Filosofando
A Lebre e a Tartaruga em versão contemporânea
João Luís de Almeida Machado
Estamos em pleno século XXI. No local onde antes existia uma portentosa floresta na qual viviam alguns animais, temos uma cidade, na verdade uma metrópole, tão grande quanto as maiores cidades construídas pelos humanos. Se antes os animais eram contados aos milhares, escondidos em suas tocas, galhos, troncos, cavernas e buracos de diferentes tipos, hoje prevalecem casas e apartamentos.
O convívio entre as espécies foi regulamentado. Ainda ocorrem crimes e violências que escancaram o quanto alguns animais continuam selvagens em seu íntimo, guardando características ancestrais, próprias de sua linhagem de antepassados, em especial os felinos, os lobos e os ursos.
O que prevalece, porém, é uma sociedade calma, onde todos procuram viver suas vidas em harmonia, cumprindo as leis criadas para reger a vida comum, a divisão de espaços, a colaboração e a paz.
É neste mundo idílico que vivem os herdeiros da tradição registrada através de fábulas que envolvem animais, entre os quais, a Lebre e a Tartaruga. Durante muito tempo o que os mobilizava para uma competição, proveniente da história de seus ancestrais, foi combatido para que novas desavenças não surgissem. Eles, inclusive, procuravam se evitar e, quando se encontravam, fingiam que tudo havia sido esquecido.
O destino, no entanto, os fez se encontrar e conviver num mesmo local, o espaço de trabalho. Os dois, tanto a Lebre quanto a Tartaruga eram grandes especialistas em linguagens de computador. Haviam estudado em escolas reconhecidas na área, fizeram pós-graduação, trabalharam suas carreiras de modo a construir uma reputação de competência e sucesso.
Tinham estilos nitidamente diferentes. Como lhes convinha, por conta da genética, enquanto a lebre era acelerada, a Tartaruga preferia a lentidão e, é claro, isso tinha como consequência um operacional diferente no mundo do trabalho e na vida.
Enquanto a Tartaruga adorava o movimento crescente conhecido como slow food, a Lebre se alimentava na verve dos restaurantes e da comida fast food; A Tartaruga, grande amiga do Bicho-Preguiça, era adepta das caminhadas ou do uso de bicicletas para encarar o trânsito cada vez mais congestionado da cidade onde moravam; o carro usado pela Lebre era potente, rápido e acelerar era uma diversão para este personagem. Filmes de ação, adrenalina, velocidade e explosões eram os preferidos do parente dos coelhos e, para a família da Tartaruga, histórias lentas, arrastadas, no estilo dos dramalhões ou de novelas na televisão eram as que prevaleciam.
O fato de começarem a trabalhar juntos, na mesma empresa, começando no mesmo dia, foi como um detonador da história familiar, cada qual querendo provar que na disputa cotidiana tinha armas mais eficientes para ganhar a corrida da vida, derrotando seu oponente.
O Leão, que era dono da empresa, adorou a ideia de ter os dois em sua equipe, pois acreditava que a competitividade gerada por ambos, liderando times de trabalho, seria exponencial para o crescimento e lucratividade de seus empreendimentos.
Os colegas de trabalho, em especial os subordinados com os quais trabalhavam, foram incendiados, desde o início da ação deles naquela empresa, e aderiram aos padrões adotados por seus chefes imediatos. Todos pareciam Zen no time da Tartaruga e, entre os adeptos da Lebre, prevaleciam até gestos e vestuário no estilo “velozes e furiosos”.
Ao término de cada mês as equipes eram chamadas para reuniões em que os relatórios gerais demonstravam que tanto a equipe Lebre quanto o time Tartaruga tinham passado os demais núcleos produtivos da empresa e lideravam os índices relativos a produtividade, lucros e crescimento.
Apesar de optar pelo método mais lento, os resultados da Tartaruga eram surpreendentes e sua eficácia era grandiosa. Por isso os dois animais se alternavam na liderança dos rankings da empresa. Sua dedicação era tão grande que, o passar do tempo os colocou na dianteira não apenas dentro de seu local de trabalho, mas de todo o mercado local. O Leão esfregava as mãos pois sua empresa era agora líder no reino animal. Ele se consolidava a cada dia como o autêntico rei entre todas as espécies, ao menos no segmento em que sua firma trabalhava.
O que no princípio era apenas competição foi, no entanto, se tornando concorrência pesada e, até mesmo, desleal. Tanto a Lebre quanto a Tartaruga começaram a estender o horário de trabalho muito além das horas previstas pois queriam a liderança na disputa. Suas famílias foram sendo deixadas em segundo plano. Esposas e filhos foram sentindo o abandono e a tensão que se instalava entre os chefes de família.
Problemas de saúde decorrentes de quem está muito estressado por excesso de trabalho surgiram. Os hábitos alimentares foram alterados e alimentos não saudáveis passaram a ser rotina na vida de ambos. A Lebre, por exemplo, gostava de fast food e passou a comer basicamente isso em todas as refeições pois já não almoçava ou jantava em casa, onde sua família preparava alimentos saudáveis.
O lazer, indispensável a boa saúde física e mental, deixou de existir. Para não perder tempo no caminho para o serviço a Tartaruga comprou também um possante veículo e barbarizava pelas ruas da cidade. Esqueceu de sua bicicleta e deixou para trás suas caminhadas.
Com toda esta correria, depois de algum tempo, a Lebre teve um enfarte e foi hospitalizada. Corria risco de vida. Ganhara peso, era sedentário, ansioso, vivia sempre tenso e o estresse a vitimou. Não era, no entanto, sua hora e, por isso, algumas semanas em tratamento fizeram com que se recuperasse.
A Tartaruga que, no princípio achou que tinha ganho a batalha contra seu histórico rival, como seus antepassados, comemorou de forma precipitada levando toda a equipe para um happy hour regado a muita bebida. Com uma dieta rica em gorduras, seu fígado a esta altura tinha o aspecto do órgão de uma pessoa com cirrose e, este e outros fatores o fizeram ter um colapso, segundo o médico, quase como uma lesão no cérebro que, se não fosse socorrida em instantes, poderia ser fatal. Ironicamente foi internada no dia seguinte à Lebre e ficou no quarto ao lado. Sua família fez vigília, monitorou sua recuperação e depois de 2 semanas, ele pôde voltar para casa. Estava igualmente com sobrepeso e os exames o levaram a uma dieta rigorosa. Voltar a andar de bicicleta e caminhar eram itens obrigatórios na nova vida que teria que começar.
Quando ambos se viram, depois de algumas semanas, ainda debilitados, perceberam que tinham cometido um grande erro em perpetuar a corrida de seus pais, ainda que de forma velada, e que era indispensável rever a história para ter o que contar futuramente, caso não quisessem que suas existências terminassem tão brevemente. Por isso mesmo, neste encontro, selaram a paz e se abraçaram, fazendo juras de amizade e apoio mútuo e iniciando uma nova página em suas trajetórias...
# Miopia