Assaltaram a Gramática
Prof. Eduardo Fernandes Paes  Formado em Letras (Português-Literatura) pela Universidade Gama Filho - RJ -, com especialização em Tiflopedagogia. Promove cursos de Atualização em Língua Portuguesa, Informática para cegos e Sistema Braille.

Um toque na língua - 21/08/2008
Aula 5

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"A competência para grafar corretamente as palavras está diretamente ligada ao contato íntimo com essas mesmas palavras. Isso significa que a freqüência do uso é que acaba trazendo a memorização da grafia correta. Além disso, deve-se criar o hábito de esclarecer as dúvidas com as necessárias consultas ao dicionário. Trata-se de um processo constante, que produz resultados a longo prazo." (Pasquale Cipro Neto & Ulisses Infante, Gramática da Língua Portuguesa).

PROCURE LER TAMBÉM EM BRAILLE, ELE O AJUDARÁ A FIXAR MELHOR A GRAFIA DAS PALAVRAS.

"Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma, continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O Professor, assim, não morre jamais..." - Rubem Alves.

"É pela educação, mais do que pela instrução, que se transformará a Humanidade." - Allan Kardec

***

UM TOQUE NA LÍNGUA - Lição 05 [20 de maio de 2008]

Nos corredores da escola, os alunos conversam animadamente à espera do Professor Edu, que terminava de tomar o seu terceiro cafezinho daquela manhã friorenta e já se dirigia, entusiasmadamente como sempre, à sala de aula, pois lecionar, para ele, mais do que exercer uma importante profissão, para a qual sempre fora vocacionado, significava um trabalho que lhe proporcionava um imenso prazer e um não menor estado de gratificação espiritual. 

Aguardando pacientemente que os alunos se acomodem em suas carteiras, fato que, em quase todas as escolas, é sempre motivo de ruidosa agitação, o Professor Edu é logo interpelado por uma de suas alunas, que o questiona incisivamente, sem, no entanto, deixar de estampar um certo embaraço em sua indagação:

- Professor Edu, o Senhor pode me tirar uma dúvida enquanto não começa a aula?


- Claro que sim, Norminha. Qual é a dúvida?

- É que o Senhor nos ensinou, lá na pracinha, que existe uma diferença de significados entre as palavras despercebido e desapercebido, não foi mesmo?

- Sim, foi isso mesmo.

- Acontece que quando eu comentei isso com meu pai, que também adora ler e pesquisar tudo que se refere à Língua Portuguesa, apesar de trabalhar como Analista de Sistemas, ele estranhou um pouco o Senhor ter nos ensinado que existia essa diferença, porque, para ele, as duas palavras podiam ter o mesmo significado quando queriam dizer não percebido e não visto. Por isso, ele me mandou consultar os três dicionários que me deu de presente, e que ele vive consultando mais do que eu... e em dois deles eu pude confirmar o que meu pai falou..

.- Até já sei em que dicionários você encontrou a equivalência de significados desses dois termos com esse sentido: no do Aurélio e no do Antônio Houaiss, não foi?

- Isso mesmo, Professor! O Senhor já sabia disso? E se já sabia, por que não nos contou?

- Olha, minha querida, vá para seu lugar, pois eu vou aproveitar para esclarecer essa questão com a turma toda, já que, pelo silêncio sepulcral que tomou conta de nossa sala, creio que toda a turma esteja também interessada em minhas explicações.

- Certo, Mestre, já estou indo.

- Gente, não vou repetir para vocês o que a Norminha me indagou, pois como a turma toda estava em silêncio, creio que todos ouviram bem qual foi a questão levantada por ela. 


Bem, quanto a isso, quero lhes dizer o seguinte: às vezes, por gostarmos muito de uma coisa, ou mesmo amá-la profundamente, nós temos naturalmente o forte instinto, o ferrenho desejo de defender essa coisa com unhas e dentes. Assim sendo, eu, como vocês já estão cansados de saber, sou um inveterado amante e defensor de nossa majestosa Língua Portuguesa, e, como todo feroz defensor de nossa bela flor do Lácio, acabamos nos tornando meio conservadores, até ortodoxos mesmo, em algumas situações. 

Por minha formação acadêmica ter sido bem mais conservadora do que liberal em termos lingüísticos, confesso que ainda trago comigo muitas dessas tendências conservadoras, baseadas em renomados gramáticos e filólogos, que primavam, isto é, tinham a primazia, esmeravam-se em preservar a pureza do nosso idioma. Por isso, muitos deles são chamados hoje de puristas, e, às vezes, até de puristas maníacos, como curiosamente denomina o grande Mestre Aurélio Buarque de Holanda, em seu magnífico Dicionário da Língua Portuguesa - Século XXI - quando, lembrei agora, alguém consulta, por exemplo, o verbete aperceber. 

Ele literalmente afirma que este verbo pode ter como um de seus significados também o verbo perceber; e quem considerar essa sinonímia condenável, será igualmente condenado a ser chamado de purista maníaco, e fim de papo.

- Professor Edu, o Senhor falou bonito, mas, afinal de contas, onde o Senhor quer chegar com essa história toda?

- Olha, meu caro Lucas, em primeiro lugar, eu quero pedir desculpas à turma por ter deixado prevalecer minhas próprias convicções conservadoras em detrimento das pesquisas e novas considerações sobre a evolução lingüística de nosso idioma, que, sem sombra de dúvida, devem ser levadas a sério e reveladas, de forma bem transparente, aos que desejam realmente ter um pleno domínio da língua, em seus diversos registros e situações.

Meu erro, como professor, foi o de cristalizar certos conceitos passíveis de modificações por inúmeras circunstâncias e não revelar a vocês, no caso em questão, as demais possibilidades de sentido da comparação de despercebido e desapercebido, que verdadeiramente expressam a mesma coisa quando possuem o significado de notar, ver, dar-se conta, perceber... Gente, me desculpe por essa, ok? Pisei feio na bola nessa aí!!! 

Ficarmos cristalizados em certos conceitos, como se fossem dogmas irrefutáveis, é atitude muito perigosa, pois impede que vislumbremos novos horizontes, novas idéias, podendo até mesmo nos tornar criaturas preconceituosas. 

Por isso, turma, procurem questionar sempre seus professores sobre dúvidas que venham a ter de algum ponto que lhes foi ensinado, simplesmente porque os professores, por mais cultos e competentes que possam ser, não são indiscutivelmente os donos da verdade. 

Nem mesmo um ilustre gramático ou filólogo podem ditar, em suas obras, regras muito rígidas e inquestionáveis, porque a língua sofre permanentemente um processo de evolução e que deve ser constantemente acompanhado, no qual seus próprios falantes têm um papel fundamental na criação de inúmeras ocorrências que a transformaram decisivamente. Consegui dirimir sua dúvida, Norminha?

- Com certeza, Professor Edu! E vou depois falar pro meu pai tudo o que o Senhor disse aqui na sala. Acho que ele também vai ficar satisfeito com suas explicações...

- Certo! Bem, agora desejo saber se o mais afamado intelectual da escola, o nosso queridíssimo Lucas, fez a pesquisa que lhe pedi sobre a diferença de emprego das formas história e estória, já que me perguntou onde eu queria chegar com esta minha história toda...

- Xiiii, meu bom Mestre! Eu fiz a pesquisa, sim, mas acabei saindo atrasado de casa e esqueci o trabalho em cima da mesa da cozinha...

- Puxa, que coincidência, meu rapaz! Sabe que quando eu tinha mais ou menos a sua idade, eu também me valia dessas desculpas esfarrapadas para esconder minha imensa preguiça de fazer certos trabalhos escolares das disciplinas de que eu não gostava!?

- Que que isso, Mestre! Por acaso estás me chamando de preguiçoso?...

-Que calúnia mais infame levantaste contra o grande pesquisador Lucas Mendonça Ferreira de Sá, descendente direto da nobre familia de heróis brasileiros como Mem de Sá, Estácio de Sá, Sá e Guarabira, entre dezenas de outros Sás não menos importantes!...

- Ah! Quer dizer que agora os portugueses Mem de Sá, Estácio de Sá, e até o grande compositor e cantor Sérgio Sá viraram heróis brasileiros, meu caro e raro Lucas?!

- Ora, ora, Mestre! Se estes meus valorosos parentes não são considerados heróis brasileiros, então deveriam ser pelo muito que fizeram à nossa grande Pátria amada, Brasil!

- Nossa, Professor Edu! O Lucas hoje extrapolou em sua intelectualidade de Rolando Lero. E também deve estar pensando que o Senhor é o próprio Professor Raimundo Nonato.

- Pois é, Norminha. Essa fanfarronada toda serviu só para me confirmar que ele não fez pesquisa alguma... Mas deixa ele comigo... Vamos ver se até o final do semestre toda essa pseudo-intelectualidade dele o salvará de não repetir o ano.

- Mestre, aposto que ele também não fez a pesquisa sobre o Sistema DOSVOX...

- Ah, essa eu fiz, sim, seu Zé Luís Mané!!! Fiz porque adoro informática e acabei gostando desse ambiente operacional que muitos deficientes visuais, além de você, seu ceguinho folgado, já estão usando no Brasil todo e até em outros países, tá ligado?

- Muito bem, meu rapaz! Então na aula do segundo tempo, você fará a exposição para nós sobre o DOSVOX. E já que nosso grande intelectual não fez a primeira pesquisa, vou mostrar-lhes a diferença entre "história" e "estória", tendo agora o cuidado de dizer que essas duas formas são aceitas por diversos autores, com significados distintos. 

Assim, para esses autores, estória, com e, pode somente significar exposição romanceada de fatos imaginários, narrativa de cunho popular, tradicional; contos, fábulas, etc. E história, com h e i, pode ser vista como, por exemplo, o conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade, segundo o lugar, a época e o ponto de vista escolhido; ou mesmo a ciência que estuda fatos passados com referência a um povo, um país, ou a um personagem específico. 

Enfim, somente no Dicionário do Antônio Houaiss podem ser encontradas quinze definições para este vocábulo. Essas duas palavras constam do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras. Mas o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa recomenda simplesmente a grafia história, nos dois sentidos. E o dicionário de Caldas Aulete refere-se à forma estória como um brasileirismo, isto é, apenas um aportuguesamento da forma inglesa "story". 

Desse modo, turma, deixarei para vocês pesquisarem novas definições, com seus respectivos exemplos, também em outros dicionários e mesmo em seus livros de História, e me trazerem na próxima aula, valendo um ponto para juntar ao teste que faremos no fim deste mês, certinho!?

- Caraca, Mestre! Já vem outro teste por aí?


- Claro que sim, Lucas. E por falar em caraca...

- Ah! Já sei, Professor. O Senhor vai me perguntar se eu pesquisei também sobre o significado dessa bendita palavrinha, não é isso mesmo?

- Grande Lucas! Viu só como estamos afinados, meu rapaz!?

- Turma, o Professor Edu me ama, né!? Acho que ele era doidinho para ter um filho como eu... Não é verdade, Mestre?

- Lucas, certamente seria um grande orgulho para mim ter um filho como você, com quem eu poderia ter longas e proveitosas conversas sobre Filosofia, Literatura, Música Erudita... Afinal eu teria um filho com uma intelectualidade fora-de-série, não é certo!? Bem, mas deixe de tentar me enrolar novamente e me diga o que realmente significa esta linda palavra, que você vive repetindo a todo instante: caraca?

- Ora, ora, Mestre! Caraca é caraca... Acho que é a mesma coisa que caramba!... Tipo assim...

- Bem, como interjeição você pode até fazer essa associação com caramba, termo que, ao contrário do Brasil, onde é mais empregado nas classes populares, principalmente na expressão "pra caramba", na Espanha, por exemplo, caramba é palavrinha bastante comum de se ouvir até mesmo na classe mais culta. Agora, quanto à caraca, apesar de ser um tipo de gíria da moda, para mim é um termo bem chulo, que, na verdade, significa secreção nasal ressequida, uma variante da palavra cataraca.

- Secreção nasal resseq.. o quê, Professor Edu?

- Secreção nasal ressequida, Andrezinho. Ou falando também num popular mais chulo: meleca! Isso mesmo, gente! Podem ficar mesmo com essas caras de espanto e de asco, pois caraca significa literalmente meleca!

- Argh! Mestre. Que nojo! E olha que eu achava essa palavra até bonitinha... E, assim como o Lucas, eu também falava caraca toda hora... Hummmm! Nunca mais eu falo essa palavra nojenta!!!

- Pois é, querida Mariana. Assim como você, o Lucas e igualmente muitos colegas de vocês, muita gente por aí vive repetindo certas palavras e expressões sem ao menos saber o significado delas, podendo até, por causa disso, passar por situações vexaminosas, constrangedoras. Prometo, em outras aulas, trazer mais algumas curiosidades sobre a etimologia de certas palavrinhas e lhes dar mais uns toques sobre ortografia. Falou, galera!?

- Falou, Mestre!!!

- Agora tocou o sinal. Depois do intervalo, vamos todos lá para o laboratório, a fim de assistirmos a exposição do Lucas sobre o DOSVOX.

- Puxa, Zé Luís, essa eu não quero perder! Vou sentar ao seu lado para saber se o Lucas vai falar direitinho sobre esse programa que você usa, tá legal?

- Tá certo, Marquinhos! Mas agora me empresta seu ombro e vamos correndo pra cantina que eu tô morrendo de fome...

- Ok, vamos nessa!!

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