Planeta Educação

Aprender com as Diferenças

Marcela Cálamo Vaz Silva Paraplégica desde os seis anos, cadeirante, mãe de dois meninos, escritora (ainda acho estranho me definir assim), mantenho um Blog e sou co-autora do livro infantil “Rodas, pra que te quero”, baseado em minha infância. Blog: www.tchela.blogspot.com

Uma Dose de Boa Vontade
Marcela Cálamo Vaz Silva

Antes da paraplegia, entre os cinco e os seis anos, eu já freqüentava a pré-escola, mas, o período de internação e reabilitação me deixaram fora da escola dos seis aos 9 anos.

Fui alfabetizada em casa por minha mãe. Retomei meus estudos, na AACD, pulando a primeira série e indo direto para a segunda. 

Por lá fiquei até o término da terceira série e aprendi que minha deficiência não me fazia diferente de outras crianças, mas exigia de mim dedicação e esforço para me tornar independente. 

Daí em diante, fui para a vida, junto a alunos comuns em escolas comuns e isso foi extremamente importante para mim.

Eu estava empolgada para ir para a mesma escola em que meus irmãos estudavam, sem precisar mais ficar quase o dia todo fora de casa.

Em minha primeira escola, depois da AACD, fiquei apenas dois meses. 

A escola era recém construída e toda cheia de rampas, mas não me sentia bem por lá, pois minha cadeira era vista como brinquedo por algumas crianças que gostavam de descer as rampas me empurrando bem rápido. 

No começo era até divertido, afinal, queria fazer amigos, mas depois cansei de ser brinquedo e não quis mais brincar. 

Em maio, mudei-me para um bairro da zona norte de São Paulo com minha família e, pouco tempo depois, já estava em outra escola.

Senti uma grande diferença entre as duas escolas. Na nova fiz amigos num instante, ninguém via minha cadeira como brinquedo e, lá, eu estudava no térreo, sem precisar subir ou descer andares. 

Aliás, não havia rampas, a escola era bem antiga, mas havia boa vontade para que eu fizesse parte do todo. Foi nessa escola que conheci minha grande amiga Maria Lúcia, a Mary. 

Ela me contou, alguns anos depois, que ela e a turma da classe se sentiam o máximo, pois estudavam no andar mais alto da escola. 

Um dia, sem maiores explicações, a professora avisou-os que desceriam para a sala do térreo, antes desativada. 

Contou-me que todos ficaram sem entender nada e meio revoltados por saírem do topo da escola. Então, num dia, depois de instalados e adaptados à nova sala, eu cheguei, aí entenderam o porquê da mudança.

Minha entrada nessa escola foi tão tranqüila que não me lembro de qualquer reação dos outros alunos, foi como se eu sempre tivesse feito parte do grupo e era assim mesmo que me sentia.

Estávamos na quarta série e todos da turma não viam a hora de chegar à quinta. Era como se mudássemos de status, se passássemos a ser mais crescidos, mais importantes. 

E era uma mudança grande mesmo, pois até a quarta tínhamos apenas uma professora que nos ensinava tudo, mas, a partir da quinta, seria um professor para cada matéria.

E quantas matérias! A cada novo ano ficávamos ansiosos por saber quais seriam nossos professores, torcendo pra não pegarmos os mais chatos.

Os professores mudavam, mas a turma continuava a mesma em todas as séries e isso era bem legal.

Nossa escola era somente de 1º grau, então a turma teria de se separar após a oitava série. Isso sim seria uma mudança radical para mim. 

Cada um iria para uma escola e eu não sabia com quem poderia contar. 

No final do ano, na 8ª, as incertezas aumentaram, afinal, eu não teria mais a companhia de meu irmão, por ele ter sido reprovado, e, talvez, nem a companhia da Mary, minha amigona.

Eu não tinha a mínima idéia de como me viraria na escola nova, sem ter um conhecido, um amigo pra me ajudar com minha cadeira de rodas, mas, não me importava muito com isso não, sabia que faria novas amizades e novas pessoas me ajudariam quando eu precisasse.

O colégio que escolhi exigia um teste de admissão, pois era considerado um dos melhores colégios públicos de ensino médio da zona norte de São Paulo e a procura ia muito além do número de vagas. 

Somente quem conseguisse nota suficiente poderia se matricular lá.

Já no dia do teste, gostei demais de lá. Era muito maior que a outra escola, com salas ambientes de matemática, geografia, desenho, química, tinha até teatro! E o melhor: havia rampas para todos os andares. 

Eu, que só pude estudar na escola anterior por terem desocupado uma sala no térreo, agora teria acesso a todos os andares e salas da escola! 

Num tempo (1983), em que ninguém sequer falava em acessibilidade e adaptações, a existência de rampas num colégio antigo era fantástico. 

As rampas, agora, representavam minha liberdade de ir e vir, como na AACD, e não mais algo ruim onde crianças chatas brincariam comigo. Já não estaria mais entre crianças.

Passei no teste. Começaria uma fase totalmente nova em minha vida e eu tinha muitas expectativas pelo que viria.

Como na outra escola, eu era a única pessoa com deficiência física por ali, mas isso para mim era normal, eu nem esperava encontrar alguém mais com deficiência, eu era sempre a única em todos os lugares em que ia.

Minha amiga Mary e eu caímos na mesma sala, que ficava num andar superior, e estudamos juntas o 1º ano. 

Eu adorava estudar "lá em cima", em meio a todas as outras salas, e fazer parte do grupo imenso de alunos que se misturavam quando o sinal batia para o intervalo ou saída.

Foi um ano marcante. A turma era ótima, todos se tornaram amigos e os professores eram muito bons. 

O clima em sala de aula era o melhor possível e freqüentar o colégio não era, para mim, uma obrigação, mas um grande prazer. 

Estudar, estar numa escola, para mim, era a forma de me sentir parte do mundo, pois, fora o estudo, só me restava ficar em casa.

No segundo ano, Mary e eu nos separamos, ela escolheu biológicas e eu exatas. Lá fui eu para outra fase importante, não teria mais a Mary comigo o tempo todo.

Nessa época comecei a freqüentar um grupo de jovens da paróquia perto de minha casa, convidada por Mary. No início meu pai me levava, as reuniões eram aos sábados. 

Fui super bem recebida por todos. Depois de um tempo, meu pai não pôde mais continuar me levando, mas os amigos do grupo passaram a se revezar para me buscar para as reuniões e para as festas ou saídas para barzinho. 

Escadas e degraus não me impediam de ir a lugar algum, tinha sempre alguém pra dar uma mão. 

Uma característica de quem tem lesão medular é a incontinência urinária, então, se o passeio fosse mais longo, minha irmã mais nova me acompanhava para me ajudar a ir ao banheiro. Vivia minha adolescência plenamente.

O segundo e terceiro anos vieram e foram, sem grandes novidades na escola. Agora, era hora de pensar em vestibular.

Não me achava preparada a prestar vestibular, menos ainda a passar, mas prestei, para mesma profissão que minha irmã mais velha, não por opção, mas por ser mais fácil ter alguém conhecido estudando comigo, caso eu passasse. E passei, na primeira lista.

Eu não tinha facilidade de locomoção e não podia contar com meu pai para me levar e trazer de onde precisasse ir, então, no início, eu e minha irmã íamos com um taxista vizinho que era pago mensalmente. 

Mas a faculdade era muito longe de onde morávamos e estava ficando muito caro.

Então, minha irmã e eu nos mudamos para o apartamento de minha avó, no Largo do Arouche, que estava vazio, pois ela não podia mais morar sozinha ali. 

De repente, me vi longe de minha casa, de minha mãe, de minhas coisas, éramos só eu e minha irmã. Até então, minha irmã e eu não tínhamos grande proximidade, mas a convivência diária nos aproximou. 

Ela cuidava de mim, me carregava escada acima na faculdade, me levava ao banheiro (banheiros adaptados nem existiam), me empurrava pelas ruas do centro até chegarmos numa rua mais próxima à faculdade para pegarmos um táxi e não pagarmos muito.

Ela me colocava no táxi, guardava minha cadeira e assim íamos as duas para o Mackenzie. Voltávamos a pé, o dinheiro não dava para pagar táxi na volta também. 

Era uma bela caminhada, mas voltávamos rindo, tagarelando, olhando vitrines. Não me lembro de jamais ter ouvido minha irmã reclamar por cuidar de mim e foi uma época em que eu era bem dependente.

Na faculdade fiz amigos preciosos. Eles passaram a me carregar para cima e para baixo. Havia uns 6 que se revezavam ora me carregando ora carregando a cadeira. 

Eles eram minhas pernas lá e me levavam a qualquer lugar que precisasse ir, não importando a quantidade de degraus no caminho.

Nessa época, através do grupo de jovens, conheci Benê, que se tornou o amor de minha vida.

O tempo do grupo de jovens e da faculdade acabou, mas ficou Benê e com ele comecei a construir a parte mais bonita de minha vida, minha família. 

Desde o início, ele quis saber detalhes de minha paraplegia, aprender a lidar comigo, a me ajudar no que precisasse. Em pouco tempo, senti-me totalmente à vontade para ser ajudada por ele, inclusive para ir ao banheiro. 

Ele nem ligava para possíveis comentários, me pegava no colo e entrava no banheiro comigo onde quer que fosse.

Namoramos quatro anos, construímos uma suíte na casa de minha mãe e, pela primeira vez, tive um banheiro adaptado e pude ter total independência. 

Veio o casamento, depois os filhotes e estamos sendo felizes para sempre.

Minha família nunca foi de posses, meus pais se sacrificavam para que eu pudesse estudar (principalmente com as despesas de transporte).

Estudar em escolas regulares, tendo o direito de ser uma pessoa comum, foi determinante em minha vida. Se na AACD o pensamento fosse outro, se achassem que a criança com deficiência deveria ficar entre "os seus" e não com o todo, certamente hoje, eu não teria assunto para este texto, não teria marido, filhos, talvez nem mesmo uma história para contar.

Obstáculos à inclusão sempre existiram e não acabarão de uma hora para outra, mas com uma dose de boa vontade, como a das pessoas que me acompanharam na vida, os obstáculos podem ser vencidos e a inclusão uma realidade.

Avaliação deste Artigo: 5 estrelas