Planeta Educação

Aprender com as Diferenças

MAQ – Marco Antonio de Queiroz  Profissional do SERPRO - Serviço Federal de Processamento de Dados, como Programador de Computadores, de Novembro de 1981 a Novembro de 2003. Consultor especialista em acessibilidade digital, tem 23 anos de experiência em programação de sistemas de informação e 6 anos no desenvolvimento de acessibilidade nas páginas da Web. Ministra cursos de HTML e acessibilidade Web para empresas no Brasil; Editor de artigos, desenvolvedor da versão portuguesa das Diretrizes Irlandesas de Acessibilidade, criador e conteudista do site:www.bengalalegal.com Membro do grupo Acesso Digital: estudos, pesquisa e desenvolvimento de acessibilidade em páginas web; Consultor do Centro de Vida Independente Araci Nallin (CVI AN) SP; Consultor em acessibilidade web da "Click Maujor" -www.clickmaujor.com Autor do livro: "Sopro no Corpo - Vive-se de Sonhos, Rima Editora, 2005, onde escreve sobre a perda de visão aos 21 anos e sua reabilitação. Cego, divulgador e incentivador da inclusão social e digital para pessoas com deficiência.

Diferentes e Diferenças
Marco Antonio de Queiroz - MAQ

Oi:

Não é preciso ter uma doença, uma diferença física ou sensorial para se sentir diferente dos outros.

Outro dia conversando com Kathleen, nossa amiga de lista, que me enviou a música "Parole, Parole", cantada por Alain Delon, considerado o homem mais bonito dos anos 70 e por Dalida, segundo ela, Kathleen, uma mulher exuberante, cantora da moda, de origem egípcia, eleita Miss Cairo em 1954, e que se matou tomando barbitúricos.

Linda, consagrada, de um corpo escultural, com dinheiro e... não tinha algo que achava que todos tinham ou poderiam ter, mas que ela não. Matou-se deixando escrito um bilhete onde lastimava não ter podido ter um filho e não ter conseguido manter um marido, reconhecendo ser uma deusa, mas uma deusa de coração triste e com um vazio na alma...
 
Escreveu no final: "Perdoem-me; a vida é insuportável para mim". Era uma mulher infeliz, era diferente.

Enquanto só diabético eu já me sentia diferente. Quando fiquei cego a diferença ficou muito mais pública. Fazendo hemodiálise, comecei a cumprimentar a morte acreditando que tudo que via de bom em mim não valia mais nada, e que viver não valia a pena.
 
Certa vez estava em meu quarto, ainda na casa de minha mãe. Era o terceiro andar e dava para uma rua lateral à rua principal e estava me sentindo muito mal. Dores fortes de um glaucoma que os médicos não conseguiam parar e diziam que a solução provável era estourar o globo ocular e colocar uma prótese na vista.

Eu dizia: “Qualquer coisa, não agüento mais!”
 
Mas, naquela hora, no quarto, escutei alguém andando na rua e pensei que, eu não queria ser eu e, sendo quem fosse que estivesse passando lá em baixo, um homem, uma mulher, um mendigo, pobre, rico, bonito, feio, alto, baixo, pessoa honrada ou indigna, eu gostaria de estar em seu lugar, abandonar meu corpo, minhas dores e ser outra pessoa.

Era como se meu espírito tivesse entrado em um corpo errado, limitado demais e ele prisioneiro... Eu só queria poder andar de madrugada com aquela tranqüilidade de quem está indo fazer nada... e sem dor, quase assoviando.
 
Somos todos diferentes, até as pessoas que não aprenderam com a dor, que não sentiram dor, as pessoas mais comuns são diferentes, porque somos essencialmente insatisfeitos.

Ter diabetes pode ser uma grande diferença para alguns, mas se ela não existisse, ainda assim, poderíamos nos sentir diferentes e ficarmos insatisfeitos por outros motivos. Se a diferença do outro é maior que a nossa, ou simplesmente uma diferença diferente da nossa, acabamos por nos consolar até o cotidiano nos mostrar que o que importa é a nossa diferença e é por ela que "choramos".
 
Jogamos na maior de nossas diferenças todas as nossas reclamações de vida, da vida, de nós mesmos. E é por tudo isso que a felicidade é rara, porque a insatisfação é constante. Nos raros momentos em que somos totalmente felizes, esquecemos todas as diferenças e insatisfações, para percebermos, emocionalmente, o quanto estamos completos. Nunca somos completos, estamos completos.
 
Por isso, ser diferente só pode ser motivo de crescimento, mas para isso temos de assumir a diferença, porque só a encarando, a assumindo, podemos nos acostumar a ela e pensarmos que ainda assim vale a pena. Se fugirmos... ela sempre estará em nosso encalço.
 
O que faz, em grande parte, nossos limites é o nosso medo e nossa desinformação.

A cegueira, a diabetes, ou mesmo a imunossupressão, podem servir de esteios para o nosso medo e serem depósitos de nossas frustrações e incapacidades.

"Não vou a tal lugar porque posso ter um treco por lá e o lugar é muito isolado". A culpa nunca é do nosso medo, mas sim da diabetes, de sermos transplantados, de sermos cegos ou outra coisa qualquer... no nosso caso comum é a diabetes e a cegueira. Assim, nos limitamos por vezes mesmo sem experimentar se aquela conclusão é verdadeira ou não.
 
A maioria das pessoas, que enxergam perfeitamente, jamais imaginariam ser cegas e, ainda, acreditariam em sair de casa para ir em qualquer lugar mesmo só tapando os olhos.

Até os 21 anos enxerguei normalmente e nem usava óculos. Jamais imaginei que, depois de cego, daria um passo fora de casa sem uma pessoa guia e, mesmo assim, a vergonha de ser cego era um fator de opressão enorme para mim.

Até que com uma professora de mobilidade aprendi a andar na rua, a entrar em um ônibus e me situar, a conhecer a frente do meu prédio de cor e salteado. Comecei a conquistar o Rio de Janeiro de quarteirão em quarteirão, diabético e cego.
 
Nessas condições casei, fui pai, arrumei emprego, estudei etc. E sempre achei que um cego só servia para ser mendigo, vender loteria federal em ruas movimentadas do centro da cidade ou pedinte com um garoto-guia, geralmente filho, ajudando a esmolar. Essa era a idéia que eu fazia dos cegos. Nunca conheci um cego de classe média e muito menos um cego objetivamente rico.

Hoje conheço cegos programadores de computador, analistas de sistemas, advogados com escritório, juizes de paz, procuradores da justiça... E não foi achando que não dava que chegaram em seus lugares. Temos de limitar nossas opressões emocionais para chegarmos realmente aos nossos limites reais.
 
Quem enxerga e não convive com cegos acha que cego não pode andar sozinho na rua e a maior parte de nós que não é mimada pelas famílias, superprotegida, o faz. Como diabéticos sabemos que a maioria das pessoas acha que nós não podemos comer açúcar de jeito algum.

Aí, temos uma baixa glicêmica e todos ficam espantados quando tomamos glicose na veia. Se fossemos nos guiar pelo senso comum, conceitos e preconceitos cristalizados dentro de nós e dos que nos cercam, morreríamos sem conhecer as coisas.
 
Então, não se limite mais do que já somos limitados. Eu ando fazendo isso um pouco... Começo a dizer que é a idade (risos).

Mas, todos nós só podemos conhecer nossos verdadeiros limites experimentando, aprendendo, tocando e não só imaginando a existência deles.
 
Beijos diabéticos, cegos e amantes da vida.

Avaliação deste Artigo: 4 estrelas