Aprender com as Diferenças
A Morte como Pauta do nosso Existir
Emílio Figueira
Esses dias, lembrei-me de uma aula sobre Psicologia Hospitalar onde discutimos vários aspectos que envolvem a morte. Em contrapartida, lembrei-me do meu nascimento, quando por questões médicas passei muito tempo da hora de nascer. Foi um parto difícil, tive asfixia cerebral, nasci todo roxo, sem respiração e sinais vitais. Por instinto dos médicos, mas principalmente pela mão de Deus, fui colocado no balão de oxigênio e deixado lá, mesmo sendo considerado morto. Após cinco horas, comecei a chorar, dando sinal de vida. Como disse certa vez uma psicóloga muito minha amiga, eu nasci vencendo a morte. Acho que o assunto morrer é tão bem resolvido na minha cabeça, que hoje senti vontade de escrever sobre ela.
De forma consciente ou inconsciente, todos temem e aguardam com certa ansiedade o que poderá ocorrer após a morte. Desde os primórdios das civilizações temos a noção que a alma é imortal e esse é único ponto que qualquer denominação religiosa concorda por igual. São essas mesmas religiões que recorremos como uma forma de amenizar essa angústia e medo do além-túmulo, orientando-nos com muitas convicções diante do mistério da morte. Mas não entrarei nesse terreno. Sempre digo que o papel de nós cientistas, área da saúde e intelectuais é achar e dar respostas aos fenômenos ocorridos entre a concepção e a morte do ser humano; o que vem antes ou depois da existência, não é nosso departamento.
Em culturas tribais a morte não é necessariamente um problema, mas sim um ritual de passagem, cultuado em práticas coletivas de comunicação e pedidos de ajuda aos ancestrais que apenas mudaram de estado para pertencerem à comunidade dos mortos. Nos sociedades tradicionais também temos os nossos rituais de passagem conforme a religião do morto.
Antigamente esses rituais em nossa cultura eram mais vivenciados, principalmente em pequenas cidades do interior. Quando alguém morria, seu caixão era colocado em cima da mesa da sala de juntar e diante dele passavam os parentes, conhecidos e outras pessoas ocasionais. O corpo era velando noite adentro. As crianças circulavam pelo ambiente, não sendo poupadas desses momentos que fazem parte da vida. Nas conversas baixinhas o morto era chorado e sua memória frequentemente lembrada. Todos acompanhavam o finado em um cortejo fúnebre e silêncio até o cemitério. Após o sepultamento, por um período, sua ausência era assinalada pelo luto, cuja duração variava conforme o tipo de parentesco e, em algumas regiões brasileiras, a viúva deveria permanecer de preto pelo resto da vida. As pessoas mais próximas à família cumpriam um conjunto de atos determinados socialmente, como visitas ao cemitério, missa de sétimo dia para alma do morto, visitas de pêsames, cartas de condolências, visando apoiar e ajudar aos parentes a atravessar o período doloroso da perda e a reintegração da família do finado à vida normal.
Mas hoje, quando recebemos um telefonema com a notícia de falecimento, dizemos: “Poxa, que chato. Se sobrar um tempinho, dou uma passadinha aí!” – resultado do fenômeno de urbanização dos centros industrializados, quando grande a cidade destruiu os antigos laços, fragmentando a comunidade em núcleos cada vez menores e instaurando extremo individualismo. Hoje, tanto na grande como na pequena cidade, quando alguém morre, os serviços são entregues às funerárias cada vez mais especializadas; o velório é feito ou em um salão chique na própria funerária ou no necrotério. Não se costuma levar mais as crianças, as quais cada vez mais crescem à margem dessa realidade da vida e nunca vêem um morto nem cemitério. Cada vez mais assistimos a tentativa de ocultação da morte por representar um peso e a tomada de tempo cada vez mais imprescindível para o nosso individualismo que não agüenta vivenciar sentimentos de perdas. Talvez isso explique a sofisticação das funerárias em “tomar conta do morto”. O antropólogo brasileiro Roberto da Matta em seu livro “A casa e a rua”, de 1985, refere-se ao fato dos mortos serem colocados em caixões acolchoados de cetim que lembram uma cama confortável: “O que seria isso, senão um modo radical de livrar-se do morto, transformando-o em alguém que realmente dá a impressão de repousar?”
Estar chegando aqui no meu Boteco para bater um “papo-cabeça” o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores fundamentais da filosofia existencial do século XX. As bases de suas idéias foram expostas em 1927 na obra inacabada “O Ser e o Tempo”, publicada em Marburgo, que o tornou célebre fora dos meios universitários. O ponto de partida de seu pensamento e interrogações é o problema do sentido do ser. Dizia que somos essencialmente mediados pelo passado, mas um “ser que caminha para a morte” e sua relação com o mundo concretiza-se a partir dos conceitos de preocupação, angústia, conhecimento e complexo de culpa. Por isso, precisamos tentar “saltar”, fugindo de nossas condições cotidianas, visando atingir o nosso verdadeiro “eu”.
No sentido de alienação, para Heidegger o homem está fora das coisas, nunca sendo completamente absorvido por elas, mas não obstante não sendo nada, à parte delas, vivendo até o fim em um mundo no qual ele foi jogado. Mesmo estando no mundo e constituindo-se algo à parte, estaremos no ponto de ser submergido nas coisas. Somos continuamente um projeto; mas ocasional ou mesmo normalmente, podemos ser submergido nas coisas a tal ponto que é absorvido pela temporariamente. O ser humano encobre aqueles condicionantes existenciais, aquilo que ele de fato é, entregando-se a uma rotina de “superficialidades públicas” na vida cotidiana, sem ser ninguém em particular; uma estrutura revelada como uma tendência da alienação de si mesmo, que leva-nos à tendência de nos conhecer apenas através da comparação que fazemos de nós mesmo com os outros indivíduos e nossos pares por conversas e inócuas e curiosidades. Nesses diálogos quem fala e quem ouve não está em uma relação pessoal genuína ou em qualquer relação intima com aquilo sobre o que falam, o que, portanto, conduz a superficialidade. A curiosidade é uma forma de distração, uma necessidade para o “novo”, algo “diferente”, sem interesse ou capacidade de maravilhar.
No ato de viver, surgem nossas angústias que para Heidegger pode ser positivo. Angustiamos diante de algo que nos perturba, situações que parecem sem saídas. Diante delas entramos em contato com o nosso intimo, descobrindo soluções ou forças internas que desconhecemos tê-las, criando coragens para transpor e vencer nossos problemas materiais e existenciais. A angústia, resultando da falta de base da existência humana, funciona como um mecanismo para despertar o homem de suas alienações. Sendo a “existência” intermediária e temporária entre o nascimento e a morte, nosso projeto de vida tem origem no passado (em nossas experiências), caminhando para o futuro, o qual podemos controlar, mas será sempre incompleto, limitado pela morte que não podemos evitar.
A angústia funciona para revelar o ser autêntico e a liberdade como uma potencialidade, ante a relevância do tempo, da finitude da existência humana, é experimentada como uma liberdade para encontrar-se com sua própria morte. Daí surge nossas ansiedades, nossa pressa de viver e ver tudo acontecer. Inconscientemente sabemos que caminhamos para morrer; cada minuto que passa é um minuto que não temos mais. Só que a ansiedade, quando vivenciada como a negação da alienação e a busca de nossos desejos, abre o homem para o ser, introduzindo esse conhecimento existencial no projeto de sua vida, apropriando da existência e fazendo-a efetivamente sua, tornando-se autêntico, não mais um ente sem raízes.
Trocando em miúdos, Heidegger descrevia o homem como possibilidade, como projeto, que ao nascer, é introduzido na temporalidade. Com muitas escolhas, nossas vidas podem ser aquilo que almejamos e planejamos, lançar-se há inúmeras possibilidades, sendo que nossa única situação-limite é a morte. Segundo ele, o homem autêntico enfrenta suas angústias, assumindo a construção de sua própria vida; o homem inautêntico foge da angústia, esconde-se na impessoalidade, nega-se a transcender, repedindo os mesmos comportamentos de todos. Aliena-se, aceitando tudo com naturalidade, sem indagações, sem reflexões.
Foi só Heidegger pagar a conta e deixar o Boteco, que meu amigo Sigmund Freud chegou com o seu charuto, cartola e bengala. Continuamos conversando sobre assunto. O pai da Psicanálise considera a ansiedade como um medo sem razão, pois muitas vezes desconhecemos o que tememos, não conseguimos identificar sua fonte ou um objeto especifico que a tenha provocado. Freud também considera o nosso nascimento já representa a primeira morte. Dentro do útero estamos seguros e temos todas nossas necessidades supridas de maneira rápida e eficiente. Ao romper-se o cordão umbilical, ainda estarmos com o sistema nervoso imaturo e preparado, deixamos o carinho e proteção desse útero, rumo ao enfrentamento de um mundo totalmente desconhecido e hostil. No parto a criança envolve-se em uma série de movimentos motores, respiração acelerada e aumento dos batimentos cardíacos. Tensões e temor por instinto de não ter mais suas necessidades básicas atendidas prontamente, pode ser a primeira experiência de ansiedade para o recém-nascido. E como conseqüência, durante toda a vida, poderemos estar divididos pela a angústia do velho e o novo; ao mesmo tempo em que almejaremos coisas novas, temeremos abandonar o conforto e segurança do velho.
Podemos notar que os artistas, músicos, escritores, heróis, esportistas, cientistas, revolucionários, são pessoas que estão sempre em evidência por não temerem buscar o novo, o desconhecido, romper com a velha ordem moral e comportamental. Muitas vezes, ao admirá-los pelos seus feitos, estamos admirando de maneira indireta a coragem que eles têm de se arriscar na busca do novo e negando a alienação e não ficando acomodados nas “superficialidades públicas” da vida cotidiana.
Quanto a mim, acredito que nasci já guerreando por um ideal: o de viver! E esse espírito guerreiro tem me acompanhado por toda a minha caminhada em todas as áreas. Sempre com muito otimismo e uma fé inabalável em Deus. Sempre digo com convicção que acho que Ele já me deu muito mais do que uma pessoa na minha condição poderia alcançar. Mas, ao mesmo tempo, sei que Ele ainda tem muito mais coisas para realizar em minha vida do que posso imaginar. E faço desse otimismo o meu combustível para lutar. Claro, após o meu parto, por algumas vezes já passei perto da morte e ainda passarei por vários motivos e ocasiões. Mas tenho certeza absoluta que chegará o dia que serei definitivamente vencido por ela. E partirei com uma sensação de na minha pequena existência ter feito a diferencia. Ou pelo menos, tentado…
Fonte: Blog do Emílio Figueira (http://blog.emiliofigueira.com/2008/10/03/a-morte-como-pauta-do-nosso-existir/)