Planeta Educação

De Olho na História

João Luís de Almeida Machado é consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.

Futebol e Política
A Ditadura e a Copa de 1970

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O torturado escuta ao fundo seus algozes vibrando emocionados por mais um gol do Brasil. Estamos em 1970, vigora o governo de Emílio Garrastazu Médici. O Ato Institucional número 5 (AI-5) já está em vigor há quase 3 anos completos. As liberdades democráticas no Brasil foram totalmente sufocadas por um aparato repressivo violentíssimo que persegue duramente os opositores do regime militar instalado desde 1964.

Qualquer manifestação contrária às diretrizes políticas estabelecidas pelo governo Médici pede a reação imediata de todo um aparato especializado em seqüestrar, destruir, violentar e sacrificar existências humanas. Estudantes, professores, músicos, jornalistas, advogados, políticos oposicionistas, atores e toda a comunidade pensante e politicamente ativa em nosso país foi aos poucos desmobilizada, amordaçada e agredida.

Lideranças surgiram e tentaram a luta armada. Grandes e expressivas personalidades públicas brasileiras conhecidas da atualidade foram forjadas no confronto direto com as autoridades daquele período. José Serra, Fernando Gabeira, José Dirceu, José Genoíno, Fernando Henrique Cardoso, Leonel Brizola, Miguel Arraes, Dom Paulo Evaristo Arns, Frei Betto e outros importantes nomes da história recente de nosso país ganharam vulto a partir de seu engajamento no movimento estudantil, nas guerrilhas urbanas, na oposição franca da igreja em relação à ditadura, a partir de manifestações de repúdio as arbitrariedades praticadas em nosso país,...

Outros, como o deputado Rubens Paiva e o jornalista Wladimir Herzog, pagaram com a vida por suas atitudes de contestação ao duro regime que se impôs ao Brasil.

A repressão era, então, assunto de poucos. Discutido em círculos fechados, dentro do próprio governo ou então em locais reclusos, onde se reuniam pessoas interessadas em desestruturar e combater as afrontas e atrocidades que se cometiam em nome da “ordem e do progresso” de nosso país. Somente uma elite cultural formada por pessoas que conseguiam discernir com clareza o que estava acontecendo no Brasil tinha condições de se articular contra as irregularidades.

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Cena do filme “Pra Frente Brasil”, de Roberto Farias.

O distanciamento a que era submetido o povo brasileiro reservava ao governo militar maior tranqüilidade para operacionalizar a perseguição que empreendia aos “comunistas” infiltrados no país. A eles se destinava o pau de arara, o “telefone”, a cadeira do dragão, os afogamentos, choques elétricos e também os congelamentos aplicados como duras sanções a seus “radicalismos”, conforme pregavam ministros e militares daquela época.

Para manter o povo distante e silenciado em relação ao que estava acontecendo era fundamental que o governo tivesse “cartas debaixo de sua manga” capazes de tornar o jogo favorável a seus interesses. O primeiro elemento que colocava a grande maioria da população do seu lado era o progresso vivido no Brasil daquele início de anos 1970, conhecido historicamente como “Milagre Econômico”.

Insuflado por empréstimos vultosos e bancando obras de infra-estrutura gigantescas afim de atrair investimentos e grandes multinacionais para nosso país, os governos militares fizeram do Brasil um grande campo de obras e permitiram a abertura de milhares de vagas de trabalho. A prosperidade econômica permitia que os brasileiros vivessem em melhores condições. O dinheiro acumulado pela população podia ser aproveitado para quitar o sonho da casa própria em módicas prestações pagas ao Banco Nacional de Habitação (BNH), para adquirir um automóvel (e dessa forma estimular o crescimento da nascente indústria automobilística que instalara no Brasil) ou ainda ter mesa farta...

O “Milagre” iludia os brasileiros com produtos, permitia o consumo para pessoas que até então mal conseguiam pagar pelo pão de cada dia e ainda alimentava o sonho de um futuro melhor com a criação das cadernetas de poupança. O que ninguém sabia, até porque os órgãos noticiosos do país passavam por rigorosa censura naqueles anos, era que os custos futuros desses vultosos empréstimos obtidos junto ao Fundo Monetário Internacional, ao Banco Mundial e a bancos americanos e europeus iriam levar o país a vivenciar duas décadas e meia de recessão econômica, endividamento recorde no mercado mundial, pagamento anual de juros a níveis altíssimos e, consequentemente, a um retrocesso em todas as conquistas artificialmente obtidas naquele período...

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A ponte Rio - Niterói foi uma das obras construídas durante o período do
“Milagre Econômico” promovido pelas ditaduras militares
que governaram o Brasil entre 1964-1984.

Entretanto, os altos índices de crescimento econômicos que muito alegravam os brasileiros não constituíam o único recurso utilizado pelo governo para silenciar a turba. Havia também o expediente do “circo romano”. Em nosso caso, já que não dispúnhamos de gladiadores e corridas de bigas, o negócio passou a ser o futebol...

O fiasco da copa de 1966, disputada na Inglaterra, não podia ser repetido no México. A disputa pela posse definitiva da taça Jules Rimet (que anos depois acabou sendo roubada e derretida pelos ladrões) com alemães e italianos (que eram também bi-campeões mundiais como os brasileiros) era, além de um ótimo divertimento, uma grande oportunidade para desviar a atenção da nação em relação aos problemas políticos que vivíamos em terras tupiniquins...

Ao iniciarmos o texto com uma cena hipotética de torturadores gritando de alegria enquanto um preso político era torturado na sala ao lado estamos recordando cenas apresentadas no filme “Pra Frente Brasil”, de Roberto Farias, estrelado por Reginaldo Farias. A mistura de emoções tão díspares quanto o medo e a dor por parte dos prisioneiros vítimas de humilhações e privações e, de outro lado, a esfuziante alegria de torcedores pulando nas arquibancadas dos estádios mexicanos ou celebrando pelas ruas das cidades brasileiras nos permite uma necessária reflexão acerca da utilização política do esporte.

A desmobilização popular que teoricamente foi articulada pelo governo Médici através da utilização das partidas da seleção comandada por Pelé, Rivellino, Tostão e Gérson no México foi extremamente eficiente no que tange a silenciar qualquer articulação contra a prisão de oposicionistas ou de pessoas inocentes. A recepção calorosa articulada pelos governantes da época aos heróis do tricampeonato mundial poderia ser feita até mesmo por governos democraticamente eleitos (como aconteceu em 1994 e 2002 quando o Brasil foi tetra e penta campeão mundial de futebol), entretanto, a manipulação da mídia através da censura não estaria em execução no caso de regimes democráticos em vigor. A mordaça aplicada à imprensa complementava o quadro de utilização do esporte mais popular do país como uma autêntica “venda” sobre os olhos da opinião pública nacional.

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A comemoração de Pelé e Jairzinho, saudados por milhares de torcedores no Estádio Asteca,
na cidade do México, foi utilizada politicamente pelo governo militar para evitar que levantes
populares se articulassem contra as arbitrariedades e a falta de democracia vigentes no Brasil.

Por esse motivo as manchetes dos jornais silenciavam sobre os desaparecidos políticos que eram brutalmente espancados nos porões da ditadura. Todas as manchetes eram dedicadas aos gols, aos jogadores, a comissão técnica e aos grandes jogos realizados nos gramados mexicanos. A televisão e o rádio também davam ampla cobertura aos novos deuses do Olimpo futebolístico.

Nem mesmo os editoriais dos grandes jornais podiam ser utilizados contra as arbitrariedades no campo dos direitos do cidadão. Não se podia falar abertamente sobre política em nosso país, a caça as bruxas estava instalada e qualquer denúncia seria capaz de levar a desmoralização, ao expurgo da brasilidade (“Brasil, Ame-o ou Deixe-o”) e, até mesmo, ao desterro.

O jogo de cena do futebol não era, no entanto, praticado por todos. Havia aqueles que podem ser considerados como “inocentes úteis”, especialmente os atletas e membros da comissão técnica que levou o Brasil a conquistar definitivamente o primeiro troféu oferecido aos países que vencessem três edições de copas do mundo. Não há registros e nem ao menos depoimentos contraditórios por parte dos esportistas que representaram com a maior dignidade as cores do Brasil naquele tão importante torneio.

Nenhum deles, do técnico Zagallo aos massagistas, do Rei Pelé ao terceiro goleiro daquele espetacular time de futebol, Emerson Leão, tinha conhecimento da utilização política de seu grande feito esportivo. Chegaram ao Brasil, desfilaram em carro aberto, foram saudados com entusiasmo pelo povo e chegaram mesmo a ganhar automóveis novinhos (Volkswagen Fuscas) dados pelo então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf (em mais uma manobra política que objetivava visibilidade política e credibilidade junto à população a partir da manipulação do dinheiro público).

Os jogadores de futebol ganharam seu espaço na galeria dos grandes esportistas do país. Os políticos que comandavam o Brasil na época conseguiram manter a ordem e a normalidade, sem grandes conturbações e manifestações públicas de desagravo aos graves crimes que praticavam. E os presos políticos, exilados e seus familiares, o que foi legado a eles a partir dessa intensa manipulação de uma das maiores paixões nacionais, o futebol?

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