Planeta Educação

A Semana - Opiniões

João Luís de Almeida Machado é consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.

Contra todo e qualquer Racismo
Os Campos de Futebol e a Intolerância Racial

Jogo-de-xadrez

“Eu tenho um sonho que um dia essa nação se levantará e viverá com sinceridade o sentido de sua crença: ‘Nós acreditamos ser verdade que todos os homens são iguais’. Eu tenho um sonho que um dia, nas verdes colinas da Geórgia, os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-proprietários de escravos serão capazes de se sentar juntos na mesma mesa como irmãos. Eu tenho um sonho que um dia até o estado do Mississipi, um estado desértico, fervendo com o calor da injustiça e opressão, será transformado num oásis de liberdade e justiça. Eu tenho um sonho que meus quatro filhos viverão, um dia, numa nação em que não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo seu caráter. Eu tenho um sonho hoje.

Eu tenho um sonho que um dia o estado do Alabama, cujos lábios do governador estão nesse momento soltando palavras racistas e preconceituosas, será transformado num lugar onde meninos e meninas negras sejam capazes de juntar as mãos com meninos e meninas brancas e caminhar juntos como irmãos e irmãs. Eu tenho um sonho hoje. Eu tenho um sonho de que um dia todo e qualquer vale será exaltado, cada elevação ou montanha será diminuída, os terrenos acidentados serão transformados em planícies, e os lugares desolados serão ajustados, e a glória do Senhor se revelará, e toda a carne se verá unida. Essa é a nossa esperança. Essa é a fé com a qual eu retorno para o Sul. Com essa fé nós seremos capazes de atirar na montanha do desespero uma pedra de esperança. Com essa fé nós seremos capazes de transformar a discórdia de nossa nação numa bela sinfonia de irmandade. Com essa fé nós seremos capazes de trabalhar juntos, rezar unidos, batalhar lado a lado, ir de mãos dadas para a prisão, nos posicionar pela liberdade em unidade, sabendo que um dia, seremos livres...”
(Martin Luther King, 28 de Agosto de 1963).

Já se passaram mais de 40 anos desde o discurso proferido pelo reverendo Martin Luther King em Washington, capital dos Estados Unidos, em favor dos direitos civis em seu país. A grande maioria dos países do mundo contemporâneo entrou no século XXI livre da chaga da escravidão, ao menos em suas leis, o que não deixa de ser um avanço considerável se levarmos em conta que a virada de século anterior ainda registrava a existência de mecanismos legais em algumas regiões do mundo que permitiam e estimulavam a discriminação. O Apartheid, regime de segregação racial constituído legalmente na África do Sul, que manteve um dos mais expressivos e importantes líderes mundiais contra o racismo na cadeia por um longo período (Nelson Mandela), foi pulverizado na última década do século XX.

Homem-falando-alto
Martin Luther King foi um dos maiores líderes mundiais pela causa dos direitos civis.

Apesar disso temos que voltar a falar de racismo no nosso planeta. E o mais notável de tudo é perceber que é a partir do esporte que as manifestações preconceituosas voltaram a tona. Justamente o esporte, campo de saudável encontro entre as pessoas de todos os sexos, raças, religiões, condições sócio-econômicas,...

Foi no esporte, por exemplo, que vimos na Copa do Mundo de futebol, no ano de 1998, o confronto entre Estados Unidos e Irã ser disputado num clima de imensa cordialidade e respeito, coisa que nenhuma diplomacia havia sido capaz de produzir no âmbito político. Inimigos durante vários anos, unidos por um ideal de esportividade e competição justa, digna e honesta dentro das quatro linhas, os oponentes no tabuleiro da geopolítica mundial trocaram apertos de mão e flores numa jornada memorável para o mundo.

É no esporte que se celebram vitórias e se consolam os derrotados buscando estimular novos encontros, trocas e intercâmbios. Abraços, apertos de mão, trocas de camisas e presentes são tradições entre os esportistas. Vitórias, derrotas ou empates são conseqüências de maior dedicação, de treinamento mais apurado, de técnica refinada ou mesmo de um pouco de sorte ou azar. A imprevisibilidade nos confrontos entre atletas e equipes é o que torna os torneios e jogos deliciosos aos olhos de quem os acompanha. O esporte celebra o que há de mais grandioso entre os homens desde os primeiros Jogos Olímpicos disputados na Grécia Antiga...

Não foi bem isso que vimos na semana passada nos campos de futebol do mundo. O que vimos foram algemas, intolerância, manifestações preconceituosas, autoridades da justiça em campo, a televisão transmitindo ao vivo para todo o Brasil e o aprisionamento de um atleta.

Não há justificativa que baste para eximir de qualquer responsabilidade o jogador de futebol argentino que ofendeu e humilhou com suas palavras o atleta do São Paulo Futebol Clube. Nenhuma indenização milionária seria capaz de fazer o tempo voltar atrás e impedir que tais palavras viessem a ser pronunciadas num escandaloso ato racista.

Bola-sozinha-em-meio-do-campo-de-futebol
Na marca do pênalti, assim nos encontramos em situações de racismo.
Infrações cometidas, punições estabelecidas, penas a serem pagas.
Tudo de acordo com os códigos legais e com a civilidade...

Não há como não se solidarizar com a queixa prestada pelo cidadão brasileiro Grafite, futebolista, contra um profissional que como ele se dedica ao mais popular de todos os esportes do mundo, o cidadão argentino Desábato, zagueiro do Quilmes. Ofender uma pessoa pela diferença de cor de sua pele é ato passível de repúdio em qualquer nação civilizada do mundo. Pesquisas divulgadas a partir de enquetes feitas na Internet pelos próprios meios de comunicação da Argentina mostram que os próprios argentinos se mostraram contrários as atitudes de Desábato.

A despeito disso, as atitudes tomadas pelas autoridades brasileiras, insufladas pela televisão, a mídia mais poderosa desse país, foram desproporcionais e levaram a situação a tomar contornos dramáticos e atingir repercussão mundial. A prisão efetuada ainda em campo, com a utilização de algemas (como se o atleta argentino fosse um marginal perigoso e capaz de reagir com agressividade contra a voz de prisão contra ele dirigida) e a reclusão do futebolista por várias horas em uma cela sem condições adequadas também constituem atos condenáveis.

Penso que as autoridades deveriam registrar o ocorrido, levar o atleta para prestar depoimentos, definir a necessidade de pagamento de multa ou fiança em caso de encarceramento e, por se tratar de um estrangeiro, réu primário, providenciar seu aprisionamento em condições mínimas de dignidade para que, literalmente, “o feitiço não virasse contra o feiticeiro”. Isso quer dizer, na prática, que a atitude de Desábato teria que ser tratada com justiça, dentro das leis internacionais, sem abusos por parte das autoridades brasileiras e com respeito à dignidade humana até mesmo por questões diplomáticas e, principalmente por coerência... Como podemos condenar essa deplorável atitude se dermos continuidade a comédia de erros agindo de forma apressada, totalmente indiscreta/invasiva e verdadeiramente abusiva como foi feito nessa situação?

Jogadores-de-futebol
O jogo entre Estados Unidos e Irã na Copa do Mundo de 1998 nos mostrou
que o esporte deve ser utilizado como um dos caminhos da paz e
do entendimento entre os homens.

É lógico que não iríamos estender tapete vermelho e instalar o acusado numa suíte de hotel de luxo. É claro que não deveríamos fazer papel de subservientes ou omissos e não registrar a queixa e as pendências jurídicas decorrentes do fato. O Quilmes e seu atleta terão que arcar com as conseqüências de um ato condenável como aquele que se presenciou no Morumbi. Não podemos, entretanto, transformar essa situação numa ocorrência de falta de civilidade também da nossa parte, temos que sair dessa situação como entramos, como vítimas de uma intolerável manifestação de preconceito racial contra o jogador Grafite...

Ao utilizar força desproporcional e lançar tantos holofotes na situação, criou-se uma tensão que poderá redundar em atos de muito maior gravidade contra o atleta do São Paulo Futebol Clube ou mesmo contra qualquer atleta/cidadão negro brasileiro que vier a jogar futebol em campos argentinos. Nesse final de semana ficou evidenciada essa possibilidade com a exposição no jogo do Quilmes de uma nova faixa de mensagem preconceituosa contra o jogador do São Paulo.

Na Espanha o goleiro camaronês Carlos Kameni, da equipe do Espanyol, foi alvejado com bananas pela torcida do Atlético de Madri em mais uma ofensiva lamentável de parcelas radicais das torcidas de futebol daquela agremiação. Dida, goleiro do Milan e da Seleção Brasileira foi atingido por um morteiro no jogo contra a Inter de Milão. Seria mera coincidência, ou mais uma manifestação de racismo em campos de futebol? O jogador Marinho, do Corinthians, foi ofendido por um jovem torcedor na partida de seu clube contra a Portuguesa Santista com palavras que atentavam contra o fato do atleta ser negro. Roberto Carlos e alguns outros prestigiados futebolistas brasileiros já foram discriminados de alguma forma em jogos de suas equipes em campos europeus...

De certa forma, a chaga da intolerância racial parece estar ressurgindo em várias partes do mundo. As violentas torcidas organizadas têm se mobilizado em muitas localidades expondo um dos mais hediondos crimes de que temos conhecimento. No caso da Europa as punições aos clubes e aos torcedores têm sido rigorosas. Multas, perdas de mando de campo, jogos sem torcida (e sem renda), afastamento das equipes de torneios, pontos de jogos sendo revertidos em favor das vítimas do preconceito ou indenizações aos próprios atletas tem sido uma constante em campos europeus. Porém, até o presente momento, não vi nenhum atleta saindo algemado de campo ou ainda ficando preso mesmo que por poucas horas no futebol europeu...

O pior de tudo é escutar as infames piadas e trocadilhos também de caráter preconceituoso que se espalham pelos quatro campos do país, principalmente pela Internet, em que as pessoas dizem que isso ocorreu pelo fato do sujeito em questão ser argentino. Há muitas e muitas pessoas em nosso país que tem levado tão a sério as disputas futebolísticas entre nossos clubes e seleções que se esquecem que, a despeito das nacionalidades e diversidades culturais, somos todos seres humanos. Do mesmo modo como a cor de nossa pele não pode ser encarada como indicativo de inferioridade ou superioridade, os símbolos de nossas bandeiras não podem ser entendidos como fatores de segregação, violência, desunião e desesperança... Abaixo a intolerância!

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