Planeta Literatura
Incidente em Antares
Livro de Érico Veríssimo
Dizem que o relato do fantástico, do sobrenatural, das regras que regem o mundo do além pertence aos norte-americanos e aos europeus. De acordo com alguns estudiosos, não constitui uma tradição entre os latino-americanos a produção de textos ou escritos que celebrem as esferas que estão além da nossa capacidade de compreensão. Edgar Allan Poe, Mary Shelley, Bram Stoker e alguns outros autores produziram as obras clássicas que estimulam e alimentam o medo, o suspense, o terror e a insegurança de muitos leitores.
Alguns críticos dizem que isso acontece em virtude da tradição católica dos povos da América Latina, entre os quais o Brasil. Nosso distanciamento em relação a toda e qualquer temática relacionada com a morte, com espíritos, com fantasmas ou almas penadas se deve ao fato de termos receio de uma aproximação em vista das conseqüências que adviriam desse encontro. Essa linha de pensamento ressalta nossas crendices e explora de forma inconteste a idéia de que prevalece uma certa ignorância popular como justificativa para esse tipo de comportamento.
Ignora-se a idéia de que há uma infinidade de casos contados nas diversas cidades do imenso interior do Brasil, contadas de geração para geração, que se tornaram verdadeiras tradições de cada localidade e tem como tema a morte, o além, as trevas ou a redenção. Histórias de sangue, medo, espectros e demônios. Casos de túmulos revirados, pessoas que reapareceram para familiares ou amigos, cemitérios em que os mortos se levantaram para atormentar a vida de sua cidade...
Essas histórias teriam que ser aproveitadas pelos escritores, autores de peças teatrais, cineastas ou artistas das artes plásticas ou música. No caso da literatura, repercutiram na obra do escritor gaúcho Érico Veríssimo, especificamente em seu livro "Incidente em Antares".
O livro pode ser dividido em duas fases distintas. Ambas de grande interesse para os leitores, mas distintas em suas intenções, apesar de representarem partes constitutivas de um mesmo livro, de uma mesma narrativa.
O escritor Érico Veríssimo,
autor do livro "Incidente em Antares"
Há um núcleo dedicado a apresentação de uma base histórica, na qual se define com clareza o contexto histórico em que os fatos narrados no livro acontecem. Tudo se inicia, inclusive, com dúvidas quanto à autenticidade das informações, já que a cidade de Antares nem ao menos consta no mapa. As menções a São Borja, no Rio Grande do Sul, parecem ser feitas para dar um aspecto de maior fidedignidade, de maior aceitação por parte dos leitores, ao conjunto de informações sobre a tal cidade de Antares.
"A cidade de Antares não consta nos mapas, apenas São Borja é digna de nota, nas paragens do Alto Uruguai. Mas, há documentos comprovadores de sua existência. Seus ilustres moradores têm repetidamente se manifestado sobre a injustiça. O prefeito, os vereadores e até o padre se dirigiram ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para protestar contra a acintosa omissão."
Nessa cidade as intensas disputas políticas envolvendo as tradicionais famílias dos Vacariano e dos Campolargo tem uma trégua a partir do momento em que os venerandos inimigos defrontam-se com uma força que incomoda a ambos e que os aproxima, os "comunistas". São na verdade os sindicatos e seus operários, movimentando suas greves e manifestações públicas.
Os Vacariano e os Campolargo são famílias de estancieiros locais, proprietários de grandes fazendas, criadores de gado bem ao estilo gaúcho, que desde o momento em que a localidade do "Povinho da Caveira" se tornou a cidade emancipada de Antares, disputam palmo a palmo o poderio político naquelas bandas.
Os patriarcas das famílias são, no início da saga, Chico Vacariano e Antônio Campolargo. Eles têm estilos muito diferenciados, enquanto o primeiro é mais autoritário e impulsivo (às vezes violento), o segundo é mais afeito ao diálogo e a negociação. Comandam, respectivamente, o partido Liberal e o Conservador em Antares.
São sucedidos por filhos, netos e bisnetos que se alternam na prefeitura local e conseguem aproximar as famílias graças a interferência de ninguém menos que Getúlio Vargas. Toda essa história se desenvolve no período aproximado de 100 anos. Da estruturação da história de Antares passamos num segundo momento para o tal "incidente".
"O tempo vai passando e Antares vai recebendo, graças ao progresso, tudo o que há de novo. Em meados da década de 20, membros das gerações Campolargos e Vacarianos vão estudar em Porto Alegre e assim surgem advogados, médicos e engenheiros, mas poucos deles exercem tais profissões. Trazem para a cidade uma visão mais moderna e mais ampliada do mundo. Aos poucos, os velhos líderes, Xisto e Benjamim, vão perdendo, sem perceber, parte de sua liderança. Além disso, Getúlio Vargas astutamente conseguiu reunir os dois líderes e os fez assinar uma espécie de ´tratado de paz´, publicado em vários jornais. Porém, uma semana mais tarde, os dois morrem, um de edema pulmonar e outro pela chifrada de um boi."
É justamente no "Incidente" que encontramos o aspecto sobrenatural dessa narrativa, que a torna ao mesmo tempo instigante e fantástica (assumindo inclusive que essa palavra tenha, nesse caso, dupla conotação, tanto no sentido daquilo que é espetacular e maravilhoso, quanto no da trama que revela o que não faz parte do mundo dos vivos, que nos coloca em contato com as tais almas penadas mencionadas no início desse artigo).
Os mortos são despertados de seu sono eterno em virtude de uma greve muito especial (dentre outras, já que se trata de uma greve geral), promovida pelos coveiros, que se recusam a enterrar os defuntos enquanto não obtiverem uma remuneração melhor. Para piorar a situação, o município vivia uma certa tensão em virtude do estabelecimento na cidade de um grupo de pesquisadores interessados em fazer um levantamento de dados dos indicadores sócio-econômicos da cidade.
Foram confundidos com comunistas. Não por acaso, tendo em vista que os acontecimentos relacionados ao incidente ocorrem no início da década de 1960, quando o Brasil está vivendo um de seus períodos de maior tensão e instabilidade política, entre os governos de Jânio Quadros e João Goulart.
Coincidentemente, na noite da greve, em que os mortos se levantam, a cidade registrou um grande número de óbitos. Entre os quais de pessoas ilustres na localidade, como Dona Quitéria Campolargo, matriarca da família de mesmo sobrenome, o Menandro (o professor de piano), o Barcelona, o Dr. Cícero Brando, o Joãozinho da Paz, a prostituta Erotildes e outras pessoas menos conhecidas.
Por não serem sepultados os mortos resolvem se manifestar...
"Dona Quitéria ergue-se, depois de dar duas palmadinhas consoladoras no ombro do suicida, e diz em voz alta, como quem se dirige a uma assembléia:
- Precisamos fazer alguma coisa!
Cícero Branco congrega os outros seis cadáveres:
- Companheiros, não é por estar morto que vou deixar de ser o que fui em vida: um advogado. Estive arquitetando um plano...
- Fale! - ordena Dona Quitéria.
- Qual é o nosso objetivo? O de sermos sepultados dignamente, como é de nosso direito e de hábito, numa sociedade cristã.
- O doutor falou pouco mas bem! - exclamou Pudim de Cachaça.
- Escutem com a maior atenção. Você aí, Joãozinho, aproxime-se e escute também. A idéia é simples. Amanhã pela manhã marcharemos todos sobre a cidade para protestar...
- Uma greve contra os grevistas! - entusiasma-se Dona Quitéria.
- Se o fim da marcha é esse - intervém Barcelona -, não contem com este defunto.
- Espere - diz o advogado, tocando o braço do sapateiro. - Usemos de todas as nossas armas. Primeiro, a nossa condição de mortos. Sejamos mais vivos que os vivos.
- Como?
- Impondo à população de Antares a nossa presença macabra. Se não nos enterrarem dentro do prazo que vamos impor, empestaremos com a nossa podridão o ar da cidade.
- Que coisa horrorosa, doutor! - diz Erotildes, ajeitando os cabelos num gesto faceiro.
- Por que não se põe em votação a proposta do Dr. Cícero?
- pergunta o sapateiro.
- Bom - faz o advogado. - Não direi que aqui em cima estejamos numa democracia. Imaginemos que isto é uma... uma tanatocracia. (E os sociólogos do futuro terão de forçosamente reconhecer este novo tipo de regime.) Preciso saber se todos vocês me aceitam como advogado, caso em que terão de me passar uma procuração verbal para eu agir em nome do grupo.
Dona Quitéria sacode a cabeça num movimento afirmativo. Erotildes, Pudim e Menandro a imitam. Barcelona, porém, hesita:
- Primeiro quero conhecer melhor o plano.
- Simples. Descemos juntos pela Rua Voluntários da Pátria ruma da Praça da República. Lá nos dispersaremos, cada qual poderá voltar à sua casa... Para isso teremos algumas horas. O essencial (prestem a maior atenção!) é que quando o sino da matriz começar a dar as doze badaladas do meio-dia, haja o que houver, todos devem encaminhar-se para o coreto da praça, sentar-se nos bancos em silêncio e ficar à minha espera.
- E que é que você vai fazer? - quer saber João Paz.
- Vou primeiro à minha casa buscar uns papéis importantes... Depois me dirigirei à residência do prefeito para lhe entregar um ultimato verbal... ou nos enterram dentro do prazo máximo de vinte e quatro horas ou nós ficaremos apodrecendo no coreto, o que será para Antares um enorme inconveniente do ponto de vista higiênico, estético... e moral, naturalmente."
Leia e se delicie com a deliciosa prosa de Érico Veríssimo! Imperdível!
Links:
- http://www.culturatura.com.br/resumo/incidente.htm
- http://www.terravista.pt/enseada/6492/