A Semana - Opiniões
Nossas missões possíveis
Editorial
Diante daqueles homens um enorme penhasco de onde caiam as águas de uma deslumbrante cachoeira. E a eles havia sido dada uma missão importante. Para realizar esse propósito, teriam que escalar as pedras laterais dessa elevação, sem o auxílio de instrumentos apropriados. As rochas nas quais estariam se apoiando eram mais perigosas do que se imaginava a princípio já que, molhadas pelas águas e pelos respingos da queda d’agua, eram lisas ao extremo.
O trabalho que tinham pela frente não seria fácil. Outros já haviam tentado e fracassaram. Pagaram caro por sua iniciativa, sacrificando as próprias vidas. Aqueles homens estavam cientes disso e, apesar dos insistentes pedidos de alguns deles, foram demovidos da idéia de que todos teriam que transpor aquela muralha ao mesmo tempo. Somente um deles, justamente o que possuía mais experiência e autoridade, é que iria enfrentar esse e outros perigos que os espreitavam naquelas terras desconhecidas aos seus olhos.
Ele podia até estar sentindo medo, mas não demonstrava. Sua obstinação era tão grande que sabia ser capaz de superar aquele obstáculo de pedra e água. Compreendia igualmente que aquela escalada era apenas uma breve etapa de um trabalho muito mais difícil e perigoso...
Ao iniciar a subida, Gabriel fixou pedra por pedra que teria que escalar. Cuidadosamente analisou o acidentado percurso que iria percorrer. Focou sua ação apenas naquela empreitada para que nenhum deslize pudesse acontecer. Sabia que, literalmente, um deslize naquela subida poderia lhe custar a vida. Entendia também que o seu fracasso nessa missão, que apenas se iniciava, poderia condenar os esforços de todos aqueles com os quais trabalhava e prejudicar até mesmo a existência do grupo que representava naquelas terras.
Estudar o terreno, verificar as possibilidades, averiguar os perigos
para,
de posse das informações, iniciar a subida.
Apesar de toda a concentração devotada ao esforço que estava realizando, em alguns momentos chegou a escorregar e colocou em risco sua vida e seu trabalho. Ao chegar ao topo daquela elevação, acenou com discrição para os colegas que o viam com dificuldade em virtude da distância que os separava...
A descrição que lhes apresentei até as presentes linhas desse texto resumem apenas alguns minutos do filme “A Missão”, de Roland Joffé. Produção esmerada, protagonizada por Robert De Niro e Jeremy Irons, vencedora da Palma de Ouro em Cannes, serviu de base para a minha dissertação de mestrado no ano de 2002.
Não há muitos diálogos nesse início do filme. Padres jesuítas reunidos no sopé das Cataratas de Iguaçu, na região Sul do Brasil, sabem que tem pela frente não apenas a subida acidentada e perigosa pelas encostas daquelas potentes quedas d’água. Seu objetivo relaciona-se a catequese dos indígenas ali estabelecidos, que não aceitam o diálogo com os interlocutores religiosos e preferem manter-se “selvagens” no meio da floresta.
Gabriel (Jeremy Irons) nesse sentido acaba se tornando apenas uma metáfora através da qual pretendo falar de cada um e também de todos nós. A analogia nesse sentido relaciona-se diretamente aos enormes e aparentemente intransponíveis obstáculos que se apresentam a nossa frente todo o tempo. Alguns de nós preferem procurar outros caminhos, aparentemente mais fáceis para tentar chegar lá em cima...
Enquanto outros simplesmente abdicam do compromisso e preferem apenas “tocar o barco”, ou seja, navegar pelas mesmas águas pelas quais circulam de um lado para o outro sem que nada ao seu redor sofra qualquer alteração.
Há ainda aqueles que não sobem, mas que se ausentam durante algum tempo do olhar de terceiros para depois voltarem contando as mais incríveis histórias do mundo de lá de cima... Criativamente elaboram fábulas e iludem as pessoas ao seu redor com fantasias de uma vida que nunca viveram e que, com certeza, jamais terão coragem de experimentar...
Os
obstáculos da vida não devem ser impedimentos
para as nossas realizações, pelo
contrário, devem nos estimular a lutar com todas as nossas
forças pelos nossos objetivos.
Há ainda pessoas que no sopé da montanha, reunidos com seus pares, passam adiante o compromisso da subida para que eles não se arrisquem sua própria pele. São cautos demais para que caminhos diferentes sejam percorridos e preferem morrer na modorra e na mesmice do que arriscar-se a vôos mais altos, por céus e estrelas nunca antes visitados...
É interessante notar que, apesar da maioria das pessoas se encaixar com tranqüilidade nos padrões de comportamento que descrevi até agora, ocasionalmente encontramos um personagem como Gabriel do filme “A Missão”.
Felizmente a vida nos reserva oportunidades como essa. Encontros fortuitos com sonhadores iluminados que não apenas se alimentam das ilusões e do idealismo como também se mobilizam com todas as suas energias para que seus ideários e utopias deixem de ser apenas parte do mundo da imaginação e se tornem realidade.
Não cabe aqui, nesse espaço analisar historicamente se aquilo que mobilizou os jesuítas a catequização dos indígenas da América do Sul era ou não justo, se os instrumentos utilizados foram ou não adequados, se a ação deles representou ou não o fim de culturas e motivou o genocídio de tribos inteiras já que em seu encalço vieram também os caçadores de nativos... O que nos leva a elaborar essas linhas é a clara convicção de que existe, felizmente, espaço para que os sonhadores possam existir, mesmo que as utopias que defendem sejam aos olhos dos demais irrealizáveis...
Plantar
para colher com fartura exige uma boa seleção
prévia das sementes, preparo do terreno, boas doses de
água e sol e, em especial, dedicação e
devoção pelo trabalho por parte do agricultor...
Pois se nos dermos ao trabalho de realmente tentar erradicar o analfabetismo em nosso planeta ou ainda se quisermos levar alimento aos homens e mulheres que padecem com a fome na Terra, isso poderá se efetivar... Temos apenas que acreditar que cada um daqueles que foi devidamente instruído ou entre todos aqueles que conseguem se alimentar em suas casas não apenas fechem seus olhos a todas as injustiças que ocorrem ao seu redor – mas que se mostrem disponíveis para enfrentar esses problemas como Gabriel fez quando subiu pelas altas encostas das Cataratas do Iguaçu...
Temos que ter perseverança e, ao mesmo tempo, discernimento para saber que cada pedra na qual nos apoiamos em nossa subida é parte essencial da escalada da vida. Não podemos desesperar ou desistir se as rochas nas quais nos penduramos se mostram lisas, escorregadias e se em alguns momentos sofremos com pequenos deslizes e nos arranhamos ou nos batemos contra a dureza da montanha...
E de que forma essa analogia com o filme “A Missão” se relaciona com a educação?
Pretendemos sempre atingir os resultados esperados para a educação a partir de atalhos que nos levem mais imediatamente ao topo das montanhas que pretendemos escalar. Queremos fórmulas fabulosas que consigam transformar pedra em ouro e que, dessa forma, nos permitam efetivar o ensino-aprendizagem sem que inexistam os sacrifícios. E nossos alunos mais do que nós mesmos, querem que a educação aconteça por osmose, apenas a partir do contato que travam com os professores, com livros ou com a internet...
Não há tais atalhos para a maturação do saber. O conhecimento demanda que as etapas sejam vencidas como Gabriel superou a montanha que estava a sua frente, ou seja, pedra após pedra. Os deslizes e pequenas (ou grandes quedas) fazem parte não apenas da consecução da aprendizagem, mas também da própria existência humana. As possibilidades que podemos vislumbrar através do estudo e da pesquisa são grandiosas... Temos que saber, porém, que demandam tempo, dedicação, concentração, disciplina, vontade e, acima de tudo, devoção pelo que se está fazendo...