A Semana - Opiniões
A Base Nacional Comum Curricular e a Matemática
João Luís de Almeida Machado
Línguas somente tem sentido para as pessoas se são vivas e se referem ao mundo que as cerca, possibilitando que, ao serem utilizadas, ilustrem, expliquem, referenciem, anunciem, questionem ou desvendem o entorno, as relações e contexto de coexistência de seus usuários.
A matemática é uma linguagem criada pelo homem para que, por meio dela, pudesse compreender e estabelecer relações e correlações entre si mesmo e o universo. E, em assim sendo, ao traduzir o mundo dentro da simplicidade e da complexidade dos números, fórmulas, cálculos e equações matemáticas, a humanidade desenvolveu uma ferramenta poderosa e fundamental da qual não pode mais prescindir.
O analfabetismo matemático é, portanto, inadmissível na contemporaneidade, marcada cada vez mais por uma crescente e intensa interação entre as pessoas e a matemática.
A Base Nacional Curricular Comum destaca esta importância da matemática e sua aproximação com o contexto já em seu documento introdutório, como é possível perceber no trecho abaixo:
“Dessa forma, a Matemática pode ser vista como uma fonte de modelos para os fenômenos que nos cercam. Esses modelos compreendem não somente os conceitos, mas as relações entre eles, procedimentos e representações de diversas ordens. Por exemplo, uma caixa de sapatos, que é um objeto do mundo físico, pode ser associada à figura geométrica espacial paralelepípedo retângulo, que é um modelo matemático abstrato. A altura que uma bola de futebol atinge, ao ser cobrada uma falta, ação de nosso mundo físico, pode ser associada ao modelo matemático da função quadrática, que pertence à dimensão abstrata.”
Utilizar objetos e situações do cotidiano para ensinar, de modo ilustrativo, para o estudante, seja em qual faixa etária estiver este aprendiz, não apenas aproxima a lupa e permite uma maior clareza em relação ao que está sendo ensinado como também torna, de fato, significativo tal aprendizado.
Quantos professores de matemática ou mesmo de outras disciplinas ensinadas nas escolas já não escutaram questionamentos de seus alunos quanto a utilidade dos conhecimentos ensinados em sala de aula para o cotidiano das pessoas?
Se as lições são pautadas em caixas de sapato, bolas, casas, automóveis ou geladeiras ou em relações cotidianas fica muito mais fácil assimilar, entender e aplicar tais saberes. Se o menino consegue entender que há por trás da produção de alimentos, por exemplo, consumo de água, energia, trabalho humano, pagamento de salários e outros insumos, fica mais fácil para ele perceber a utilidade da matemática no dia a dia. Se o ensino não é contextualizado o que se tem, por outro lado, é o desinteresse e o distanciamento.
A forma de organização dos estudos matemáticos dentro da Base Nacional Curricular Comum, entretanto, mantém viva a divisão clássica dos conteúdos dentro das especificidades (chamados de eixos na BNCC) do conhecimento matemático, segmentando os saberes dentro de especificidades como álgebra, geometria ou aritmética. Como em todas as áreas do conhecimento e dentro de uma cultura educacional estabelecida que opera com as divisões como elementos que tornam mais fácil a compreensão dos conceitos por etapas consecutivas e lineares, há certamente lógica, sentido e coerência nesta abordagem.
Renovar a linguagem matemática, o que poderia ser aplicado a outros conhecimentos, como por exemplo as humanidades ou as ciências naturais, passaria por uma revisão destes princípios clássicos de divisão dos saberes em compartimentos específicos. Esta ainda não é a etapa que percebemos na proposta da BNCC. Para tanto seria preciso que a proposição invertesse a lógica de análise e estudos dentro dos planejamentos ou programação acadêmica, trazendo à tona uma articulação embasada em projetos e temas que acionam os estudos. Isso representaria, na prática, iniciar os estudos não a partir da lógica básica para a complexa, mas daquilo que já existe e é composto dentro de uma riqueza de detalhes e articulações que o tornam mais amplo e difícil para que, num processo de decomposição ou desconstrução, seja desmontado e se chegue, assim, as equações mais básicas.
Partir-se-ia, assim, do corpo humano em direção ao átomo e suas menores partículas, da estrutura jurídico-política existente para a história de seu surgimento, do navio já em uso com todos os seus recursos mecânicos e tecnológicos para as equações matemáticas que permitiram sua construção... E, tudo isso, percorrendo não apenas saberes específicos de uma área, seja a matemática, a biologia, a geografia ou a história, mas sim a correlação de forças e saberes por trás de tudo e suas inter-relações. Ainda não é o caso, a não ser em ações isoladas e/ou modelares, ensejos a uma reforma ou mesmo a uma revolução em horizontes distantes.
Este desafio já é, no entanto, percebido nas proposições da BNCC, conforme é possível perceber no trecho a seguir:
“A evolução do conhecimento matemático como ciência veio acompanhada de uma organização em eixos tais como geometria, álgebra, operações aritméticas, dentre outros. Essa organização deve ser vista tão somente como um elemento facilitador para a compreensão da área da Matemática. Os objetos matemáticos não podem ser compreendidos isoladamente, eles estão fortemente relacionados uns aos outros. Superar a perspectiva de limitar esses objetos em blocos isolados e estanques tem sido um dos principais desafios a serem vencidos com relação às práticas escolares de trabalho com a Matemática.”
A percepção dos eixos como “elementos facilitadores” e de que os estudos matemáticos não podem ocorrer de forma estanque e isolada são avanços consideráveis que, no entanto, ainda irão esbarrar na formação deficiente e/ou desatualizada dos profissionais da área, cujos estudos ainda apresentam os saberes de forma linear, cartesiana e/ou distante deste olhar mais contextualizado.
Há, nos propósitos da BNCC objetivos a serem atingidos que permitirão avanços, ainda que o processo tenha uma tendência a ser um pouco arrastado ou lento, o que, certamente, esperamos que não aconteça. As metas almejadas são as seguintes:
- Estabelecer conexões entre os eixos da Matemática e entre essa e outras áreas do saber.
- Resolver problemas, criando estratégias próprias para sua resolução, desenvolvendo imaginação e criatividade.
- Raciocinar, fazer abstrações com base em situações concretas, generalizar, organizar e representar.
- Comunicar-se, utilizando as diversas formas de linguagem empregadas em Matemática.
- Utilizar a argumentação matemática apoiada em vários tipos de raciocínio.
# Artigo: A Era da Vertigem: Um mundo sem grandes perspectivas