueiro o dito popular "em terra de cego, quem tem um olho é rei". No entanto, uma análise realista da situação nos mostra claramente um equívoco nesta afirmativa. É mais fácil que torne-se um escravo do que propriamente um rei.

Esta condição é cronificada, se for uma pessoa castradora, de personalidade servil ou adepta do pensamento de que os deficientes visuais são incapazes e sem possibilidades para providenciarem até mesmo a satisfação de necessidades e vontades primárias no que diz respeito aos cuidados pessoais e à administração doméstica.

Há muitos pais e parentes que, desde a infância da pessoa cega ou com baixa visão, colocam-se na posição de cuidadores ou tutores omni presentes, enredando-se na vitimização e causando, com esta postura, um mal estar no relacionamento parental e um sentimento de piedade ou de indiferença nas outras pessoas.

Por sua vez, em função deste comportamento do outro social, é possível que a pessoa com deficiência visual também desenvolva sentimentos egóicos fragilizados ou superfortalecidos que, ao longo do tempo, provocam o adoecimento das interrelações e até seu isolamento social. 


Ao sentirem-se reféns, é provável que muitos Inconscientemente tornem-se ou submissos, ou insatisfeitos, ou agressivos com aqueles que julgam responsáveis por semelhante condição.

José Espínola Veiga , em seu livro A vida de quem não Vê, ilustra brilhantemente a condição de sequestradores de vivências que muitos pais e parentes adotam em relação à pessoa cega ou com baixa visão:

"O filho vai de 3 para 4 anos, e nada se lhe ensina. - Coitadinho, deixa! ... Mexem-lhe o café, picam-lhe o pão, põem-lhe a comida na boca, descascam-lhe a banana, deixam-no que meta a mão no prato. - Coitadinho! Já basta o que ele sofre!... E a criança não sofre nada com a falta da vista ... Sofrerá, sim, mais tarde, a consequência dessa educação mal dirigida."

Vários grupos familiares são condescendentes e mesmo irresponsáveis na orientação e instrumentalização de pessoas cegas com os conhecimentos e informações sobre o desempenho e o modo de realização de atividades da vida diária, afrouxando comportamentos disciplinadores e dispensando a aquisição de hábitos saudáveis de condutas para seus filhos, irmãos ou parentes deficientes visuais. 


Com isto, parecem esquecer que não estarão eternamente disponíveis, que seus parentes com deficiência visual têm o direito de construirem-se por vias alternativas de desenvolvimento e que o outro social não poderá ou terá vontade de responsabilizar-se pela solução de problemas criados pela imprudência ou pela superproteção alheia.

Como profissional da área da educação e da reabilitação de pessoas com deficiência visual, ouvi muitos depoimentos e relatos de pessoas que enxergam sobre seus sentimentos diante do comportamento de muitos cegos, enfatizando principalmente sua maneira de alimentar-se, o seu vestuário e a negligência com sua aparência pessoal.

Muitos afirmaram que evitam almoçarem, jantarem ou fazerem qualquer tipo de lanche junto com uma pessoa cega ou com baixa visão, pois suas experiências foram lastimáveis. Alguns disseram do seu sentimento de pena ao verem pessoas cegas vasculhando no prato ou na mesa pedaços e restos de alimentos com suas mãos, sem utilizarem faca, garfo ou colher quando necessário e como previdência. 

Muitos comentaram sobre o sentimento de impotência ao verem que uma pessoa cega pode levar, com frequência, o garfo ou a colher vazia à boca porque os alimentos se desprenderam ou caíram do talher durante o trajeto. Outros comentaram sobre a repugnância sentida ao verem pessoas cegas ou com baixa visão levando à boca pedaços enormes de alimentos, mastigarem de "boca aberta".

e sem usarem adequadamente sua arcada dentária, deixarem alimentos caírem da boca, falarem de "boca cheia" ou fazerem barulhos ou ruídos excessivos na mastigação e ingestão de líquidos ou alimentos cremosos.

Relativamente ao vestuário, muitas pessoas relatam que percebem haver uma certa negligência ou descaso da pessoa cega com a combinação de cores, texturas, adequação e limpeza da roupa, do calçado e de possíveis acessórios. O mesmo afirmam sobre os cuidados com a aparência de muitos cegos, especialmente quanto à limpeza e corte das unhas, escovação de dentes, limpeza do nariz e da prótese ocular, quando presente.

No entanto, pessoas cegas também relatam sobre os seus sentimentos na realização de atividades rotineiras e muitas afirmam que evitam alimentar-se em público ou participarem de encontros e festas, pois sentem-se inseguros, envergonhados e que não estão preparados para conviverem socialmente com outras pessoas que não sejam os pais, os irmãos, parentes ou cônjuges. 

Referem,também, que evitam a diversificação de cores e texturas em seu vestuário, pois temem o ridículo ou acharem-se "descombinantes", mesmo que a moda nem sempre esteja apontando tal preocupação. Esta moda, muitas vezes, é compassiva com aqueles que enxergam, mas pode ser perversa com aqueles que não veem.

Dificilmente, entretanto, são encontrados familiares, amigos ou professores que mantêm uma conversa franca e adequada com a pessoa com deficiência visual sobre sua maneira de alimentar-se, vestir-se ou cuidar da sua aparência. 

Da mesma forma, dificilmente são encontradas pessoas cegas ou com baixa visão que aceitam estes comentários e estas informações com naturalidade porque acostumaram-se ou foram acostumadas à displicência ou descaso, melindrando-se ou magoando-se diante da menor contrariedade.

Contudo, já é hora de todos nos alertarmos para a inclusão do respeito, da sensibilidade e da generosidade em nossas interrelações e, urgentemente, adquirirmos o hábito de sairmos da nossa posição e nos percebermos na condição do outro, exercitando dificuldades, possibilidades, papéis e funções - sejam elas de reis ou de escravos.

Escrito por Sonia B. Hoffmann.

Disponível em http://www.diversidadeemcena.net

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