Planeta Literatura
Um garoto chamado Rorbeto
Pensador com alma e graça de criança...
Há pouco tempo atrás tive a oportunidade de conhecer Gabriel o Pensador, num evento literário organizado na escola onde estudam meus filhos e trabalha minha esposa. Preocupados com a notoriedade do visitante ilustre, as mantenedoras da instituição procuraram não fazer muita divulgação do evento. Temiam que a simples presença de um dos mais conhecidos nomes da nova geração de músicos brasileiros pudesse causar tumultos nas redondezas da escola.
Gabriel não tinha vindo para cantar ou para falar de sua obra musical. Viera como autor de livros infantis em sua primeira e já celebrada incursão pelo mundo das letras devotadas aos pequenos. Diga-se de passagem que já é possível celebrar um novo êxito do cantor e compositor nessa sua nova área de atuação. Seu primogênito livro infantil já abocanhou o mais celebrado prêmio da literatura nacional, o Jabuti.
Premiação essa muito justa tendo em vista o teor da história contada pelo Pensador em “Um garoto chamado Rorbeto”. Apesar de manter a necessária docilidade que caracteriza os melhores contos infantis, Gabriel adiciona a história algumas questões “sérias” e até mesmo “adultas”. Temas como as diferenças, a tolerância/intolerância do mundo em que vivemos e o analfabetismo permeiam seu livro e acabam fazendo do mesmo uma leitura gostosa e intrigante para qualquer criança e também para os mais crescidinhos, inclusive para os adultos...
Na conversa que teve no evento literário em que estive presente, Gabriel externou hábitos do seu cotidiano relacionados à leitura desde a sua infância e adolescência. Destacou que esse constante intercâmbio com livros e autores foi decisivo para que se tornasse compositor e, agora, escritor. Disse o cantor carioca que continua um leitor ávido por novas obras e que, sempre que é possível, tendo em vista sua movimentada agenda, costuma ler contos e histórias infantis para os filhos.
O cantor, compositor e escritor Gabriel o Pensador
Considerei oportunas as colocações de Gabriel. Vivemos um momento delicado para a leitura em nosso país. Não temos uma tradição no ramo, daquelas passadas de pai para filho, incentivando-se a criação de um sentimento verdadeiro e autêntico de paixão pelas letras. Os dizeres de Monteiro Lobato, nosso conterrâneo do Vale do Paraíba, exortando os brasileiros a lerem para que possam construir um país e um futuro melhor parecem pouco propensos a ecoar tendo em vista a competição desigual com os modernos meios de comunicação e tecnologias...
As crianças desse nosso século XXI, contando com o incentivo de seus pais, dão preferência para os jogos eletrônicos ou para os filmes, gastam mais tempo ouvindo música e falando em seus celulares ou ficam penduradas por horas e horas em comunicadores instantâneos, sites de relacionamento ou portais de games on-line. Ler lhes parece atividade enfadonha e uma grande perda de tempo.
É nesse sentido que a palavra de destacadas figuras públicas, especialmente aquelas que possuem grande penetração entre as crianças, os adolescentes e os jovens, como cantores, artistas de cinema, astros da televisão ou esportistas de renome em favor da leitura é imprescindível ajuda para a fixação desse nobre e importantíssimo hábito no Brasil.
Não bastasse a apologia da leitura que fez durante a apresentação de seu livro para o público caçapavense reunido no Instituto de Educação Renascença, o Pensador ainda ressaltou que escrever é mais do que uma necessidade para ele. São, a propósito, atos complementares que não deveriam ser vivenciados a parte, me atreveria a dizer, a reforçar seu pensamento.
O compositor carioca disse para o público ali presente, formado em grande parte por alunos da 4ª série do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio daquela escola, que sempre escreveu em busca das rimas, histórias, músicas e críticas sociais que o celebrizaram. Disse que o incentivo veio de sua própria casa, mais especificamente de sua mãe, Belisa Ribeiro, jornalista conhecida que atuava na televisão e que, sendo do ramo das comunicações, lia e escrevia com grande freqüência.
A rica e variada ilustração de Daniel Bueno
dão imensa graça ao livro de Gabriel.
Talvez por esse motivo um dos principais motes de “Um garoto chamado Rorbeto” seja o analfabetismo. A constatação da importância da leitura e da escrita passa, em muitos casos, pela dolorosa experiência de não conhecer as letras. Já imaginaram como seriam suas existências se suas vidas fossem privadas do abecedário, da capacidade de entender a reunião das letras, a comunhão das palavras a formar sentenças lógicas e exprimir fatos e idéias? Acredito que Gabriel tenha perambulado por essas idéias ao criar o seu texto...
O título já nos conduz a imaginar tal sofrimento ao notarmos o erro de grafia do nome do protagonista. A explicação consta ainda das primeiras páginas e nos coloca em contato com o drama do analfabetismo a partir dos pais do garoto. Situação triste essa que não impede seus progenitores de colocá-lo na escola, para que não tenha que passar pelas humilhações a que provavelmente são submetidas as pessoas que desconhecem essa nobre arte de tessitura das letras e palavras.
Sou ainda hoje grato a minhas primeiras professoras. Heroínas que me introduziram ao abecedário e me fizeram perceber sua riqueza e as inúmeras portas e janelas que abririam em minha vida. Se hoje sou educador, escritor, historiador, articulista e pesquisador há uma dívida de gratidão eterna a ser paga a essas pessoas tão importantes e especiais em minha vida. Obrigado a cada uma de vocês. Um saudoso beijo e abraço a todas.
Mas Gabriel não se contentou em andar apenas pelo espinhoso e árduo caminho que nos faz compreender um pouco melhor as dores do analfabetismo. O seu personagem Rorbeto ainda teria que nos ensinar outras ricas lições. Isso tudo sem perder a graça, o charme e a leveza que caracterizam as mais ricas histórias infantis.
Qual será o outro dilema de Rorbeto?
A propósito, sua obra, lançada no Brasil com grande capricho visual e ilustrada com enorme talento por Daniel Bueno pela editora Cosac Naif tem a apresentação feita pelo indiscutível e já lendário Ziraldo. E é esse cânone de nossa literatura infantil que nos diz a respeito de Gabriel:
“Olha: sou fã ardoroso do rapaz e fiquei feliz de vê-lo aventurar-se agora pelo mundo da literatura destinada às crianças. Ia acabar acontecendo com o Gabriel o resultado exato de seu talento e de sua criatividade. A história que conta aqui é, como ele, originalíssima, narrada com alegria, e inventiva”.
Tendo como fã o criador do Menino Maluquinho, dá para perceber que o declarado entusiasmo de Ziraldo em torno desse talentoso moço do Rio de Janeiro está associado a características que tornam qualquer obra literária um sucesso perene, ou sejam, originalidade, inventividade e alegria. Rorbeto é um maluquinho da periferia carioca que bem poderia viver em qualquer bairro ou cidade de São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Curitiba ou, até mesmo, do Vale do Paraíba, como Caçapava...
O livro, como ressaltou Ziraldo, é para cima, alegre. Nesse aspecto remonta ao Maluquinho de tantos fãs pelo Brasil afora (entre os quais me incluo, certamente). Por outro lado, e é nesse ínterim que percebemos a originalidade de Gabriel, as abordagens relacionadas a questões importantes como o analfabetismo, a tolerância/intolerância e as diferenças entre as pessoas permitem as crianças e adolescentes participar do mundo em que vivemos “sem perder a ternura jamais”...
A inventividade vem na forma das palavras e de seus encontros rimados, bem ao estilo da música inteligente e envolvente de Gabriel. Seus raps traduzem com enorme clareza e vivacidade as inusitadas situações que marcam a história social, política e cultural de nossa nação. “Um garoto chamado Rorbeto” tem essa assinatura do compositor impregnada em seu DNA, como a atestar a paternidade famosa que o trouxe ao mundo.
É livro para ler com os filhos e até sozinho, sem medo de ser feliz. Gabriel o Pensador entrou no ramo pela porta da frente. É maduro e tem a experiência e o molejo de quem já conhece a fama e não se ilude com ela. Continua sendo um jovem (e acredito que nem o passar dos anos tirarão do mesmo sua forma de pensar associada ao frescor e a energia dos mais novos), mas já está vacinado e, certamente veio para adicionar novas forças ao combalido cenário literário nacional, carente das figuras importantes que já partiram para outra dimensão ou que estão se aposentando... Bem-vindo Gabriel!