Planeta Literatura
101 Experiências de Filosofia Cotidiana
Coluna Planeta Literatura
“Você sabe tantas coisas! Isso lhe parece tão comum e simples que você nem pensa mais a respeito. Você conhece, por exemplo, independentemente do seu nível de instrução, milhares de palavras da sua língua materna, as regras da gramática, aritmética, geometria. Lembra-se também de centenas de histórias reais ou inventadas, vividas por você e por outros, transmitidas pelos historiadores ou por testemunhas, emprestadas também dos contos, dos romances, dos filmes”.
Poucas pessoas realmente se dão conta da afirmação acima. Muito menor é a quantidade de homens e mulheres que utilizam todo o conhecimento acumulado ao longo de sua existência. Ínfimo é o número de mortais que pensam a respeito de suas vidas, do mundo que as cerca, das experiências pelas quais passam, dos encontros e desencontros, da importância da família, do valor inestimável das amizades ou do prazer (ou desprazer) que vivemos em nossos contatos com a cultura (leitura, música, cinema, artes plásticas,...).
A filosofia poderia nos despertar para um movimento muito mais intenso e verdadeiramente saboroso em relação à vida, entretanto, quantas pessoas sabem ao certo o que é a filosofia? E entre essas, quais são aquelas que conseguem discernir um sentido prático dos conhecimentos filosóficos?
Vamos então por etapas. Primeiro, buscar um conceito de filosofia que nos esclareça a respeito de suas pretensões, características e funções. Para isso iremos lançar mão do registro do dicionário Aurélio:
Filosofia
[Do gr. philosophía, amor à sabedoria.]
S. f. Filos.
1. Estudo que se caracteriza pela intenção de ampliar incessantemente a compreensão da realidade, no sentido de apreendê-la na sua totalidade, quer pela busca da realidade capaz de abranger todas as outras, o Ser (ora realidade suprema, ora causa primeira, ora fim último, ora absoluto, espírito, matéria, etc.), quer pela definição do instrumento capaz de apreender a realidade, o pensamento (as respostas às perguntas: que é a razão? o conhecimento? a consciência? a reflexão? que é explicar? provar? que é uma causa? um fundamento? uma lei? um princípio? etc.), tornando-se o homem tema inevitável de consideração. Ao longo da sua história, em razão da preeminência que cada filósofo atribua a qualquer daqueles temas, o pensamento filosófico vem-se cristalizando em sistemas, cada um deles uma nova definição da filosofia.
2. Conjunto de estudos ou de considerações que tendem a reunir uma ordem determinada de conhecimentos (que expressamente limita seu campo de pesquisa, p. ex., à natureza, ou à sociedade, ou à história, ou a relações numéricas, etc.) em um número reduzido de princípios que lhe servem de fundamento e lhe restringem o alcance:
filosofia da ciência; filosofia social; filosofia da história; filosofia da matemática.
3. Conjunto de doutrinas de uma determinada época ou país, ou sistema constituído de filosofia:
a filosofia grega; a filosofia cartesiana.
4. Conjunto de conhecimentos relativos à filosofia, ou que têm implicações com ela, ministrados nas faculdades.
A cultura pop tem feito referências constantes a existência e aos dilemas vividos pela humanidade
quanto ao sentido da vida. Exemplos marcantes podem ser percebidos no primeiro filme da série “Matrix”
e em vários episódios da família “Os Simpsons”.
“Pergunte-se, por exemplo, como medir a existência. Com que instrumento? Segundo que unidade? Seguindo qual código? Com que referência? Você poderia dizer que sua existência é medida adequadamente: em metros percorridos a pé, em quilômetros percorridos de carro, em anos, em dias, em horas, em segundos, em batimentos cardíacos, em litros de suor, de urina, de sangue, em quilos de carne, de batatas, em litros de vinho, em páginas escritas, em tempo perdido, em amor doado, em amor recebido? Como medir a existência?”
Vale destacar que nos conceitos retirados do dicionário Aurélio prevalece à idéia da filosofia como a busca de conhecimentos e compreensão do mundo e da própria existência. O homem tenta explicar-se e, ao mesmo tempo, compreender o universo em que está inserido. Nessa busca cria representações que, num primeiro momento associam a criação e a própria vida a forças superiores, divinas, que explicariam todos os fenômenos, os sentimentos, a materialidade, a fertilidade e tantos outros enigmas com os quais convive. Era a mitologia.
Quando supera a visão que agrega religião, misticismo, forças sobrenaturais e a explicação do mundo em que vive, buscando fundamentar suas considerações na lógica, na explicação racionalizada e, principalmente, partindo da experimentação e observação dos fenômenos, a humanidade cria a filosofia e a ciência. A diferença entre as duas refere-se ao fato de que a primeira não se define a base de verdades imutáveis, comprovadas pela experimentação. A filosofia abre espaço para divagações e permite interpretações diferenciadas da realidade, dos acontecimentos, das relações humanas, da vida em sociedade e tantos outros assuntos. A ciência, por sua vez, tenta atingir a exatidão, a resposta correta, a excelência comprovável através de experimentos.
“Porque vivemos um tempo de cinismo, de frieza, de difamação, de escárnio, é preciso
experimentar os bons sentimentos de forma voluntária e livre. Sem calculismo, apenas pelo prazer
que isso dá. Essa indolência orgulhosa das lágrimas que se crêem inocentes libera um prazer único,
produz uma queda de barreiras, uma perda temporária das defesas”.
Na ciência tudo se mede, todos os temas são passíveis de padronização, as espécies animais e vegetais são catalogadas e descritas a partir de suas semelhanças ou características repetidas (mesma cor, mesmo tipo de pele, semelhança quanto ao espaço de onde se originam, hábitos alimentares,...), o corpo humano foi (e continua sendo) analisado para se saber ao certo como funcionam os sistemas que o articulam, as leis da física tentam comprovar que há uma ordem estabelecida na relação entre os corpos que compõem o universo,...
Na filosofia, por sua vez, há sempre muitas dúvidas. Existe um espaço onde podem se articular novos argumentos, novas ponderações, outras análises. Quando se pergunta o que é amor ou política, os filósofos e pensadores de diferentes épocas, culturas, países ou continentes apresentam representações diversas, pautadas na pluralidade daquilo que conseguem ver, perceber ou sentir. Isso não significa que exista uma resposta certa ou uma outra errada; abre-se inclusive espaço para que a interpretação de outras afirmações crie novas reflexões e respostas.
Por conta dessa caracterização de subjetividade aparente, muitas pessoas costumam pensar na filosofia como um luxo ou uma atividade supérflua, destituída de valor prático. Ainda mais num mundo como o nosso, onde as pessoas procuram a todo o momento justificar suas ações pautando as mesmas em resultados objetivos (maiores vendas, lançamento de novos produtos, mecanismos que agilizam o trânsito, dispositivos que melhorem as comunicações,...).
Como conseqüência desse tipo de atitude estamos nos tornando verdadeiros autômatos, repetindo cotidianamente nossos movimentos e ações sem refletir a respeito das mesmas. Nos alienamos e nem nos demos conta disso. Seguimos o fluxo, batemos os cartões, acompanhamos mecanicamente o ponteiro dos relógios e vemos nossas vidas passarem diante de nossos olhos sem esboçar (em muitos casos) uma reação mínima. A indiferença reina soberana em virtude da incapacidade de agir conscientemente.
Até que ponto não estamos nos tornando membros de um imenso formigueiro, desempenhando
nossas funções, indo de casa para o serviço e retornando, cumprindo metas, obedecendo o relógio
e vivendo muito pouco nossas emoções, nossos sentimentos, nossos prazeres?
(acima, cena do filme “FormiguinhaZ”, da Dreamworks).
“Todo mundo já fez isso, mas é algo que ainda funciona. Observar por um tempo um formigueiro dá muito o que pensar. Preste atenção à obstinação regular das formigas. Examine, mesmo se já tiver feito isso milhares de vezes, como elas vão umas atrás das outras, se cruzam, criam a linha regular de um caminho feito de movimento. Veja o desenho geral dos itinerários, as minúsculas variações individuais, os efêmeros retornos para trás. Veja os heroísmos inelutáveis e os transportes inverossímeis.
E medite sobre as coisas mais banais, sobre as quais todo mundo já meditou. Pergunte-se como se pode conceber uma vida como a delas. Insista na idéia de uma comunidade biológica, de uma sociedade sem linguagem. Fique perplexo ao pensar que essa pode ser uma cidade sem humanidade...”
Em “101 Experiências de Filosofia Cotidiana”, o filósofo e pesquisador Roger-Pol Droit, do Centro Nacional de Pesquisas da França, cria um manual simples, objetivo e provocativo. Suas “experiências” querem nos tirar do marasmo, nos fazer perceber o mundo que nos cerca, nos motivar a sentir, estimular o intercâmbio entre os seres humanos, quebrar a monotonia do dia-a-dia, ir muito além daquilo que usualmente fazemos ou vivemos...
Não há idéias absurdas ou extravagantes. Não há custos altíssimos ou impossibilidades materiais. Não há tempo perdido ou arrependimentos.
Deve imperar a busca do novo. Devemos experimentar para saborear, sentir. Temos que mostrar disposição e coragem para quebrar alguns paradigmas e verdades que norteiam nossa vida estagnada, desprovida de novidades, de pequenas revoluções.
O autor traça em cada uma das experiências os efeitos que quer atingir com cada uma das propostas apresentadas, e o mais notável é que os resultados a se atingir são resumidos em poucas palavras, todas elas denotando um certo desequilíbrio, uma sensação de desconforto, um aprendizado, como por exemplo:- imprevisível, assustador, cósmico, instrutivo, retorno ao chão, contemplativo, fogos de artifício,...
O objetivo é realmente assustar, provocar, mexer com o leitor, fazer com que ele experimente a filosofia no cotidiano, que ele queira mudar alguns aspectos de sua vida (ou todos!). O mais interessante é que dá para ir muito além da filosofia, transpor para a sala de aula, compor com a educação e com os educadores. Propor mudanças no universo escolar (e em tantos outros), nas propostas de aula, na forma como vemos nossa vida de professores e alunos. Dá para fazer um bom “estrago”, um autêntico barulho na existência daquelas pessoas que estão sempre acostumadas com as mesmas situações, pessoas, coisas, ações,...
Que tal tentar mexer com os brios e com os sentidos daquele amigo que nunca anda por caminhos diferentes? O que acha de convencer aquele professor “quadradinho” a mudar suas aulas? Por que não mudar um pouco a sua vida e torná-la mais divertida, inteligente e interessante?