A Semana - Opiniões
Paixão pelas palavras
Uma visita ao Museu da Língua Portuguesa
“No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:
subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa
sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa é fechada
à humana consciência.
O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la”
Ferreira Gullar
(Trecho do poema extraído dos “Cadernos de Literatura Brasileira”,
editados pelo Instituto Moreira Salles
São Paulo, nº 6, setembro de 1998, pág. 77.)
Quando descemos do ônibus, apinhado de estudantes das séries finais do Ensino Fundamental e de alunos do Ensino Médio, já nos sentimos fascinados pela monumental construção que é a Estação da Luz. Sinceramente parece que viajamos no tempo e que estamos prestes a entrar na história de uma cidade de São Paulo que não mais existe. Não há como escapar ao magnetismo da edificação histórica.
Não é esse o nosso principal destino. A estação é apenas a casa que abriga o objetivo final de nossa viagem, o Museu da Língua Portuguesa. Recém inaugurado, trata-se de um espaço privilegiado e praticamente único no mundo. O Brasil, que há poucos anos deu um grande exemplo ao mundo com a organização da Mostra Brasil 500 anos, em que apresentou sua cultura de forma exemplar a todos os outros países, novamente se supera com o surgimento de um templo dedicado às palavras, aos autores, aos livros...
Nossa primeira parada foi um encontro com Guimarães Rosa e
sua clássica obra “Grande Sertão: Veredas”
Monteiro Lobato dizia “que um país se faz com homens e livros”. O argentino Jorge Luiz Borges imaginava que o céu seria uma grande biblioteca. Ferreira Gullar, de quem emprestamos os versos que iniciam esse artigo, destaca o papel do poeta e de suas letras como indicadores da cultura e da própria identidade e capacidade de compreensão de mundo.
A esses autores juntam-se Machado de Assis, Cora Coralina, Graciliano Ramos, Gregório de Matos, Camões, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado e tantos outros imortais da língua portuguesa. Acompanhados desses ilustres escritores somos levados a celebrar e saborear palavras que se reunem em versos, contos, romances, músicas, crônicas e todas as formas de expressão através das quais escrevemos cotidianamente as histórias de nossas vidas e de nosso país.
Esse encontro tão vital se dá todas as vezes que abrimos uma de suas obras e viajamos pelos confins de suas criativas letras. Vivemos num país rico que não se percebe assim e que despreza seus maiores tesouros ao não incentivar a freqüência da leitura entre as novas gerações. Lê-se muito pouco no Brasil. Lemos menos ainda os nossos autores, as histórias de um país único, de dimensões continentais.
E o mais interessante é que temos grandes contadores de histórias (tradição essa que ainda encontramos nas pequenas cidades do interior de nosso país) e uma riquíssima produção literária. Há páginas fantásticas a desbravar na diversidade de uma pátria que têm escritores paulistas, mineiros, cariocas, gaúchos, baianos, amazonenses, pernambucanos,...
É nesse sentido que a inauguração de um espaço que celebra a necessária paixão pelas letras como o Museu da Língua Portuguesa é, verdadeiramente, uma das maiores contribuições a valorização da cultura nacional que temos há um bom tempo.
A influência das línguas indígenas, africanas, européias e asiáticas
para a construção do vocabulário enriquecido e muito particular
do
Brasil é destaque no Segundo Andar do Museu da Língua Portuguesa.
Mas, voltando à visita que fizemos, a primeira parada dentro do Museu já foi encantadora aos olhos de todos. No primeiro andar, destinado à exposições temporárias, nos encontramos com Guimarães Rosa e sua obra imortal, “Grande Sertão, Veredas”. O que a princípio poderia parecer aos olhos de todos como apenas mais um amontoado de peças utilizadas pelo autor na elaboração de sua obra-prima foi transformado numa exposição que cativou os estudantes, os professores e os demais visitantes.
As folhas do texto foram transpostas para banners em tecido, como se fossem páginas de grandes dimensões e estavam penduradas no teto da sala. A elas estava atado uma alça de pano com a indicação do número da página correspondente ao texto apresentado em cada um dos banners de tecido. Os visitantes tinham apenas que puxar as alças de cada página para poder ler o texto datilografado originalmente por Guimarães Rosa e ainda visualizar as correções feitas à mão pelo autor.
Nas janelas da sala de exposições podiam ser encontrados textos relacionados a concepção das idéias e a redação do texto. Conjuntos de palavras utilizadas pelo autor, fatos do cotidiano que o ajudaram a compor personagens, idéias que poderiam ser associadas as determinados trechos da narrativa, sinônimos e vocábulos estrangeiros que seriam usados em certos capítulos,...
Alguns efeitos e ambientações criaram um clima ainda mais empolgante para todos os visitantes que ali se encontravam. Havia uma trilha que deveria ser percorrida para que pudéssemos entender melhor os destinos dos personagens principais do livro, como Diadorim e Riobaldo.
Depois dessa divertida e elucidativa incursão pelo mundo de “Grande Sertão: Veredas”, nos deslocamos para o segundo andar e para uma outra atmosfera, completamente diversa da primeira. Se o encontro com a exposição da obra de Guimarães Rosa foi marcado por efeitos criativos onde se utilizavam materiais básicos, a partir do momento seguinte de nossa visita entramos numa atmosfera que uniu a literatura aos mais avançados recursos da tecnologia.
Além de toda a riqueza da língua portuguesa os visitantes ainda
são agraciados com a bela visão da Estação da Luz,
revigorada com suas novas atribuições culturais.
Ao longo de um corredor fomos assistindo e ouvindo um pouco da história da língua portuguesa e das influências que a fizeram tão particularmente brasileira ao longo dos mais de 500 anos desde sua inserção em nossas terras. Imagens, áudios, depoimentos, músicas, acontecimentos e personagens desse processo de construção de uma linguagem caracteristicamente brasileira foram aparecendo diante de nossos olhos.
Um pouco adiante encontramos amostras e explicações em painéis, computadores, amostras culturais e jogos que nos colocaram a par da importância e influência de cada uma das etnias que compuseram a cultura brasileira. Índios, africanos, imigrantes europeus, asiáticos ou latino-americanos foram devidamente valorizados enquanto contribuintes permanentes da estruturação da linguagem que recebemos como herança dos portugueses.
Para terminar, tendo em vista tudo aquilo que presenciáramos até aquele momento, esperávamos um “grand finále”. Não nos decepcionamos, pelo contrário, fomos agraciados com a apresentação de um vídeo fantástico narrado por ninguém menos que Fernanda Montenegro, a grande dama do teatro, cinema e televisão do Brasil.
Fomos levados a um belo auditório e viajamos com a narrativa de Fernanda para depois entrarmos numa espécie de teatro grego onde sentados ao redor de uma palco imaginário fomos degustar um pouco da riqueza de nossa literatura a partir de uma viagem em 360º. Imagens, sons, poesias sendo declamadas, músicas sendo cantadas e personalidades da cultura brasileira (Chico Buarque, Maria Bethania, Matheus Nachtergaele,...) se alternaram na leitura de algumas de nossas melhores páginas.
Embevecidos e enobrecidos pelas palavras de cada um daqueles grandes poetas, contistas, romancistas e cronistas deixamos o museu extasiados. Como pano de fundo de tudo isso, o cair da noite tornava ainda mais bela a visão da Estação da Luz. Imagens e palavras se juntavam para fazer poesia e tornar ainda mais bela nossa visita e obrigatória a chegada de mais e mais brasileiros apaixonados pelas letras....