Luis Guilherme Barrucho e Ricardo Senra, da BBC Brasil, em São Paulo
Um projeto coordenado por uma pesquisadora brasileira pretende colher depoimentos, grande parte deles inéditos, de mais de 250 sobreviventes do Holocausto ─ o assassinato em massa perpetrado pelos nazistas contra os judeus durante a 2ª Guerra Mundial ─ que vivem no Brasil.
À frente da iniciativa está Maria Luiza Tucci Carneiro, professora de História da USP e uma das maiores estudiosas sobre o tema no país. Segundo Carneiro, que também dirige o Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) da universidade, o objetivo é gravar os testemunhos em vídeo até o fim de 2016.
Intitulado "Vozes do Holocausto", o projeto ocorre em meio ao desafio de manter viva a memória de um dos maiores genocídios do século 20 uma vez que grande parte dos sobreviventes morreu e os poucos vivos possuem idade avançada.
"É uma corrida contra o tempo", diz Tucci Carneiro à BBC Brasil. "Nosso objetivo é registrar em vídeo o máximo de depoimentos possível, já que, nos próximos dez anos, possivelmente não haverá mais sobreviventes para contar a história de uma das maiores atrocidades que já ocorreram no mundo", acrescenta.
"É uma memória que corre perigo de ser esquecida, especialmente porque, sem os sobreviventes, abre-se espaço para os que insistem em negar a existência do Holocausto."
Testemunhos
A primeira fase do projeto terá início em fevereiro e durará seis meses, período em que Tucci Carneiro espera gravar testemunhos de 90 dos 284 sobreviventes do Holocausto que vivem no Brasil.
Desse total, revela a pesquisadora, grande parte mora em São Paulo e chegou ao país vinda da Alemanha, Áustria, Polônia e Romênia durante a 2ª Guerra Mundial.
Os recursos para custear esta etapa, diz Tucci Carneiro, virão do Instituto Samuel Klein, criado após a morte do empresário em novembro do ano passado. Judeu nascido na Polônia e naturalizado brasileiro, o fundador da rede de lojas de departamento Casas Bahia sobreviveu a dois campos de concentração, o de Majdanek e o de Auschwitz-Birkenau, este último o maior do regime nazista.
Segundo Tucci Carneiro, dos 90 depoimentos gravados, serão escolhidos os dez melhores, que vão se tornar cada um, um DVD. O registro será acompanhado de material paradidático e distribuído em escolas públicas, inicialmente da cidade de São Paulo.
"O projeto tem caráter multidisciplinar e pedagógico. O objetivo é propor uma reflexão sobre todas as formas de intolerância a partir do Holocausto. Normalmente, as escolas não dão a esse tema a sua devida importância", diz a pesquisadora.
"Em outras palavras, queremos mostrar para os mais jovens que quando se investe contra uma etnia ou um grupo específico, também se lapidam a memória e a cultura de um povo. Com isso, chamamos atenção para o perigo do racismo e ensinamos esses alunos a conviver com a diferença", acrescenta.
Importância histórica
Tucci Carneiro conta que obteve a lista dos nomes dos mais de 250 sobreviventes por intermédio da Claims Conference, instituição sediada nos Estados Unidos que zela pelo bem-estar de sobreviventes do Holocausto no mundo.
Segundo ela, alguns sobreviventes costumam relutar inicialmente em contar a história de como escaparam da máquina de morte criada e executada pelos nazistas.
"Alguns deles não querem passar pelo trauma de ter de relembrar um período difícil. Muitos perderam a família inteira e vieram ao Brasil sem um único centavo", assinala Tucci Carneiro.
"Nossa abordagem é sempre feita com muito cuidado e sempre ressaltamos a importância histórica do depoimento para as gerações futuras", complementa.
A pesquisadora, que também coordena o Arquivo Virtual do Holocausto (ArqShoah) da USP, diz ainda que muitos dos entrevistados possuem documentos de "inestimável valor histórico".
"Eles acabam nos cedendo cópias e registros importantes da época, que nos permitem remontar com maior verossimilhança os horrores do Holocausto", afirma.
"Também sensibilizamos as famílias no sentido de resguardar esse material", acrescenta.
Projeto maior
A iniciativa de Tucci Carneiro é parte de um projeto maior, chamado "Travessias: Narrativas e Representações dos Sobreviventes e Refugiados do Nazismo no Brasil".
Segundo a pesquisadora, a intenção é reunir o maior número de informações possível sobre os judeus que, forçados a deixar seus países de origem em meio à ascensão da Alemanha nazista, passaram pelo Brasil durante a 2ª Guerra Mundial.
"Temos um número expressivo de artistas e intelectuais judeus, entre refugiados e sobreviventes, que aportaram no país antes, durante ou depois do confronto", diz Tucci Carneiro.
"Um dos exemplos foi a pianista polonesa Felicja Blumental, posteriormente naturalizada brasileira. Grande colaboradora de Villa-Lobos e uma das maiores intérpretes de Chopin, ela tornou-se uma das principais promotoras da música clássica brasileira."
"O Brasil precisa dessa memória ─ que nunca pode ser esquecida", diz Tucci Carneiro.
Fonte: BBC Brasil
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