Planeta Educação

A Semana - Opiniões

João Luís de Almeida Machado é consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.

Blues carnavalesco
A violência e a impunidade ameaçam o reino de Momo

Desenho-de-um-rei

No reino de Momo, onde deveriam prevalecer a alegria, o encantamento e a festa das Colombinas e Pierrots o que mais tem chamado a atenção de todos são os excessos que ocasionam a violência, o abandono das tradições e as celebrações marcadas pela tristeza onde a batida mais se parece com o ritmo triste e arrastado de um blues do que com a batida alegre, alto astral e contagiante do samba...

Isso pode parecer apenas a constatação de um escriba desiludido com a maior festa popular do mundo, privilégio dos brasileiros que encanta viajantes de todo o mundo. Festa pagã herdada pelos cristãos antigos e que acabou sendo incorporada ao calendário religioso como o momento em que se reinicia a busca pela santidade perdida pelos erros e pecados da luxúria, da gula, da vaidade, do orgulho exacerbado,...

É claro que, ao escrever numa quarta-feira de cinzas, alguns leitores podem imaginar que essas linhas estão impregnadas da necessidade de purificação da alma intoxicada pelos inebriantes prazeres do mundo material e que, nesse momento, podem estar atormentando a consciência de quem lhes dirige essas letras...

Longe de mim, e de qualquer ser humano que se preze, a perfeição atribuída apenas ao Deus (ou aos Deuses) que orienta(m) nossos passos, mas os erros e infortúnios a que me refiro não têm origem numa crise de consciência pessoal. Os meus demônios interiores estão exorcizados e são mantidos a uma boa distância de mim há um tempo para lá de considerável...
O blues carnavalesco a que me refiro relaciona-se a tristeza dos carnavais de hoje, impregnados de imediatismo, intoxicados pelo álcool e por outras drogas (lícitas e ilícitas) e em que, durante quatro (ou cinco) dias, as pessoas assumem fantasias através das quais querem se libertar de seus dramas e dilemas pessoais, desatrelar-se das amarras sociais e vivenciar sonhos proibidos onde tudo lhes é permitido...

sombra-de-um-homem-de-cabeça-baixa
O uso de drogas lícitas e/ou ilícitas modifica o comportamento
de nossos jovens e os torna mais propensos a atos e ações em
que não se envolveriam se estivessem sóbrios.

E não me vejam como um saudosista de carnavais de outrora, quando as pessoas queriam apenas ir aos salões ou as avenidas para dançar, desfilar, paquerar, cantar em altos brados o samba de sua escola ou bloco e pular sem parar. E que, para isso, não precisavam se abastecer com enormes doses de cerveja e de outras bebidas alcoólicas ou ainda de lança-perfume, maconha, ecstasy, cocaína,...

É claro que esses carnavais, em que as pessoas saíam de suas casas com o intuito de se divertir e de interagir com as outras pessoas, sem a disposição de criar confusão ou de imaginar que durantes esses poucos dias as leis da terra foram revogadas por completo, eram muito mais saudáveis e interessantes, alegres momentos de descontração em que o maior dos folguedos populares acontecia sem grandes contratempos. E que o desejo de muitos e muitos brasileiros é o de que esses dias retornem para a felicidade geral da nação.

Afinal de contas, quem gosta de brincar o carnaval e ainda deseja desfrutar de bons momentos nas ruas ou nos clubes e também quem tem filhos na adolescência ou na juventude que gostam da folia atualmente mais padece do que comemora a grande festa do samba, do axé e das marchinhas.

As manchetes dos grandes jornais brasileiros de certa forma corroboram esse posicionamento de muitos brasileiros apaixonados por carnaval e que hoje preferem manter distância a se arriscar nos aglomerados que comemoram a grande festa de Momo. Aumentos das taxas de crimes violentos estão sendo registrados nas grandes capitais do carnaval, como Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife,...

Desenho-de-um-personagem-triste
A alegria do carnaval está se dissipando e em seu lugar prevalecem
as dúvidas, os problemas e as lágrimas do Pierrot...

E se isso não bastasse, as pequenas e médias cidades, onde os folguedos carnavalescos também são tradicionais e reúnem milhares de pessoas todos os anos, estão sendo acometidas por atos de selvageria e brutalidade como espancamentos, brigas generalizadas, jovens alcoolizados, drogas em abundância e sem controle por parte das autoridades,...

De alguns anos para cá os dados das polícias militares estaduais demonstram que o número de casos de pessoas envolvidas em delitos e brigas durante o carnaval tem aumentado de forma considerável. Um exemplo marcante disso é Salvador, que teve aumento da criminalidade no carnaval de 2007 numa base de 30% em relação ao ano imediatamente anterior.

Vale ressaltar que a capital dos baianos tem uma grandiosa vocação para o turismo, destaca-se por suas belas praias, tem um irresistível apelo histórico para quem por lá passa, dispõe de uma rede de atendimento hoteleiro de boa qualidade e possui uma população calorosa e muito simpática aos olhos de quem a visita... No entanto, furtos, arrastões, assaltos, arruaça e agressões causadas durante o carnaval, a festa de maior repercussão e público para os baianos e os brasileiros em geral, causam constrangimentos, afastamento e acabam tornando o país inóspito aos estrangeiros que para cá pretendiam (ou tem a intenção) de viajar.

Confesso que, além de todos os disparates próprios do carnaval, causados em geral pelos excessos no álcool e nas drogas, há outros fatores que têm tornado qualquer momento de nossas vidas mais conturbado e problemático. Ressaltando-se ainda que as facilidades, fantasias e ilusões do carnaval (regado a cerveja e outros “acessórios” de intoxicação) acabam tornando ainda mais visíveis, como são os casos da impunidade, da corrupção, da inexistência de valores no seio familiar, da ausência de princípios (éticos, religiosos) e da própria falta de perspectivas dos jovens.

Imagem-de-um-ladrão
A impunidade nos condena a vivermos num contexto em que as pessoas
não se sentem instadas a respeitar as leis, os códigos de conduta, a ética ou a moral...

Todos eles repercutem no comportamento das novas gerações e, certamente, ajudam a explicar parcialmente os desvios de comportamento que resultam em agressões torpes, covardes e cheias de maldade como as que temos presenciado pelos quatro cantos do país. Penso que há uma relação direta entre esses fatores e que, entre eles, a impunidade que prevalece no Brasil é, atualmente, um dos fatores decisivos para compreendermos a insegurança que reina em praticamente todos os lares.

Situações como a de deputados ou senadores que cometem atos ilícitos e não são punidos por seus crimes, casos como o do menino João Hélio (de apenas 6 anos de idade), barbaramente arrastado até a morte pelas ruas do Rio de Janeiro ou crimes hediondos como o de Bragança Paulista, ocorrido há alguns meses atrás, quando os ladrões que roubaram uma loja queimaram quatro pessoas dentro de um automóvel (três de uma mesma família, sendo que uma das vítimas era também uma criança) dão ao brasileiro a perspectiva da barbárie que se encontra a apenas alguns passos de sua casa, a espreitar-lhe em qualquer esquina... E o que acontece nessas situações?

Apesar da legislação de boa qualidade criada no país, a impunidade reina... E isso se traduz nas ruas, no inconsciente coletivo, como permissividade total, a nos dar aval para atentar contra tudo e todos, ferindo a moral, burlando os códigos legais, atentando contra os costumes, ferindo parcial ou mortalmente nossos compatriotas,...

Por essas e por outras, nesse carnaval de 2007 prevaleceu em minha alma a sensação mais anti-carnavalesca de muitos e muitos anos. Nunca fui um folião daqueles que “quebra o coco e arrebenta a sapucaia” – daqueles que espera o carnaval ansiosamente ou que prepara fantasias para sair num bloco ou arrebentar no salão. Pelo contrário, meu jeito introvertido sempre me fez ir aos salões mais no embalo dos amigos ou da família do que realmente movido pela paixão dos que tem o carnaval nas veias. Apesar disso sempre participei com disposição e alegria dessa que é a mais tradicional festa dos brasileiros.

Foi um carnaval em ritmo de blues que atingiu não só a mim, mas a muitas outras pessoas que sentem saudades daqueles bailes em que as pessoas dançavam por horas a fio e se divertiam de forma saudável, numa brincadeira alegre em que as pessoas se respeitavam; ou ainda dos desfiles nas avenidas em que todos pareciam se congraçar com o público num êxtase coletivo que encantava pelas fantasias, alegorias, músicas, bailados e muito samba no pé. Os Pierrots do presente prevaleceram através de suas lágrimas, derramadas não pela perda das amadas colombinas, mas pelo rumo que os carnavais estão tomando, em que a violência e as drogas estão nos levando a sepultar a mais popular festa nacional e suas mais caras tradições...

Avaliação deste Artigo: 4 estrelas