A Construção do Conceito de Tecnologia Assistiva: Alguns Novos Interrogantes e Desafios
Teófilo Galvão Filho
1.
Introdução
A
trajetória percorrida para a
sistematização, construção
e formulação do conceito de Tecnologia Assistiva
– TA, embora seja bastante curta e recente, tem atravessado
diferentes fases e etapas, num processo ainda em pleno desenvolvimento.
As diversas concepções, paradigmas e referenciais
considerados para essa construção apresentam
matizes e nuances variáveis ao longo do tempo, em diferentes
países e continentes.
Uma reflexão sobre esse
processo de desenvolvimento e construção do
conceito de TA, em diferentes contextos, busquei introduzir no texto
intitulado “A Tecnologia Assistiva: de que se
trata”
1
(GALVÃO FILHO, 2009a), e
também na minha tese de doutoramento
2
(GALVÃO FILHO, 2009b).
Entretanto, posteriormente a essas tentativas de reflexão,
novas etapas e novos desafios foram surgindo no caminho, nas pesquisas
e formulações nessa área, exigindo que
se busque avançar e aprofundar essa reflexão.
No Brasil, de um período de quase desconhecimento total da
população e das
instituições nacionais sobre a
existência, a relevância e os significados da TA no
país, iniciou-se recentemente um novo período no
qual a TA adquire uma nova dimensão, passando a estar
presente em diferentes agendas e em diferentes setores da realidade
nacional.
Novas políticas públicas têm
sido geradas nessa área, como, por exemplo, as
políticas de acessibilidade do Plano Viver Sem Limite, do
Governo Federal, que priorizou a destinação de um
montante de 7,6 bilhões de reais, a serem aplicados entre os
anos de 2011 e 2014, em diferentes ações
favorecedoras dos direitos das pessoas com deficiência, entre
as quais se encontram projetos e programas importantes relacionados
à TA.
Vivencia-se, portanto, um novo período de
interesse crescente nessa área, em diferentes setores da
sociedade brasileira, como nos setores empresarial,
acadêmico, governamental, entre outros.
*
1
Disponível em: www.galvaofilho.net/assistiva.pdf
*
2
Disponível
em: www.galvaofilho.net/tese.htm
Portanto, também no Brasil, a trajetória do
processo de sistematização e
formulação conceitual sobre a TA tem passado por
diferentes fases.
Há poucos anos atrás ainda eram
bastante acentuadas, e não estão totalmente
superadas, a influência e as pressões decorrentes
de uma concepção tradicional normalmente
denominada na literatura como “modelo médico da
deficiência” (BRASIL, 2008), o qual percebe e
destaca apenas as questões referentes à
saúde e às capacidades funcionais individuais da
pessoa com deficiência, sem considerar as
dimensões sociais e interdisciplinares dessa realidade.
Baseadas nessa concepção tradicional, as
pressões, em diferentes contextos, eram para que a TA fosse
definida e delimitada como relacionada somente aos recursos da
área da saúde, ou necessariamente atreladas a uma
prescrição médica. Para essa
concepção, a TA se resumiria praticamente apenas
a recursos como órteses, próteses e dispositivos
para a locomoção, como as cadeiras de rodas.
Por outro lado, em função da grande quantidade de
novos recursos que vão surgindo, principalmente devido ao
avanço acelerado das novas tecnologias e também
em função dos avanços conceituais
presentes nas reflexões sobre os direitos das pessoas com
deficiência e a necessidade da sua inclusão
social, a partir dos quais é proposto o chamado
“Modelo Social da Deficiência” (PALACIOS,
2008), vai se tornando cada vez mais evidente o caráter
interdisciplinar da TA, em contraposição
à
concepção tradicional, preconizadora do
“monopólio” da TA pela área
da saúde.
Toda essa polêmica esteve presente em
diferentes instâncias relacionadas aos direitos das pessoas
com deficiência, inclusive nos debates e estudos
desenvolvidos pelo Comitê de Ajudas Técnicas
– CAT (CAT, 2007), um comitê instituído
no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República, por meio da Portaria 142
de 16 de novembro de 2006 (BRASIL, 2006), e por
determinação expressa no Decreto 5296/2004
(BRASIL, 2004).
A partir dos estudos desenvolvidos por sua Comissão de
Conceituação e Estudo de Normas, que pesquisou
diversos outros trabalhos e formulações para o
conceito de TA, utilizadas em diferentes países e
continentes (GALVÃO FILHO et al., 2009), o CAT aprovou por
unanimidade, no ano de 2007, a proposição da
seguinte formulação para este conceito:
Tecnologia
Assistiva é uma área do conhecimento,
de característica interdisciplinar, que engloba produtos,
recursos, metodologias, estratégias, práticas e
serviços que objetivam promover a funcionalidade,
relacionada à atividade e participação
de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade
reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de
vida e inclusão social. (CAT, 2007)
Optou-se,
portanto, por uma concepção bastante
ampla sobre a TA, reconhecendo o seu caráter
interdisciplinar, o qual permeia diferentes áreas do
conhecimento. Essa concepção ampla certamente
favorece, fundamenta e incentiva as pesquisas, o desenvolvimento e a
inovação em TA nas diferentes áreas, e
o aperfeiçoamento de políticas
públicas de fomento, produção,
disponibilização e concessão de TA.
Por outro lado, o crescimento do interesse e da presença da
TA em diferentes espaços e agendas no país traz
consigo a necessidade de que seja dada continuidade aos estudos e
reflexões, na busca de uma precisão conceitual
cada vez maior.
Essa necessidade se revela pelo fato de que o crescente
interesse na área, unido à amplitude conceitual
proposta, também tem gerado
distorções, as quais apresentam
implicações não somente
filosóficas ou metodológicas, mas até
mesmo implicações econômicas.
Com o aumento no número de editais e chamadas
públicas de projetos, específicos para o
incentivo à pesquisa, desenvolvimento,
inovação, produção e
comercialização da TA no país,
políticas públicas importantes, com
significativos investimentos de recursos econômicos na
área, cresce também o risco da
ocorrência de distorções e a
necessidade de uma maior precisão conceitual que, ao mesmo
tempo em que se apóie numa concepção e
conceituação ampla e interdisciplinar de TA,
igualmente distinga as fronteiras, percebendo e buscando identificar
com crescente clareza também o que não
é TA.
2.
Interrogantes e polêmicas atuais
A
evolução de todo esse processo relacionado
à reflexão e o desenvolvimento da área
de TA no país tem trazido consigo diversas
polêmicas, na medida em que, com a
concepção ampla de TA e os novos incentivos agora
disponíveis na área, a tendência
direcionou-se no sentido de que quase tudo passe a ser considerado como
TA, bastando que esteja relacionado de alguma forma a pessoas com
deficiência, mesmo tratando-se de realidades e recursos que
já eram enquadrados anteriormente em outras áreas
e em outros âmbitos.
Por exemplo, uma polêmica presente na atualidade refere-se
às diferentes visões sobre a
classificação ou não, como Tecnologia
Assistiva, de todo equipamento médico e de
reabilitação, utilizado pelos profissionais de
saúde, no trabalho com pacientes com deficiência.
Como os aparelhos que equipam uma clínica ou uma sala de
fisioterapia, por exemplo. A questão que tem sido levantada
é a seguinte: poderiam esses equipamentos para tratamento e
reabilitação ser considerados como recursos de TA?
Por um lado, argumenta-se que, como se trata de equipamentos que visam
realizar um tratamento ou reabilitação para uma
maior autonomia e qualidade de vida de pessoas com
deficiência, então esses produtos deveriam ser
considerados como TA.
Por outro lado, uma forma diferente de analisar essa questão
percebe e identifica esses equipamentos como instrumentos de trabalho
dos profissionais da saúde, da mesma forma que um bisturi
para um cirurgião, um quadro branco ou um software
educacional para um professor, ou uma broca para um dentista.
Não seriam, portanto, recursos do usuário de TA,
servindo diretamente para a atividade e
participação desse usuário, mas, sim,
ferramentas de trabalho dos profissionais da saúde,
utilizados para melhor executarem o seu labor especializado.
Quanto aos
aspectos e implicações econômicas dessa
classificação, argumenta-se também que
os instrumentos de trabalho dos profissionais da saúde, os
equipamentos de reabilitação, já
estavam situados, organizados e classificados dentro das
regulamentações e políticas
governamentais, muito antes que se começasse a falar e a
pesquisar sobre a área da TA.
Além de que,
começando-se a classificar todos esses equipamentos de
trabalho da área da saúde, em geral equipamentos
caros, também como TA, dos editais, chamadas
públicas de projetos e demais políticas
públicas de fomento à pesquisa, desenvolvimento e
aquisição de recursos de TA, poucos recursos
sobrariam para que o usuário final pudesse, de fato, ter
acesso aos recursos de TA necessários para a sua atividade,
participação, independência e autonomia
no dia a dia.
A maior parte desses limitados recursos, argumenta-se,
seria direcionada para equiparem hospitais, clínicas,
consultórios e centros de
reabilitação, e a TA que beneficia o
usuário final nas diversas atividades do cotidiano
continuaria sem ser apoiada, contemplada e fornecida adequadamente.
Essas polêmicas da atualidade, com suas significativas
implicações para os usuários finais,
evidenciam a necessidade de que se continue o aprofundamento nas
reflexões e na busca de uma crescente clareza conceitual em
relação à TA.
A falta dessa maior clareza conceitual tem acarretado, inclusive,
distorções, prejuízos, quando
não, ações de má
fé, que afetam pessoas com deficiência e seus
familiares.
Por exemplo, hoje são encontrados no mercado diferentes
softwares educacionais que se autointitulam como “Tecnologia
Assistiva para o aprendizado”, ou para a
alfabetização, de crianças e
adolescentes com Síndrome de Down.
Algo estranho,
primeiramente porque falar do desenvolvimento cognitivo de pessoas com
Síndrome de Down é falar de um horizonte muito
amplo, é falar de uma população muito
heterogênea, é falar de perspectivas, necessidades
e potencialidades muito diferenciadas dentro da mesma
população.
O desconhecimento desse fato leva ao
risco de que se caia em generalizações ou
padronizações simplistas e irreais. Em segundo
lugar, também é estranho porque o fato de ter a
Síndrome de Down não faz com que essa pessoa
possua características de desenvolvimento cognitivo
únicas e particulares a sua deficiência.
Ela
não tem um cérebro e uma forma de pensar
diferente dos outros seres humanos. Sua estrutura mental, sua forma de
aprender, é a mesma de qualquer outra pessoa.
Considerando-se, também, que não existe uma forma
padrão e uniforme, ou uma forma “normal”
de pensar, para todos os seres humanos.
Obviamente que não
se está negando aqui as limitações
intrínsecas à deficiência, mas isso
não faz com que essa pessoa possua uma estrutura mental
diferente, nem que aprenda a partir de um processo diferenciado em
relação a outras pessoas.
Por isso, quando se
analisa os conteúdos existentes nesses softwares que se
apregoam como “TA específica para o aprendizado de
crianças com Síndrome de Down”,
invariavelmente se tem encontrado apenas atividades comuns relacionadas
ao desenvolvimento da memória, como os joguinhos de
memória, ou atividades relacionadas à
percepção e discriminação
de cores e formas, ou exercícios com números,
letras, sílabas e palavras, e outras atividades desse tipo.
Ou seja, atividades que nada têm, nem poderiam ter, de
específico para o universo da Síndrome de Down.
E, com isso, fica evidente a existência de verdadeiras
“jogadas de marketing”, que exploram a
frequentemente grande preocupação dos pais de
crianças com Síndrome de Down em encontrar
alternativas que favoreçam a superação
das dificuldades de aprendizado dos seus filhos, aliado, muitas vezes,
a crença no mito de que o “poderoso
computador” possa oferecer
“soluções milagrosas” que
anulem, como num passe de mágica, as dificuldades inerentes
a todo o processo de aprendizagem.
Além desse tipo de “jogada de
marketing”, que também põe em
evidência a necessidade de uma maior precisão e
clareza conceitual referente às especificidades da TA, um
outro tipo de distorção pode ser encontrado com
certa frequência na atualidade, e sobre o qual penso ser
importante deter-me um pouco e buscar analisar.
Trata-se da identificação equivocada que algumas
vezes tem sido feita entre duas áreas de estudo e pesquisa:
a área da Informática na
Educação Especial (ou as TICs3
na
Educação Especial) identificada ou confundida com
a área da Tecnologia Assistiva na
Educação.
*3
Tecnologias de Informação e
Comunicação.
Essa confusão, ou distorção, que
ocorre muitas vezes não por má fé,
mas, sim, pela necessidade de uma maior clareza conceitual, tem sido
encontrada até mesmo em artigos científicos e
trabalhos técnicos publicados em anais de eventos na
área.
De certa forma, é perfeitamente
compreensível que isto ocorra, dado que toda
reflexão conceitual sobre a TA é relativamente
recente, tratando-se de uma área ainda em pleno processo de
organização e
sistematização.
Porém, na verdade, a área da
Informática na Educação Especial e a
área da Tecnologia Assistiva na
Educação são duas áreas bem
diferentes, com referenciais teóricos diferentes, com
objetivos diferentes, e com pesquisadores também muitas
vezes diferentes, mesmo que existam pontos de contato entre elas.
É possível encontrar em alguns trabalhos, por
exemplo, a identificação e
classificação como TA de softwares educacionais
comuns, pelo simples fato de que esses softwares estejam sendo
utilizados por estudantes com alguma deficiência.
Ou seja,
quando um estudante com deficiência está
utilizando o computador e um software educacional comum, de
português ou matemática talvez, pelo simples fato
de tratar-se de um estudante com deficiência, se passa
automaticamente a considerar o computador ou o software como um
“recurso de Tecnologia Assistiva para o favorecimento do
aprendizado desse aluno”.
Note-se a estranheza desse fato, na
medida em que, muitas vezes, numa escola inclusiva, ao lado desse
estudante com deficiência pode estar outro estudante, este
sem deficiência, utilizando o mesmo recurso computacional e,
o mais importante, com a mesma finalidade de favorecer o seu
aprendizado, exatamente como no caso do estudante com
deficiência.
E para esse estudante sem deficiência,
obviamente, esse recurso computacional não é
considerado como Tecnologia Assistiva, mas, sim, como uma simples
tecnologia educacional...
A distorção encontra-se no fato de que, embora
ambos os estudantes possam estar utilizando de forma
idêntica, e com as mesmas finalidades, o mesmo recurso
computacional, para um deles, o estudante com deficiência,
esse recurso é identificado com Tecnologia Assistiva, e para
o outro, o recurso é classificado como tecnologia
educacional.
Não seria, na verdade, para ambos, apenas uma
tecnologia educacional, utilizada como recurso e estratégia
pedagógica para o aprendizado de ambos, já que em
nada se diferenciam na prática as formas e finalidades de
uso desse recurso para os dois? Qual a necessidade e o sentido de
classificar como TA esse recurso, apenas por estar sendo utilizado por
um estudante com deficiência?
3.
Uma questão de fundo
Todas essas distorções sobre as
concepções e as
classificações da TA, encontradas com
frequência na atualidade, remetem, na verdade, para uma
questão conceitual mais ampla, que seria a seguinte: poderia
ter, de fato, a Tecnologia Assistiva uma função
específica de promover, ela mesma, diretamente, o
aprendizado de estudantes com deficiência, ou seja, de ser
uma “Tecnologia Assistiva educacional”? Seria esta
uma das funções da Tecnologia Assistiva, ou
não?
Note-se que a questão proposta se refere apenas
às dificuldades relacionadas às
funções
cognitivas, ao aprendizado, e
não às dificuldades relativas às
funções
motoras, visuais, auditivas
ou de
comunicação.
Se a resposta a esta questão for SIM, ou seja, que os
estudantes com deficiência de fato necessitam, para aprender,
dessa tecnologia específica somente para eles, como a TA,
esse raciocínio e conclusão não
caminharia na mesma direção do
raciocínio e argumentação que defende
a necessidade de uma educação e uma escola
especial, segregada, já que se admite que os processos de
aprendizagem de um estudante com deficiência sejam
tão particulares e diferenciados dos demais, que fazem com
que necessitem de uma tecnologia tão específica
para eles, como a TA, para que consigam aprender, enquanto todos os
demais estudantes necessitam “apenas” da tecnologia
educacional?
Para a busca de uma maior precisão conceitual sobre a
Tecnologia Assistiva, considero fundamental que se leve em
consideração todas essas
implicações, sociais, filosóficas,
econômicas etc., das diferentes
concepções de TA, as quais podem encontrar
subsídios e referências também em
outros âmbitos teóricos e em contextos mais
amplos, como buscarei trazer a seguir.
Pesquisas têm revelado que, na verdade, os processos de
desenvolvimento cognitivo e aprendizado de qualquer estudante, possua
ele uma deficiência ou não, estão
relacionados, principalmente, ao tipo de modelo educacional pelo qual
se opta, estando, por isso mesmo, relacionados à
construção de um novo paradigma que respeite e
valorize a diversidade humana, e que responda, individualmente e de
forma flexível, às características,
necessidades e potencialidades de cada estudante, respeitando os seus
ritmos e formas de aprendizagem. E isso, enfatize-se, independentemente
deles possuírem ou não uma deficiência,
já que:
A
escola comum se torna inclusiva quando reconhece as
diferenças dos alunos diante do processo educativo e busca a
participação e o progresso de todos, adotando
novas práticas pedagógicas. [...] Para atender a
todos e atender melhor, a escola atual tem de mudar, e a tarefa de
mudar a escola exige trabalho em muitas frentes. (MANTOAN et al., 2010,
p. 9 e 10)
Esse
raciocínio é corroborado também
por estudos e pesquisas em outras áreas, além dos
estudos específicos da área da
educação especial e inclusiva. Como, por exemplo,
nas pesquisas que estudam as implicações da
presença das novas tecnologias na sociedade e na
educação, as quais também apontam para
a necessidade de uma mudança de paradigma nos processos
educacionais vivenciados nas escolas, superando as dinâmicas
tradicionais de repasse massificado de
informações, e passando a valorizar e responder
às particularidades de cada processo individual dos
estudantes, na construção dos seus conhecimentos,
respeitando e atendendo as necessidades específicas de cada
um, tenham ou não alguma deficiência
(GALVÃO FILHO, 2004).
Vygotsky (1997) chama a atenção para o fato da
criança com deficiência não possuir uma
estrutura de desenvolvimento e aprendizado diferente das outras
crianças:
VYGOTSKY
(1997) desenvolve essas idéias em seu trabalho
“Fundamentos da Defectologia”, no qual conclui que
os princípios fundamentais do desenvolvimento são
os mesmos para as crianças com ou sem deficiência,
mas que as limitações interpostas pela
deficiência funcionam como um elemento motivador, como um
estímulo, uma
“supercompensação”, para a
busca de caminhos alternativos na execução de
atividades ou no logro de objetivos dificultados pela
deficiência. (GALVÃO FILHO, 2004. p. 28)
O novo paradigma da educação escolar a ser
construído deve dar conta, portanto, das necessidades de
todos os estudantes, com ou sem deficiência. Para que esse
novo paradigma, essa nova dinâmica, possa ir tornando-se
realidade, é necessário que ocorram movimentos
concretos em direção à
desconstrução das estruturas rígidas e
centralizadoras da escola tradicional, ao mesmo tempo em que ocorra uma
verdadeira apropriação, pelos seus agentes, das
novas possibilidades e lógicas de
relação com os saberes e sua
produção, proporcionados pelas Tecnologias de
Informação e Comunicação.
E, desse modo, dar passos reais em direção
à construção de uma escola
dialógica, aprendente e inclusiva:
Para
poder responder a esses desafios, a escola necessita transformar
práticas engessadas, inserir-se no movimento constante e
complexo da contemporaneidade, aprendendo no movimento, necessita
tornar-se uma escola aprendente. (BONILLA, 2005, p. 91)
E
para Valente:
Assim,
comparativamente ao que acontece com os meios de
produção e serviço, na
Educação “enxuta” o aluno
deve “puxar” os conteúdos, e a escola
deve ser capaz de atender às demandas e necessidades dos
alunos. O professor e os alunos devem ter autonomia e responsabilidade
para decidir o como e o que deve ser tratado nas aulas. O aluno deve
ser crítico, saber utilizar a constante reflexão
e depuração para atingir níveis cada
vez mais sofisticados de ações e
idéias, e ser capaz de trabalhar em equipe e desenvolver, ao
longo da sua formação, uma rede de pessoas e
especialistas que o auxiliem no tratamento dos problemas complexos. O
conteúdo não pode ser mais fragmentado ou
descontextualizado da realidade ou do problema que está
sendo vivenciado ou resolvido pelo aluno. (VALENTE, 1999, p. 37-38)
Construir
uma escola dialógica significa, em suas estruturas
mais profundas, desenvolver mecanismos concretos de escuta e
comunicação, tanto em
relação à sociedade em geral, com suas
novas dinâmicas, exigências e possibilidades,
quanto em relação a cada aprendiz em particular,
que vivencia as diferentes necessidades de conhecer no mundo de hoje.
Dessa forma, e só assim, a escola poderá dar
passos concretos para se tornar, verdadeiramente, uma Escola Inclusiva,
uma escola aberta e valorizadora da diversidade humana, percebendo e
acolhendo as diferenças individuais não como um
obstáculo, mas como um potencial de riquezas para o qual ela
deve estar atenta, articulando iniciativas e ambientes de aprendizagem
que tornem essa diversidade um fator de crescimento e enriquecimento da
coletividade.
De outra forma, a partir de um modelo educacional padronizante e
massificado, de repasse e memorização de
informações, as diferenças
continuarão sendo encaradas como “um corpo
estranho” no interior da escola (GALVÃO FILHO,
2009b), as quais devem ser alvo de
“intervenções
especializadas”, de escolas especiais, ou de tecnologias
específicas, como uma suposta “Tecnologia
Assistiva específica para o aprendizado” de
estudantes com deficiência.
Numa linha semelhante às reflexões e
críticas ao modelo educacional tradicional que
são encontradas nas pesquisas e trabalhos sobre o papel das
novas tecnologias aplicadas à
educação, encontramos na atualidade as
reflexões sobre o que se vem convencionando chamar de
“Universal Design for Learning” - UDL, ou
“Desenho Universal na Aprendizagem”. Uma abordagem
interessante sobre o UDL é encontrada no artigo intitulado
“Tecnologia Assistiva e Desenho Universal na Aprendizagem:
dois lados da mesma moeda”4
(ROSE et al.,
2005).
Este artigo destaca a percepção segundo a qual,
para que se alcance um Desenho Universal na Aprendizagem, UDL,
é fundamental a busca de uma educação
e de uma escola cuja estruturação e
organização devem ser pensadas, desde o
início, de forma flexível, de maneira que possa
dar conta eficientemente da diversidade humana presente nas salas de
aula.
Ou seja, que todo o universo educacional escolar, com suas
dinâmicas, rotinas, tempos, conteúdos, materiais
didáticos etc., sejam flexibilizados e diversificados, de
forma a que a escola não somente inclua e respeite a
diversidade existente na sociedade humana, mas também
valorize essa diversidade como um fator de enriquecimento dessa
sociedade. E chama a atenção para a
importância das Tecnologias de
Informação e Comunicação
– TIC, como favorecedoras dessa
flexibilização e desse processo inclusivo:
A
abordagem do desenho universal visa à
criação de produtos e/ou ambientes que
são projetados, desde o início, para atender os
indivíduos com uma maior gama de habilidades e
deficiências do que seriam atendidos por
aplicações tradicionais. [...] De forma
relacionada, UDL procura formar os desenvolvedores de
currículo, professores e administradores em como projetar
currículos e ambientes de aprendizagem que desde o
início tornem a aprendizagem acessível a um maior
número de estudantes.5
(ROSE et al., 2005, p. 508
– tradução minha)
*
4
“Assistive
Technology and Universal Design for Learning:
Two Sides of the Same Coin”. Disponível em:
http://craigcunningham.com/nlu/tie536fall09/Assistive%20Technology%20and%20UDL_TwoSidesoftheCoin.pdf
*5
“The
universal design approach is to create products
and/or environments that are designed, from the outset, to accommodate
individuals with a wider range of abilities and disabilities than can
be accommodated by traditional applications. […] In a
related fashion,
UDL seeks to educate curriculum developers, teachers, and
administrators in how to design curricula and learning environments
that from the outset make learning accessible to the widest range of
students.”
Ou seja, uma abordagem bastante interessante e semelhante ao que tem
sido revelado e preconizado pelas pesquisas sobre o uso das TIC na
Educação, e/ou na Educação
Especial em particular (BONILLA, 2005; PRETTO, 2005; GALVÃO
FILHO, 2004; LÉVY, 1999; VALENTE, 1999; PAPERT, 1994, entre
outros).
O problema da reflexão proposta por este e outros textos que
abordam
o chamado UDL a meu ver começa quando, embora
apresentando uma diferenciação entre a Tecnologia
Assistiva e o UDL, com seus recursos pedagógicos
flexíveis, suas estratégias
pedagógicas e suas tecnologias educacionais organizadas para
todos os estudantes, essa linha de reflexão admite a
possibilidade da existência de uma “TA
educacional”, ou seja, uma TA específica para o
aprendizado de estudantes com deficiência. Por exemplo,
referindo-se a estudantes com dificuldades de compreender um
conteúdo de história por causa de
limitações na sua capacidade de leitura, o texto
acima referido faz a seguinte análise:
Tomando
uma perspectiva da Tecnologia Assistiva, o problema pode ser
considerado um problema individual - é claramente a
deficiência individual de leitura do aluno que interfere na
sua capacidade de dominar o conteúdo histórico e
demonstrar conhecimento. Esta visão promove
soluções que focam os déficits do
indivíduo - aulas de reforço de leitura,
acompanhamento especial, e a Tecnologia Assistiva, por exemplo. Destes,
a Tecnologia Assistiva é particularmente valiosa porque
fornece meios independentes para o aluno superar as suas
limitações como, por exemplo, utilizando um
corretor ortográfico ou uma versão em
áudio do livro de história.6
(ROSE et
al., 2005, p. 510 – tradução minha)
*
6
“Taking an AT perspective, the problem can be considered an
individual problem — it is clearly the individual students
reading disability that interferes with his or her ability to master
the history content and demonstrate knowledge. This view fosters
solutions that address the individuals weaknesses — remedial
reading classes, special tutoring, and AT, for example. Of these, AT is
particularly valuable because it provides independent means for the
student to overcome his or her limitations by, for example using a
spellchecker or audio version of the history book.”
Ou seja, no lugar de continuar considerando como estratégias
pedagógicas, aplicadas por meio de tecnologias educacionais,
todas essas soluções particulares para o
favorecimento do aprendizado de estudantes com dificuldade de leitura,
os autores preferem situar esses recursos no âmbito da
Tecnologia Assistiva.
Note-se que esses recursos que o texto chama acima de Tecnologia
Assistiva, o corretor ortográfico ou a versão em
áudio do texto, seja por gravação ou
por software de síntese de voz, são
auxílios que podem ser muito úteis para qualquer
estudante que tenha dificuldades de leitura, e não apenas
para estudantes com deficiência.
Bastante diferente da
situação de estudantes cegos, por exemplo, que
necessitam da versão em áudio do texto como um
recurso de acessibilidade ao texto impresso, para eles
inacessível devido a sua deficiência, a
deficiência visual. Neste caso do estudante cego, portanto, o
texto em áudio, sem dúvida, trata-se de um
recurso de Tecnologia Assistiva.
Este exemplo relativo aos recursos tecnológicos de
gravação ou síntese de voz para o
acesso ao texto é bastante útil, a meu ver, para
que se perceba a diferença entre a
utilização de recursos tecnológicos
como
tecnologia educacional e estratégia
pedagógica, para o estudante com dificuldade de leitura
por
questões referentes à
cognição e o aprendizado, diferente do seu uso
como Tecnologia
Assistiva, para o estudante cego.
Ou seja, o mesmo
recurso tecnológico sendo utilizado para finalidades bem
diferentes. Perceba-se, portanto, que, o que define e caracteriza um
recurso como sendo ou não um recurso de TA, não
são apenas as características particulares do
recurso (“o que”). Nem, tampouco, apenas as
características do usuário (“para
quem”). Porém, também,
a finalidade
para a qual se está utilizando o referido recurso
(“para que”).
No caso do estudante cego, a
finalidade, o “para que”, refere-se ao uso da
tecnologia como recurso de acessibilidade ao texto impresso,
inacessível devido ao problema relativo à
função visual. Penso, portanto, ser importante
ter presentes todas essas três perguntas, na
identificação e
classificação de um recurso como sendo ou
não um recurso de TA: O quê?,
Para
quem? e,
também, Para quê?
Sendo que a Tecnologia Assistiva, por definição,
trata de recursos de acessibilidade que se destinam especificamente a
pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida
(CAT, 2007), penso que identificar estratégias
pedagógicas e tecnologias educacionais, que podem ser
úteis para diversos alunos e não apenas para
alunos com deficiência, como sendo recurso de TA,
não favorece o caminho da busca de uma maior
precisão conceitual relativa à TA.
Primeiramente
porque essa identificação parte da premissa de
que estudantes com deficiência necessitam de uma tecnologia
específica só para eles, como a TA, para que
possam desenvolver suas funções cognitivas, para
que possam aprender, enquanto os demais estudantes necessitam somente
da tecnologia educacional.
O que, de fato, não ocorre,
já que os estudantes com deficiência, intelectual
ou outra, na verdade necessitam, da mesma forma que os demais
estudantes, de um paradigma educacional aberto e flexível,
que lhes disponibilize estratégias pedagógicas e
tecnologias educacionais por meio dos quais se respeite e valorize a
diversidade humana, e responda às suas necessidade
individuais e específicas para o aprendizado.
E, em segundo
lugar, essa admissão da existência de uma
“TA educacional”, enquanto recurso
específico para o desenvolvimento das
funções cognitivas de estudantes com
deficiência, favorece, a meu ver, a continuidade e o
crescimento das diferentes distorções encontradas
com frequência nas reflexões e práticas
na área da TA na atualidade, como as elencadas anteriormente
no presente texto.
Portanto, as soluções para o favorecimento dos
processos cognitivos e de aprendizado desses estudantes com
deficiência estão relacionadas não a
Tecnologia Assistiva, mas, sim, às estratégias
pedagógicas a serem estruturadas pela escola e pelos
professores, e também estão relacionadas
às tecnologias educacionais que auxiliem na
estruturação e aplicação
dessas estratégias pedagógicas, de maneira a que
respondam efetivamente às necessidades e processos
específicos de cada estudante, com ou sem
deficiência.
Note-se que essas estratégias
pedagógicas são, justamente, os instrumentos
específicos da atuação profissional
dos educadores, são as “ferramentas de
trabalho” do professor, juntamente com a tecnologia
educacional, e desenvolvidas segundo as necessidades de cada estudante.
Ao
contrário do que se pensa e se faz, as
práticas escolares inclusivas não implicam um
ensino adaptado para alguns alunos, mas sim um ensino diferente para
todos, em que os alunos
tenham condições de
aprender, segundo suas próprias capacidades, sem
discriminações e
adaptações.
(MANTOAN et al., 2010, p. 15. Grifo
meu)
4.
Algumas percepções possíveis
As ideias propostas por Vygotsky (1994) sobre o papel dos
diferentes tipos de mediação,
necessários para os processos de desenvolvimento e
aprendizagem do ser humano, podem ser úteis para entender as
diferenças entre a função da
Tecnologia Assistiva e a função das
estratégias pedagógicas com as tecnologias
educacionais. Principalmente com a diferenciação
que ele faz entre as noções de
Mediação Instrumental e
Mediação Simbólica:
O
ser humano conseguiu evoluir como espécie
graças à possibilidade de ter descoberto formas
indiretas, mediadas, de significar o mundo ao seu redor, podendo,
portanto, por exemplo, criar representações
mentais de objetos, pessoas, situações, mesmo na
ausência dos mesmos. Essa mediação pode
ser feita de duas formas: através do uso dos signos e do uso
dos instrumentos. (GALVÃO, 2004, p. 87).
Como um tipo de mediação
instrumental pode ser
situado todo o universo referente à Tecnologia Assistiva.
Os
instrumentos de mediação, segundo Vygotsky
(1994), são, na verdade, objetos feitos com um fim
específico:
São
coisas que carregam consigo o motivo pelo qual foram
gerados, ou seja, a sua finalidade social. Representam de imediato o
que pretendem mediar na relação entre o ser
humano e o mundo. No caso de uma ferramenta de trabalho, a partir do
momento em que a pessoa descobre a sua finalidade social, ela
irá carregá-la consigo, identificando, assim,
para que serve a sua existência. Por exemplo, “uma
tesoura serve para cortar”. (GALVÃO, 2004, p. 87)
Já a
mediação
simbólica
trata-se de uma forma posterior de mediação, e
está relacionada com os signos, com os processos
semióticos: “do mesmo modo que os instrumentos
físicos potencializam a ação material
dos homens, os instrumentos simbólicos (signos)
potencializam sua ação mental” (SFORNI,
2008).
Nesse contexto podem ser situadas todas as
estratégias
e mediações
pedagógicas,
auxiliadas pelas
tecnologias educacionais,
que
estão relacionadas com os processos não
concretos, mas simbólicos, que dependem do aprendizado, e
também conduzem a ele, e a relações
simbólicas e psicológicas.
Dessa forma, a
Tecnologia Assistiva,
como um tipo de
mediação
instrumental, está
relacionada com os processos que favorecem, compensam, potencializam ou
auxiliam, também na escola, as habilidades ou
funções pessoais comprometidas pela
deficiência, geralmente relacionadas às:
-
Funções
Motoras
-
Funções
Visuais
-
Funções
Auditivas
-
E/ou
Funções de Comunicação.
A partir dessa percepção, portanto, entende-se
que a superação, por um estudante na escola, das
dificuldades referentes às Funções
Cognitivas, mesmo quando comprometidas por uma deficiência,
está relacionada às estratégias
pedagógicas e à tecnologia educacional para o
acesso aos conhecimentos e ao aprendizado, e não
à Tecnologia Assistiva.
Esses diferentes desafios, propostas e interrogantes aqui discutidos
são apresentados no intuito não de trazer
respostas e soluções cabais para os problemas,
mas, sim, de ressaltar a necessidade de que seja dada continuidade ao
processo de aprofundamento e busca de uma maior precisão
conceitual relativa à TA, de forma a que se evite ou se
supere as distorções encontradas no caminho, as
quais dificultam que os objetivos a serem alcançados por
meio da TA sejam atingidos.
Salvador, Bahia, 27 de
março de 2013.
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Teófilo
Galvão Filho é Doutor
e Mestre em Educação pela Universidade Federal da
Bahia - UFBA, Especialista em Informática na
Educação pela Universidade Federal de Alagoas
– UFAL e Graduado em Engenharia pela Universidade
Católica de Pelotas – UCPel. É
professor colaborador do Programa de
Pós-Graduação em
Educação (Mestrado e Doutorado) da Faculdade de
Educação da Universidade Federal da Bahia
(PPGE/FACED/UFBA), ministrando a disciplina
"Educação e Tecnologia Assistiva" e orientando
alunos do Programa. É pesquisador do grupo de
pesquisa cadastrado no CNPq "Educação Inclusiva e
Necessidades Educacionais Especiais" (GEINE/PPGE/UFBA). Atualmente
realiza o Pós-Doutorado na Universidade Federal da Bahia com
o apoio da CAPES (Programa Nacional de Pós-Doutorado -
PNPD/CAPES) e compõe a equipe do NAPE - Núcleo de
Apoio ao Aluno com Necessidades Educacionais Especiais da UFBA. Tem
atuado como consultor nas áreas de Tecnologia Assistiva,
Educação Inclusiva e Políticas de
Inclusão Social. É membro do Comitê de
Ajudas Técnicas da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República.