Planeta Educação

De Olho na História

João Luís de Almeida Machado é consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.

Os buracos que restaram da montanha de prata
Potosí e a herança das colônias latino-americanas

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O início do ano de 2006 foi agitado politicamente com a ascensão do primeiro presidente da Bolívia descendente de indígenas. Evo Morales assumiu seu país com um forte discurso nacionalista e embasado por prerrogativas sócio-econômicas que previam a estatização do subsolo boliviano e a preservação dos direitos sobre as reservas de gás natural e de outras riquezas minerais para seu próprio povo.

Respaldado pelo apoio de outros líderes esquerdistas como Fidel Castro (Cuba) e Hugo Chávez (Venezuela), Morales iniciou um embate que teve como principal oponente o governo brasileiro e a Petrobrás, que naquele país havia construído instalações para explorar o gás boliviano.

A Bolívia é atualmente considerada como o país mais pobre da América do Sul. Concordemos ou não com as medidas de Morales quanto a estatização da riqueza encontrada no subsolo de seu país (No Brasil a posse do subsolo e de seus minérios pelo estado nacional já faz parte da legislação nacional desde os tempos de Getúlio Vargas), é interessante notar que as riquezas encontradas debaixo da terra naquele país teriam sido suficientes para que fosse erigido um país rico, progressista e de futuro muito mais promissor do que aquele que se prevê para a Bolívia...

A situação em questão refere-se ao ciclo da prata de Potosí, cidade que no período colonial fervilhava intensamente em virtude da enorme riqueza extraída de suas montanhas de prata. Pode-se dizer que toda a vida latino-americana daquele período girava em torno de centros produtores de riquezas minerais como Potosí.

O surgimento de outras vilas e cidades, o aparecimento de centros de produção de alimentos e importação de produtos das metrópoles européias, a construção de estradas e portos de embarque da riqueza local, a organização de estruturas de governo, a criação de feiras e mercados ou o estabelecimento da igreja católica na América relacionam-se diretamente a existência de riquezas minerais ou agrícolas que sustentassem esse esforço, validando-o e permitindo aos colonizadores o tão sonhado enriquecimento.

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Os espanhóis se utilizavam do trabalho escravo indígena a partir de dois
sistemas, a mita e a encomienda. Em ambos os casos partia-se da premissa
de que o colonizador iria civilizar e cuidar dos indígenas e que, por esse motivo,
tinha o direito de utilizar a sua força de trabalho em pagamento pelo seu esforço.

Por esse motivo, entre os séculos XVI e XVII floresceram centros populacionais em regiões da Argentina (como Córdoba), o Peru (Lima) ou o Chile que forneciam aos moradores de Potosí produtos como alimentos (vinhos, carne seca, trigo), animais para trabalho ou consumo, tecidos e couros, produtos artesanais e tudo aquilo que a prata boliviana podia comprar.

O ciclo histórico estava invertido em relação ao que conhecemos hoje em dia, os demais países da América do Sul trabalhavam em função das riquezas bolivianas. Apesar disso, como atualmente, os lucros auferidos com a exploração da prata legavam a terceiros (no caso as potências européias) os verdadeiros dividendos de todo o trabalho que se realizava nas minas.

Os veios de onde brotava a prata também eram ricos em estanho, como era de conhecimento dos espanhóis. Esse minério foi, no entanto, desprezado pelos colonizadores, que utilizaram todo e qualquer meio disponível para ter acesso as riquezas do reluzente metal prateado. Para tanto utilizaram-se do trabalho escravo indígena e condenaram a morte precoce milhões de nativos daquela região.

De acordo com Eduardo Galeano, em sua célebre obra As Veias Abertas da América Latina, o que restou aos habitantes bolivianos que residem naquela região atualmente foi apenas “a vaga memória de seus esplendores, as ruínas de seus templos e palácios, e oito milhões de cadáveres de índios”.

O estanho continua por lá e se presta nos dias de hoje a sustentar as comunidades que persistem naquelas paragens. Nas esburacadas montanhas, de onde saiu uma colossal riqueza, há pessoas labutando em condições inadequadas, com parcos e impróprios recursos, arriscando-se a contaminar-se a partir do contato com os resíduos do estanho ou com a terra das escavações e ainda correndo risco de desabamentos ou inundações.

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As caravelas partiam do continente americano rumo a Europa abarrotadas
do ouro e da prata que obtinham com a exploração das colônias e
do trabalho compulsório de indígenas e africanos.

Potosí, que se erguia solene e próspera com seus casarios, prédios públicos e igrejas, sendo visitada por artistas que vinham de várias partes do mundo dominado pelos espanhóis e tendo como repercussão no bolso de seus habitantes as migalhas da injusta partilha colonial tornou-se um inóspito retrato da exploração colonial empreendida pelos europeus no continente americano.

Aos cadáveres devem ser somadas as consequências devastadoras ao meio-ambiente. Os inúmeros buracos de onde os espanhóis retiraram todo o minério que puderam deixaram para os bolivianos a certeza de que a terra tornou-se estéril e improdutiva. Nem mesmo a teórica contrapartida dos europeus com a construção da cidade e o erigir de uma civilização supostamente mais evoluída entre os povos americanos pode ser percebida como compensação aos enormes lucros que lhes foram dados pelo trabalho na exploração da prata boliviana.

As construções sofrem com o tempo as ações de uma erosão silenciosa, paciente, inclemente e contínua. As paredes de tijolos e os madeiramentos onde se ergueram os telhados foram corroídos e a falta de dinheiro levou os habitantes da localidade a não ter condições de realizar a necessária manutenção e reparo de suas edificações históricas. A revitalização de cidades históricas visando atender a demanda turística tem sido valiosa no sentido de conceder a essas cidades a possibilidade de reconstrução de suas principais obras arquitetônicas.

Além do mais tudo o que existia de mais valioso em Potosí (como em todas as cidades mineradoras da América colonial) foi saqueado pelos colonizadores a partir do momento em que se constatou que nada mais havia de valor a se extrair das minas locais. Era como se a derrama, através da qual se cobravam impostos altíssimos nas regiões mineradoras impondo quantidades mínimas de ouro (ou prata) a serem coletados, ocorrida nas Minas Gerais algumas décadas depois estivesse sendo aplicada prematuramente na Bolívia.

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Ao povo boliviano foram legadas as migalhas da colonização e a aculturação
evidenciadas nas construções, na religiosidade, nos hábitos, nas bases políticas
e na miscigenação étnica que caracteriza a população daquele país.

Tentando justificar o esgotamento da prata nas minas locais os espanhóis apregoaram a quem quisesse ouvir que tratava-se de castigo divino em virtude dos excessos cometidos pelos mineradores. Os gastos com festas, orgias, mulheres e muita bebida alcoólica seriam o motivo pelo qual Potosí teria perdido sua principal fonte de rendimentos.

Isso motivou o fim das touradas, bailes, fogos de artifício, grandes celebrações religiosas e qualquer tipo de festividade que anteriormente aconteciam com grande frequência naquela cidade. Nem mesmo as vultosas contribuições dadas pelos exploradores das minas a igreja católica para a construção das igrejas ou para o enriquecimento dos altares e púlpitos locais com imagens enriquecidas por detalhes em ouro ou prata livraram os habitantes de Potosí do tal castigo divino.

O que poucos imaginavam ou sabiam é que do outro lado do Atlântico, em Cádiz, Sevilha e Madri a riqueza gerada em Potosí alimentava a fartura dos espanhóis e depois era repassada para outros povos da Europa em virtude da malfadada política mercantilista espanhola.

Os acontecimentos de Potosí repetiram-se em maior ou menor escala em muitas outras regiões da América. Ao mesmo tempo em que os galeões espanhóis zarpavam rumo a metrópole com seus compartimentos cheios de riquezas, as minas devoravam os nativos americanos e os negros africanos que para cá foram trazidos como mão de obra cativa.

As minas das Américas produziram a prata e o ouro que sustentou o luxo das cortes européias da Idade Moderna e que fizeram a fortuna da ascendente burguesia. O ouro das Minas Gerais do século XVIII financiou a Revolução Industrial inglesa e acabou ajudando a promover as rupturas dos laços que ainda uniam o mundo capitalista futuro às velhas estruturas do Antigo Regime.

Quando os europeus partiram ou foram definitivamente expulsos de suas colônias americanas pelas elites que ajudaram a semear por essas terras, já haviam levado consigo a maior parte do ouro, da prata e das pedras preciosas que aqui jaziam antes de sua chegada. Como pagamento pela rica carga que levaram para seu continente deixaram cidades mortas, que séculos depois ainda pagam o alto preço da devastação de seu território e da morte de milhões de pessoas tragadas pelo trabalho escravo na mineração. Sobraram apenas os enormes buracos das montanhas de prata de Potosí...

As lições da história demoraram muito a serem compreendidas pelos líderes políticos da América Latina. Na Bolívia não foi diferente, talvez por esse motivo trágico que envolveu o destino de povos, homens e cidades do período colonial se fale hoje em dia na necessidade de dar ao população daquele país aquilo que realmente lhe pertence por direito há muitas e muitas gerações...

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