Filosofando
Educação para o pensar e o desenvolvimento de habilidades e competências cognitivas
Coluna Educação para o pensar
É possível educar para o pensar?
Antes da resposta, é prudente perguntarmos o que entendemos por pensar.
Com certa freqüência usamos expressões como “meus alunos não sabem pensar”; “pense um pouco que você resolverá o problema”, “se tivesse pensado não teria feito isso”; “penso em um mundo melhor”.
O que queremos dizer com cada uma dessas expressões?
Quando digo “penso em mundo melhor”, talvez queira me referir à capacidade do pensamento de imaginar novas possibilidades, de criar e ultrapassar as fronteiras do conhecido ou mesmo do estabelecido. Neste sentido, pensar está intimamente ligado à capacidade humana de fazer novas relações.
Quando digo “se tivesse pensado não faria isso” refiro-me ao pensamento capaz de modificar as ações, refiro-me a uma outra face do pensar: aquela capaz de avaliar, ou melhor, de produzir juízos acerca dos fatos, relações e ações. A capacidade de avaliar, julgar e produzir juízos permite a retomada dos procedimentos do pensar e, conseqüentemente, a modificação de nossas atitudes, conhecimentos ou mesmo conceitos.
Quando digo “pense um pouco que você resolverá o problema” refiro-me a um pensamento capaz de ordenar, organizar os dados disponíveis e aplicá-los a novas experiências. Trata-se da capacidade de raciocínio partindo de dados ou informações disponíveis poder extrair novas informações derivadas do que já conhecemos. O raciocínio nos permite ampliar nosso conhecimento.
Mas o quero dizer quando afirmo que “os alunos não sabem pensar”?
O que, então, estaria em jogo nesse tipo de afirmação?
Seria possível afirmar que alguém não pensa?
Imaginemos duas cenas bastante corriqueiras:
Primeira cena - Tenho no berço um bebê que não sabe ainda falar, mas chora e muito. Toda vez que ele chora o alimento, troco as fraudas ou simplesmente o acalanto em meus braços. Rapidamente ele “descobre” que o choro gera atenção e cuidado e, conseqüentemente, “descobrimos” que o bebê não mais apenas chora quando tem dor, fome, ou está molhado.
Segunda cena - Uma criança ainda pequena recebe um doce após as refeições. Observa atentamente aonde o doce é guardado: em uma lata em cima de um armário. Resmunga, aponta a lata, chora e vê seu pedido não atendido. Percebe que em cima da cadeira consegue alcançar objetos que de outra forma não conseguiria e, de repente, nos surpreendemos com a cadeira colocada perto do armário e a criança em cima dela com a ponta dos pés, puxando a lata.
Essas duas cenas revelam que a capacidade de fazer relações, inferir, fazer analogias, simbolizar se desenvolve mesmo antes que os pequenos seres humanos tenham dominado a linguagem. Sabemos que nossa capacidade de pensar se desenvolve diante de nossa necessidade de agir e interagir com o outro. Mas, o que estaria por trás da afirmação “os alunos não sabem pensar”? Estaríamos nos referindo à capacidade de criar, de avaliar, de ordenar dados e aplicá-los em novas situações?
Acredito que o que esteja por trás dessa afirmação ultrapasse o jogo enigmático que envolve a palavra “pensar” e se instale em um campo muito mais complexo e sedutor da ação humana, ou seja, a capacidade do homem de dar ou atribuir sentidos e significados para aquilo que cria, avalia ou ordena. Trata-se de um pensar que se debruça sobre si mesmo para indagar acerca de suas possibilidades, seus limites, fundamentos. Trata-se de um pensar que não apenas avalia, mas é capaz de autocorreção; que não apenas cria, mas transforma; que não apenas ordena, mas projeta. Trata-se de um pensar reflexivo, capaz de pensar o pensar em suas formas e procedimentos.
Neste sentido seria possível afirmar que os alunos não sabem pensar. Todavia, se as habilidades cognitivas se desenvolvem em situações, ainda na tenra infância, diante da necessidade de agir e interagir com o mundo, porque essa necessidade desaparece na escola, diante de uma educação formal?
Diria que uma das principais causas estaria no divórcio entre o conhecimento e seu sentido ou no terreno da ação e da vida humana. Mas é preciso cuidado diante dessa afirmação. Isso poderia gerar um dos erros mais comuns que vemos na educação: como as experiências de vida são múltiplas e diversas, por si mesmas, seriam capazes de despertar a curiosidade e o espanto necessários para o desenvolvimento das habilidades cognitivas. Ao professor caberia canalizar as potencialidades já latentes necessárias ao conhecimento já instituído e formalizado. Ora, se isso não for possível é porque é impossível “tirar leite de pedra”, ou melhor, “não dá para ensinar mediante a falta de pré-requisitos básicos e elementares”.
Ora, essas afirmações tão simples e comuns em reuniões pedagógicas trazem em si um pressuposto que dificilmente é analisado: a crença de que as potencialidades cognitivas são inatas e que diante dos tropeços do pensar não há nada a fazer. Poderíamos supor que essa crença tem sua origem na própria concepção de educação centrada na relação ensino – aprendizagem que supõe um sujeito que apreende e um objeto a ser apreendido por intermédio de um outro sujeito que ensina o que deve ser aprendido. Nesta relação há pouco lugar para o sujeito que pensa, analisa, relaciona, ordena, conclui. O foco no pensar é colocado em segundo plano.
A contrapartida dessa postura pode ser observada na ênfase de estudiosos e especialistas em educação sobre a importância de favorecer o desenvolvimento de habilidades e competências cognitivas na escola, impulsionada no Brasil, mediante a publicação pelo Ministério da Educação e Cultura dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e Médio. Mas aqui também é preciso cuidado: classificar um conjunto de habilidades necessárias à apreensão de conjunto de conhecimentos específicos de determinada área do conhecimento não significa necessariamente favorecer situações que estimulem a capacidade de pensar.
Tomemos um exemplo:
Digamos que enquanto professora de história eu tenha como objetivo trabalhar com meus alunos o movimento de Independência no Brasil. Tal movimento se relaciona com acontecimentos de ordem internacional como a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Americanos. A fim de favorecer essas relações busco, de diferentes formas, fazer com que os alunos conheçam os fatos, idéias, conceitos que impulsionaram esses movimentos. De forma exaustiva, proponho questionamentos acerca dessas intrínsecas relações e, na avaliação, solicito que relacionem a independência do Brasil com a Revolução Francesa. Surpreendentemente meus alunos demonstram algum conhecimento sobre a Revolução Francesa e sobre a Independência do Brasil, no entanto, continuam incapazes de fazer relações. O que fazer?
Na perspectiva da Educação para o Pensar, proposta pelo filósofo e educador Matthew Lipman seria necessária a formação de uma comunidade investigativa em sala disposta a alimentar a investigação tanto do procedimento do pensar quanto do conteúdo a ser pensado. Sendo assim, os exercícios que favorecem o desenvolvimento das habilidades não podem e não devem estar separados do próprio movimento do pensar sobre o pensar. Desta forma, para que podemos auxiliar os alunos a fazer relações seria necessário examinar e investigar quais seriam as relações possíveis entre a Revolução Francesa e a Independência. Seriam relações de causa e conseqüência? Meios e fins? Parte e Todo? Semelhanças e diferenças?
É fácil perceber que esta abordagem das habilidades cognitivas está intimamente vinculada ao conceito de educação enquanto processo de investigação. Por isso, para Lipman investigar não se limita a simples prática de exploração do desconhecido, mas a uma prática que acompanhada da autocorreção permite compreender o que está sendo investigado e como está investigado:
“Não chamo um comportamento de investigação se este for habitual, convencional ou tradicional, isto é, meramente uma prática. Mas, se à prática subseqüente da autocorreção for acrescentada àquela prática, o resultado é a investigação. É basicamente através das habilidades de investigação que as crianças aprendem (...) a explicar e prever, a identificar causas e efeitos, meios e fins, meios e conseqüências, como também a distinguir estas coisas entre si. Elas aprendem a formular problemas, estimar, medir e desenvolver inúmeras capacidades que formam a prática que se associa ao processo de investigação.” (LIPMAN, 1995)
Se o processo de autocorreção está intimamente vinculado ao conceito de investigação, o resultado da investigação conduz à produção de juízos. Juízos são afirmações ou negações acerca do que foi investigado.
Ao processo de encadear os juízos através de determinadas regras e procedimentos que busquem preservar a validade e buscar a verdade, chamamos raciocínio.
“Considerando aquilo que conhecemos, o raciocínio nos permite descobrir coisas adicionais afins. Nosso conhecimento se baseia na experiência do mundo e é por meio do raciocínio que ampliamos este conhecimento, preservando-o.” (LIPMAN, 1995)
Se tanto o processo de investigação, quanto o processo de raciocínio nos permite conhecer, é necessária a organização das informações e do conhecimento em grupos significativos. Esses grupos nos permitem conceituar, ou seja, estabelecer redes de significado. Essas redes conceituais permitem a própria organização do pensar, “são veículos do pensamento, entidades pelo qual o pensamento se realiza”.
Mas o pensamento se expressa através de diferentes códigos de linguagem. O cuidado na preservação do significado se faz através do desenvolvimento das habilidades de tradução.
A classificação de Lipman das habilidades cognitivas em quatro grandes grupos, de alguma forma, espelha uma seqüência semelhante à produção de uma investigação científica:
Todavia, essa aparente seqüência lógica não implica a rigidez de uma ordem ou a fragmentação de passos. Ora, se conceituar é organizar redes de significado, para conceituar precisamos comparar, inferir, deduzir, enfim, usar os elementos presentes tanto no processo de investigação como no de raciocínio. Antes essa seqüência só poderia nos auxiliar na compreensão que o esforço educativo no sentido de desenvolver as habilidades cognitivas não se limita ao treino de capacidades do pensar, mas ao esforço de pensar o processo de investigação e produção do conhecimento. O treino da habilidade de observar , necessária ao processo de investigação, não faz de ninguém um investigador, assim como o treino de chutes no gol, não é capaz de garantir a competência para jogar futebol.
Habilidades Cognitivas |
Investigação: é uma prática autocorretiva com o objetivo de descobrir ou inventar maneiras de lidar com aquilo que é problemático. Os produtos da investigação são os julgamentos. |
Raciocínio: é o processo de ordenar e coordenar aquilo que foi descoberto pela investigação. Implica descobrir maneiras válidas de ampliar e organizar o que foi descoberto ou inventado enquanto é mantido como verdade. |
Formação de Conceitos - implica na organização de informações relacionais, sua análise e esclarecimento para facilitar a utilização na compreensão e compreensão e no julgamento |
Tradução – implica na transmissão de significados de uma língua ou esquema simbólico, ou modalidade de sentido para outra, mantendo-os intactos. O raciocínio preserva a verdade e a tradução o significado |
Referência Bibliográfica
LIPMAN, Matthew. O pensar na educação. Editora Vozes, 1995, RJ.