A Semana - Opiniões
Os Meninos Perdidos
Os morros da droga e a lei da selva
A ficção e a realidade se confundem. Imagens de filmes como
Cidade de Deus (de Fernando Meirelles) retratam um cotidiano
amargo,
duro, insensível e sem perspectivas, justamente como
o
que pudemos ver em Falcão – Meninos do Tráfico.
Impotente. Estarrecido. Amedrontado. Desiludido. Os adjetivos apresentados no início desse artigo revelam o estado de espírito que se apossou de mim ao assistir, no último domingo, ao documentário “Falcão – Meninos do Tráfico”, exibido pelo Fantástico da TV Globo.
Enquanto pensava sobre a profusão de informações que eram despejadas pelo documentário realizado por MV Bill e Celso Athayde (que merecem todo o nosso respeito e consideração pela ousadia e coragem de abordar um tema premente, que deveria ser encarado como prioridade por qualquer governo e também pela sociedade civil), ia percebendo a fragilidade que se estabelece em cada um de nós, seres humanos.
Estamos à mercê das circunstâncias de nossas histórias de vida. Nossa trajetória nesse mundo parece estar definitivamente relacionada às condições de vida em que estamos inseridos. As possibilidades de superar as mazelas dos morros e da droga, que lhes impingem a realidade de uma autêntica “lei da selva”, são praticamente nulas, pelo menos diante do contexto em que vivemos.
Quando uma criança de aproximadamente 12 anos, vivendo num buraco, escondida da polícia, dormindo de dia e trabalhando como “falcão”1 ou “Vapor”2 para os traficantes que dominam os morros e favelas do Rio de Janeiro (e de muitas outras cidades brasileiras), diz aos entrevistadores que a morte é uma iminência e que depois dele virão outros, melhores ou piores, o que podemos esperar?
Carregando armas de grosso calibre. Destacando-se na multidão por seu porte ainda franzino de meninos ou adolescentes (entre 10 e 17 anos) a portar armas utilizadas pelo exército, melhores do que aquelas que são parte do cotidiano da própria polícia que os combate. São esses os meninos do tráfico apresentados no documentário.
O menino com a arma na mão não é só uma reminiscência fílmica, é a história
de vida de muitas e muitas crianças e adolescentes que são prisioneiros de uma
sociedade cega, de um sistema político corrompido e da bandidagem que
domina os morros e favelas. (Acima, cena do filme Cidade de Deus).
Não é mais um caso de polícia, como muitos podem pensar. Não adianta subir nos morros e matar essas crianças e adolescentes. Mesmo porque a própria polícia é incriminada a partir dos depoimentos dados pelos menores entrevistados. Os policiais são acusados de aceitarem propina em troca da manutenção do movimento das bancas de droga nos morros e favelas cariocas.
O combate à criminalidade gerada pelo tráfico de drogas que ceifa a vida de tantos menores é problema de ordem social. Tem relação direta com a péssima distribuição de renda que ainda acomete o país, com as escolas que não ensinam e os hospitais que atendem mal. Os mortos nessa guerra civil estabelecida nesses morros e favelas constituem a estatística invisível, os dados que ninguém quer ver, que têm suas origens na corrupção e nos desmandos de políticos. No desvio das verbas dos projetos sociais para bolsos particulares em detrimento das comunidades que servem (ou deveriam servir)...
É claro que na própria favela não se enxerga o problema além do nível mais básico, mais elementar, aquele que diz respeito à necessidade de sobrevivência. É o que todos os meninos parecem dizer em seus depoimentos ao dizer que trabalham no tráfico para poder pagar as contas, dar conforto para a mãe e os irmãos, ter alguns bens que lhes dão status ou comodidade.
São os próprios meninos que dizem que são apenas intermediários de negócios inescrupulosos que começam fora do próprio Brasil, nos grandes centros produtores de drogas para o mercado mundial, como a Colômbia. E não são apenas os vendedores da desgraça alheia, como eles próprios caracterizam o produto que negociam.
A droga oprime, destrói, corrompe e mata. Os meninos traficantes sabem disso,
reconhecem que o comércio que praticam é ilegal, perigoso e letal. São
também
vítimas e prisioneiros da grande desigualdade social que assola o país.
(Acima, cena do filme Maria cheia de graça).
Os meninos perdidos são também os embaladores que manuseiam a droga, escondidos em seus barracos, pesando e embalando cada grama de maconha ou “pó” e, é claro, se tornando consumidores de almas alheias ao mesmo tempo em que se suicidam aos poucos...
Foram 16 meninos/adolescentes os entrevistados por MV Bill e Celso Athayde. De acordo com os dados apresentados no Fantástico, apenas um deles ainda está vivo. A barreira dos vinte anos de idade parece ser inquebrantável para essas pessoas. Regredimos a parâmetros medievais no que se refere à perspectiva de vida nos morros em que impera a lei da selva dos traficantes...
E os protagonistas do documentário estavam a par disso enquanto davam seus depoimentos aos documentaristas. Não tinham ilusões quanto a uma vida melhor. Queriam apenas viver o momento, que lhes parecia tudo aquilo que tinham a seu alcance. O amanhã, quem sabe, possa também ser mais um dia de vida para eles...
São meninos que não têm mais os pais. Foram abandonados quando ainda eram muito pequenos. Vítimas das drogas ou do álcool que fazia com que seus progenitores se dispusessem a vagar pelas noites, trocando de famílias, empregos e abandonando em suas andanças um rastro de desesperança e caos para a vida de suas amantes, as mães desses meninos.
Santas mães. Abençoadas pelos filhos amaldiçoados pelas drogas. Desprezadas socialmente, trabalhadoras da labuta das fábricas ou dos domicílios de famílias de classe média, essas mulheres tinham que deixar sua prole para trás em busca da sobrevivência, do alimento, de alguma esperança para os pequenos seres que acalentavam.
Sobreviver à guerra do tráfico é tarefa praticamente impossível para esses
meninos e adolescentes que se submetem ao trabalho com os traficantes.
Se não morrem consumidos pelo próprio vício se tornam alvo da ação policial
ou das lutas entre grupos rivais. (Acima, cena do documentário Ônibus 174).
As perspectivas pouco animadoras do trabalho das mães fez com que esses meninos, com seus 7 ou 8 anos começassem a prestar pequenos favores aos traficantes dos morros em que moravam em troca de alguns trocados que ajudassem a aumentar o rendimento de suas casas.
Na ausência de seus pais, passaram a olhar para esses bandidos com a admiração que sua força e presença lhes causava. Queriam ser como eles. Sabiam que ter uma escopeta ou um revólver nas mãos significava autoridade, dinheiro, prazeres mundanos e destemor.
O depoimento de um dos meninos é sintomático em uma de suas afirmações quando diz: “Quero ser bandido”. As brincadeiras simulando a perseguição a um X93 , ao seu extermínio e ao sumiço com o corpo desse inimigo, são também indicativas de como a presença desses marginais que controlam as bancas de drogas são perniciosas.
Ao assistir tudo isso percebi como somos pequenos e impotentes. Queria poder fazer muito mais. Vi meu trabalho como educador, formador de professores, editor desse portal e pesquisador tão minúsculo e empobrecido diante da realidade vil, devastadora. Queria que os políticos também se sentissem assim e que tomassem vergonha na cara para agir em prol desses meninos e de todos os outros abandonados nos sinais, explorados no campo, exauridos nas minas,...
Vi em cada um daqueles meninos alguns dos personagens do filme “Cidade de Deus”, do diretor Fernando Meirelles. Carregavam o mesmo desprezo, destemor, desapego e até um certo rancor em relação ao mundo que os condenou a uma existência maldita, que causa mortes e medo, que espanta e afugenta qualquer aproximação que lhes ofereça conforto, carinho, sonhos...
Percebi no drama desses “meninos perdidos” a origem de pessoas como o Sandro, do “Ônibus 174”. Desalentados pelo consumo de drogas, abandonados pelos familiares, sem amigos, tendo que sobreviver num mundo que lhes é totalmente hostil, se tornam criminosos e também são as vítimas dessa enorme injustiça social que se chama Brasil.
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1 Falcão = São os meninos que ficam de vigia a noite, para evitar movimentos estranhos que ameacem a banca de venda de drogas. Ficam acordados a noite toda a custa de drogas como maconha, crack e cocaína.
2 Vapor = é quem vende a droga, nos pontos de boca.
3 X9 = alcagüete, dedo-duro, denunciante das atividades criminosas do tráfico de drogas que mora na favela e que deveria ser mais um colaborador.