Aprender com as Diferenças
Em terra de cego, quem tem um olho pode ser escravo!
Sonia B. Hoffmann
É
corriqueiro o dito popular "em terra de cego, quem tem um olho
é rei". No entanto, uma análise realista da
situação nos mostra claramente um
equívoco nesta afirmativa. É mais
fácil que torne-se um escravo do que
propriamente um rei.
Esta condição é cronificada, se for
uma pessoa castradora, de
personalidade servil ou adepta do pensamento de que os deficientes
visuais são incapazes e sem possibilidades para
providenciarem até mesmo
a satisfação de necessidades e vontades
primárias no que diz respeito
aos cuidados pessoais e à
administração doméstica.
Há muitos pais e parentes que, desde a infância da
pessoa cega ou com
baixa visão, colocam-se na posição de
cuidadores ou tutores omni
presentes, enredando-se na vitimização e
causando, com esta postura, um
mal estar no relacionamento parental e um sentimento de piedade ou de
indiferença nas outras pessoas.
Por sua vez, em função deste comportamento do
outro social, é possível
que a pessoa com deficiência visual também
desenvolva sentimentos
egóicos fragilizados ou superfortalecidos que, ao longo do
tempo,
provocam o adoecimento das interrelações e
até seu isolamento social.
Ao
sentirem-se reféns, é provável que
muitos Inconscientemente tornem-se ou
submissos, ou insatisfeitos, ou agressivos com aqueles que julgam
responsáveis por semelhante condição.
José Espínola Veiga , em seu livro A vida de quem
não Vê, ilustra
brilhantemente a condição de sequestradores de
vivências que muitos pais
e parentes adotam em relação à pessoa
cega ou com baixa visão:
"O filho vai de 3 para 4 anos, e nada se lhe ensina. - Coitadinho,
deixa! ... Mexem-lhe o café, picam-lhe o pão,
põem-lhe a comida na boca,
descascam-lhe a banana, deixam-no que meta a mão no prato. -
Coitadinho!
Já basta o que ele sofre!... E a criança
não sofre nada com a falta da
vista ... Sofrerá, sim, mais tarde, a consequência
dessa educação mal
dirigida."
Vários grupos familiares são condescendentes e
mesmo irresponsáveis na
orientação e
instrumentalização de pessoas cegas com os
conhecimentos e
informações sobre o desempenho e o modo de
realização de atividades da
vida diária, afrouxando comportamentos disciplinadores e
dispensando a
aquisição de hábitos
saudáveis de condutas para seus filhos, irmãos ou
parentes deficientes visuais.
Com isto, parecem esquecer que não estarão
eternamente disponíveis, que seus parentes com
deficiência visual têm o
direito de construirem-se por vias alternativas de desenvolvimento e
que
o outro social não poderá ou terá
vontade de responsabilizar-se pela
solução de problemas criados pela
imprudência ou pela superproteção
alheia.
Como profissional da área da educação
e da reabilitação de pessoas com
deficiência visual, ouvi muitos depoimentos e relatos de
pessoas que
enxergam sobre seus sentimentos diante do comportamento de muitos
cegos,
enfatizando principalmente sua maneira de alimentar-se, o seu
vestuário
e a negligência com sua aparência pessoal.
Muitos afirmaram que evitam almoçarem, jantarem ou fazerem
qualquer tipo
de lanche junto com uma pessoa cega ou com baixa visão, pois
suas
experiências foram lastimáveis. Alguns disseram do
seu sentimento de
pena ao verem pessoas cegas vasculhando no prato ou na mesa
pedaços e
restos de alimentos com suas mãos, sem utilizarem faca,
garfo ou colher
quando necessário e como previdência.
Muitos comentaram sobre o sentimento de impotência ao verem que uma pessoa cega pode levar, com frequência, o garfo ou a colher vazia à boca porque os alimentos se desprenderam ou caíram do talher durante o trajeto. Outros comentaram sobre a repugnância sentida ao verem pessoas cegas ou com baixa visão levando à boca pedaços enormes de alimentos, mastigarem de "boca aberta".
e sem
usarem adequadamente sua arcada dentária, deixarem alimentos
caírem da boca, falarem de "boca cheia" ou fazerem barulhos
ou ruídos
excessivos na mastigação e ingestão de
líquidos ou alimentos cremosos.
Relativamente ao vestuário, muitas pessoas relatam que
percebem haver
uma certa negligência ou descaso da pessoa cega com a
combinação de
cores, texturas, adequação e limpeza da roupa, do
calçado e de possíveis
acessórios. O mesmo afirmam sobre os cuidados com a
aparência de muitos
cegos, especialmente quanto à limpeza e corte das unhas,
escovação de
dentes, limpeza do nariz e da prótese ocular, quando
presente.
No entanto, pessoas cegas também relatam sobre os seus
sentimentos na
realização de atividades rotineiras e muitas
afirmam que evitam
alimentar-se em público ou participarem de encontros e
festas, pois
sentem-se inseguros, envergonhados e que não
estão preparados para
conviverem socialmente com outras pessoas que não sejam os
pais, os
irmãos, parentes ou cônjuges.
Referem,também,
que evitam a
diversificação de cores e texturas em seu
vestuário, pois temem o
ridículo ou acharem-se "descombinantes", mesmo que a moda
nem sempre
esteja apontando tal preocupação. Esta moda,
muitas vezes, é compassiva
com aqueles que enxergam, mas pode ser perversa com aqueles que
não
veem.
Dificilmente, entretanto, são encontrados familiares, amigos
ou
professores que mantêm uma conversa franca e adequada com a
pessoa com
deficiência visual sobre sua maneira de alimentar-se,
vestir-se ou
cuidar da sua aparência.
Da mesma
forma, dificilmente são encontradas
pessoas cegas ou com baixa visão que aceitam estes
comentários e estas
informações com naturalidade porque
acostumaram-se ou foram acostumadas à displicência
ou descaso, melindrando-se ou magoando-se diante da menor
contrariedade.
Contudo, já é hora de todos nos alertarmos para a
inclusão do respeito,
da sensibilidade e da generosidade em nossas
interrelações e,
urgentemente, adquirirmos o hábito de sairmos da nossa
posição e nos
percebermos na condição do outro, exercitando
dificuldades,
possibilidades, papéis e funções -
sejam elas de reis ou de escravos.
Escrito por Sonia B. Hoffmann.
Disponível em http://www.diversidadeemcena.net