O que o chef de cozinha Alex Atala, os Irmãos Campana – que trabalham com design artístico de interiores – e o multi-artista Jum Nakao têm em comum? A criatividade. Depois de fazer entrevistas com todos eles (e com mais uma série de pessoas) para escrever o livro Criatividade Brasileira – Gastronomia, Design, Moda, a psicanalista Andrea Naccache chegou a conclusão de que, para ser criativo é preciso, acima de tudo, saber lidar com o erro e se relacionar com o outro.
Para ela, o processo criativo passa por duas fases: a agonia, que tem a ver com o aspecto técnico da execução do projeto, e o êxtase ou despojamento, o momento em que se cria a confiança e a coragem de apresentar as novas ideias, deixar o outro entender, avaliar, criticar para, enfim, realizar o feito. “Na escola, se o professor consegue mostrar para o aluno como suportar a agonia e chegar ao despojamento, qualquer coisa vai ser possível, qualquer aprendizado, pesquisa, empreendimento. Aí está o cerne da ação criativa, da realização humana”, diz.
Para que o ato criativo tenha bons resultados, é preciso tirar alguns impedimentos do caminho, diz a autora. Antes de sair inventando novas maneiras de fazer qualquer procedimento, esteja ele ligado à arte, aos negócios ou à tecnologia, é preciso, antes de tudo, permitir que as pessoas percam o medo de testar, errar e se aprimorar. “As empresas e escolas precisam ser menos rigorosas com a questão do erro. A gente não deveria avaliar o resultado do ato humano sob o critério do erro. O professor precisa estar junto do aluno antes do ato e não do outro lado, só avaliando, porque o resultado, para o ser humano, é sempre surpreendente.”
Em entrevista ao site Porvir a pesquisadora afirma que a criatividade é aquilo que fazemos quando não sofremos, quando não estamos com tédio mas que, como disseram Atala, Irmãos Campana e Nakao, causa cansaço, agonia e carrega muitas etapas antes do gran finale. Para ela, todos esses impedimentos podem ser diminuídos se a relação com o outro for consistente e oferecer apoio, críticas e, como não poderia deixar de ser, reconhecimento. Confira.
O que as escolas devem mudar para que o medo do erro não afaste as pessoas das ideias inovadoras?
Uma das coisas mais importantes que ouvi sobre o erro tem a ver com o que está por trás dele. A gente tem muita ideia do erro técnico, que é o erro congitivo. Ouvi, uma vez, uma história muito bonita de um jovem engenheiro de uma empresa que foi construir sua primeira ponte e, depois da construção, ela não chegou do outro lado do rio. Ao contrário do que as pessoas esperavam, o dono da empresa não demitiu o engenheiro, porque percebeu que ele ainda era inexperiente, que cabia ao chefe estar mais próximo dos projetos e acompanhar o rapaz mais de perto. E deve ser assim também nas escolas. Por trás do erro congnitivo, que é aquele avaliado por meio das provas, dos testes, que só entende o certo e o errado, deve existir a relação humana. Já ouvimos dizer coisas como “eu quero produzir tal resultado em tal pessoa” e essa manipulação não pode existir no aprendizado, porque cada ser humano aprende de uma forma, tem uma história, um interesse. O ser humano não é uma máquina e cabe ao professor estar junto do aluno antes do ato e não só do outro lado, avaliando.
Se a escola precisa formar os alunos para o vestibular, para a universidade, como estimular a criatividade dentro de um modelo que tem uma direção definida?
Quando falei com os Irmãos Campana, Atala e o Nakao, me dei conta de que o processo criativo é uma aventura que nunca sabemos onde vai dar. O que o professor precisa é: estar junto e dizer que é isso mesmo. O processo criativo passa por uma agonia, que é o que antecede, o que tem a ver com o aspecto técnico da execução do projeto. E o êxtase, que é o momento em que se que se cria o despojamento, a confiança e a coragem de apresentar as novas ideias, deixar o outro entender, avaliar, criticar e conseguir realizar o que queria. Então, precisa haver a agonia, a disposição a fazer algo novo e o despojamento que vai permitir lidar com o que vai vir no processo.
Na escola, se o professor consegue mostrar para o aluno como suportar a agonia e chegar ao despojamento, qualquer coisa vai ser possível, qualquer aprendizado, pesquisa, empreendimento. Aí está o cerne da ação criativa, da realização humana, porque a criatividade está ligada ao relacionamento com o outro, com o mundo. Relação essa que se dá desde o momento em que existe a confiança de apresentar novas ideias, pedir apoio, sugestões críticas, até o entendimento de que sua criação apresenta algo que ninguém mais viu, aumenta o campo de visão do mundo, acrescenta uma coisa nova na humanidade.
E você acha que todo mundo pode ser criativo como os entrevistados ou que isso é um dom que não pode ser desenvolvido?
Acho que todo mundo é capaz de criar, todo mundo cria, mas, mais do que receber estímulo, o que eu tenho visto no trabalho com pessoas é a necessidade de se tirar impedimentos do caminho da criação, como o medo de errar. E ainda, a obrigatoriedade de apresentar resultados concretos por meio da repetição de procedimentos, porque as pessoas geralmente vão por caminhos mais conhecidos e a questão é convidá-las a não ir por eles, mostrar que não é necessário, que dá para fazer de outra maneira. As pessoas sempre se comprometem com o “não está tão legal, mas tudo bem”, mas quando você desiste do “não está tão legal”, o processo é criativo.
Quais seriam outros impedimentos? Eles existem em todas as áreas profissionais, acadêmicas?
Sim, existem para todas as profissões e muitas vezes são os mesmos: a cobrança excessiva pela perfeição, a falta de despojamento para apresentar novas ideias e a insegurança de testar novos materiais e técnicas. Quando a gente cria, temos sempre alguém a quem se dirigir e eu acho que o pior obstáculo é justamente essa má relação com o outro. O principal gatilho que eu tenho encontrado para desencadear os processos criativos é a confiança no outro e a liberdade. As empresas e escolas precisam ser menos rigorosas com a questão do erro.
E onde foi que o Alex Atala, o Nakao e os Irmãos Campana aprenderam a ser criativos?
Em algum momento eles entenderam que havia brecha para participarem da construção do mundo, da beleza, inteligência ou da graça das coisas, e eles tiveram condições emocionais de aceitar o convite que algumas pessoas no mundo fazem para que a gente contribua também. Não sabemos quem fez esse convite ou como chegou a eles essa mensagem. Pode ter sido no sistema de ensino, em casa, fora desses ambientes. Nem é garantido que uma pessoa sequer entenda o convite. Eles entenderam.
Até que ponto você acha que a academia (escola, universidade) influenciou nesse processo?
No livro, o Alex e o Humberto Campana relatam momentos de desencontro grande com o mundo. O Humberto fala em ter vivido dúvidas durante a faculdade de direito – o que não significa que a faculdade não tenha lhe passado uma mensagem sobre a relevância que o trabalho dele poderia ter, mesmo em outra área. Jum, Fernando e Alex contaram muito boas experiências educacionais, que os instrumentaram para o futuro. A academia pode ou não ser decisiva na ética de vida das pessoas, mas ela certamente deveria se esforçar para contribuir à criatividade, porque não é tão difícil fazê-lo. Mesmo com as enormes insuficiências que a academia possui para o mundo atual, ela tem sido, no geral, uma influência muito positiva.
Mas na escola não temos, por exemplo, aula de gastronomia. Como o Alex Atala descobriria sua criatividade? Como a escola pode estimular que as crianças e jovens reconheçam seus talentos?
Você precisa mostrar para esse aluno que tudo faz parte da experiência humana, inclusive a agonia do aprendizado, das etapas, do querer realizar e ter dificuldade, do despojamento de deixar que as coisas saiam diferentes do planejado. Se o professor fizer o aluno passar por isso, o estímulo pode acontecer. O Atala em algum momento da vida aprendeu isso. Eles [os entrevistados] falam sobre o cansaço e a psicologia que existe nesse processo, que está em tudo, desde uma tese de engenharia, um trabalho na escola até a criação de um prato. Para mim, quase pouco importa o conteúdo, desde que essa mensagem seja transmitida. O problema é quando a pessoa é obrigada a obter um resultado, desconsiderando o papel da contingência das coisas, da diferença entre as coisas. Toda vez que desconsideramos isso, por meio de uma psicologia que diga o que o ser humano deve reagir assim ou assado, que deve usar sempre a mesma técnica e o mesmo material, o processo criativo se desestimula. As regularidades é que matam.
Como seria um mundo em que todos pudesse usar sua criatividade?
Eu estimo que a movimentação seria muito mais livre. As empresas existiriam num sentido de pessoas juntas, trabalhando colaborativamente para fazer grandes coisas. Hoje, temos estruturas grandes se desmontando e, com isso, aumenta a responsabilidade, porque você precisa apresentar coisas cada vez mais novas, deixar de chegar todo dia e repetir procedimentos enquanto o outro garante sua existência. A criatividade é aquilo que acontece quando não sofremos, quando não estamos com tédio.
Fonte: Porvir
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