Filosofando
Comênius, a didática magna e a educação de hoje
João Luís de Almeida Machado
Feche os olhos. Em sua imaginação pense num mundo sem escolas. Crie um universo em que, ao longo da história, os homens não tivessem organizado, a partir das ideias surgidas principalmente ao longo da modernidade, as escolas como as conhecemos. Tendo se mantido apenas o ensino para as crianças da elite, preferencialmente meninos, sendo dedicada atenção a formação das meninas para que se tornassem boas mães e donas de casa. Um mundo em que ainda vigorassem as chamadas corporações de ofício, ou sejam, cursos eminentemente técnicos, pautados na prática, em que aprendizes são orientados por mestres artesãos para a composição de recursos a base de metais, madeira, couro e outros insumos...
Agora, abra os olhos e imagine que o conceito de escola que você conhece é muito recente, tendo sido criado primeiramente, de forma “experimental” ou como iniciativas “piloto”, termos mais próprios de nosso tempo, somente a partir do século XVI. Lembrando que me refiro aqui as escolas que oferecem a formação básica, com oportunidades para todos, sem distinção de origem social e econômica, oferecendo o estudo de diferentes áreas do conhecimento, com orientação de professores, dentro de um espaço destinado a esta finalidade, com salas de aula, livros, mapas, laboratórios e todos os materiais relacionados ao estudo, pesquisa e ensino...
Alguns pensadores se ocuparam da educação, como tema de seus trabalhos e estudos, divulgando por meio de textos que ganharam a Europa e outros continentes a partir de sua publicação. Homens como Tomás de Aquino, Montaigne, Kant e Rousseau foram decisivos com suas publicações para auxiliar o homem contemporâneo a contar com a educação escolarizada universal que hoje prevalece em todo o mundo.
Foi, no entanto, o educador polonês João Comênius (1592-1670) quem não apenas ofereceu ampla e detalhada obra, no século XVII, em que defendia o ensino de tudo para todos, entre outros importantes aspectos, mas também aquele que criou uma escola em que aplicou aquilo que defendia.
Comênius, como outros pensadores e educadores de sua época, combateu o sistema medieval que privilegiava os religiosos, a nobreza e a burguesia capaz de pagar pelo trabalho de tutores e se destacou, entre outras ideias importantes, por ser o primeiro teórico a respeitar a inteligência e os sentimentos da criança.
O pedagogo polonês acreditava que as crianças tinham que ser respeitadas pois são seres humanos dotados de inteligência, aptidões e sentimentos. Esta constatação, tão corrente em nossos dias, era inovadora para a época.
Sua defesa da educação para todos é outro elemento surpreendente numa época em que os privilégios do clero e da nobreza, aspirados pela ascendente burguesia e por ela comprados, entre os quais o ensino ministrado por tutores para seus descendentes homens. Direito considerado primário e essencial no mundo contemporâneo, na medida em que os países consolidavam suas cartas constitucionais e adotavam o modelo político democrático, a educação era um benefício caro, restrito, definidor de rumos e que, certamente, diferenciava ainda mais as camadas endinheiradas da sociedade da plebe.
Com sua obra “Didactica Magna”, Comênius inaugura a sistematização da pedagogia e da didática nos países europeus com a propagação destas ideias para outras nações do ocidente a partir de então.
Esta obra se caracteriza por apresentar a racionalização de todas as ações educativas, enumerando situações que vão daquelas relacionadas ao dia a dia da escola até elementos da didática, ou seja, propriamente relacionadas ao ensino e a aprendizagem.
Destaca Comênius, por exemplo, que cabe aos professores considerar os interesses e as possibilidades das crianças, seus alunos, para a organização de suas atividades. Isso é algo que hoje pretendemos nas escolas quando se propõem aos educadores que busquem os conhecimentos e experiências prévias dos alunos, despertando maior participação e envolvimento dos mesmos nas proposições trazidas pela escola. Ao mesmo tempo em que, certamente, por meio de avaliações diagnósticas, acompanhamento do aluno ao longo do ano, avaliações periódicas, criação de portfólios, entre outras iniciativas, se pretende entender, verificar e trabalhar nos conformes das possibilidades dos alunos.
Na “Didática Magna” surge, inclusive, uma nova concepção de criança pois seu autor percebe a necessidade da delicadeza e do respeito a infância numa época em que palmatória é o caminho da grande maioria daqueles que educam. Adianta-se ainda mais no tempo ao afirmar e defender a ideia de que é possível aprender brincando, algo que hoje os pedagogos e especialistas na área defendem não apenas para a primeira infância, mas para todos os segmentos educacionais, inclusive jovens e adultos como experiência significativa que reforça os demais processos didáticos.
Para Comênius os professores não poderiam ser considerados missionários, ideia esta oriunda do ensino religioso que associa o ato de educar não apenas as possibilidades de ensinar e aprender os diferentes conteúdos que abarcam a experiência humana, mas, também, por seu caráter de missão religiosa que visa converter a fé cristã aqueles que ainda não se alinharam a ela, como o que se fazia nas américas com os indígenas deste continente ou com a população africana e asiática em virtude dos processos coloniais.
Os professores são profissionais, já afirmava o pensador polonês, que tem importante trabalho e que, em vista da formação, responsabilidade e alcance de suas ações, deveriam ser bem remunerados.
A escola onde estão alunos e professores deveria ter uma clara organização de suas atividades, considerando o tempo e o currículo tanto quanto os limites do corpo. Neste sentido, não somente atividades de estudo, concentração, exercícios e teorias seriam disponibilizados, mas também atividades físicas entre elas, de modo coerente, para que o corpo dos participantes não se mostrasse indisposto a continuar os estudos após certa quantidade de tempo. Esta é uma lição a ser melhor assimilada, certamente, quando ainda vemos estudantes que ficam presos as suas mesas e cadeiras por horas a fio, sem ver a luz do dia, realizar uma caminhada, permitir-se o diálogo com outras pessoas, refletir sobre o que estudaram, ter acesso a outros recursos culturais...
João Comênius defendia que o acesso a escrita, a leitura e ao cálculo deveria ser irrestrito, superando entraves que ainda existiam, apesar da Reforma Protestante e da invenção da prensa de Guttemberg, que permitiram a publicação da Bíblia (cuja leitura era também defendida pelo educador polonês) nas línguas nacionais e não somente em latim, assim como a editoração e difusão de obras em maior quantidade por todo o mundo com a criação da prensa de tipos móveis. Aprender a ler, escrever e a realizar cálculos era, segundo dizia Comênius, evidente forma de legar a todos melhor condição para o trabalho e para a fé.
Além dos conhecimentos de leitura, escrita e matemática, defendeu também que no currículo constassem os estudos de música, economia, política, história, ciência, ética e religião.
Comênius faleceu em 1670 e, além da Didática Magna, contribuiu para a educação com outras obras de interesse, como “Prodromus da Pansofia” e “Porta aberta das línguas”, em que reforçou ideias como o estudo de tudo para todos, novas metodologias didáticas e a aproximação dos processos da educação daqueles realizados pelas ciências físicas.
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