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João Luís de Almeida Machado é consultor em Educação e Inovação, Doutor e Mestre em Educação, historiador, pesquisador e escritor.

A Ditadura Envergonhada
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“O ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, coronel da reserva projetado na política do Pará em 1964, quando saiu do quartel para assumir o governo do estado, chamou a reunião de ‘histórica’. (...) Assim foi: ‘Sei que a Vossa Excelência (dirigindo-se ao Presidente da República) repugna, como a mim e a todos os membros desse Conselho, enveredar pelo caminho da ditadura pura e simples, mas me parece que claramente é esta que está diante de nós. [...] Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência’”.

Que tal conhecer a fundo as entranhas de um período muito marcante da história de nosso país? E o que acha de ter como guia nessa viagem um dos mais respeitados jornalistas brasileiros? Mais fascinante ainda é saber que a principal base para a composição dos materiais publicados (num livro particularmente inesquecível) são documentos que foram coletados e guardados por dois dos maiores responsáveis pela existência desses acontecimentos, o ex-presidente Ernesto Geisel e a eminência parda de todo o período de governos militares no Brasil, o ex-general Golbery do Couto e Silva.

Coube a Elio Gaspari, jornalista respeitado da Folha de São Paulo, a árdua tarefa de estudar e organizar todos esses documentos para que, ao final, pudesse surgir um livro memorável, desses que se tornam referência a partir de sua publicação. Não é à toa que foi laureado com o prêmio de melhor ensaio de 2003 pela Academia Brasileira de Letras. Prêmio justo para uma obra gostosa de ler, interessante do começo ao fim e que bota mais lenha na fogueira das discussões acerca de um dos mais tumultuados e célebres momentos da história desse país.

“Às dezessete horas da sexta-feira, 13 de dezembro do ano bissexto de 1968, o marechal Arthur da Costa e Silva, com a pressão a 22 por 13, parou de brincar com palavras cruzadas e desceu a escadaria de mármore do Laranjeiras para presidir o Conselho de Segurança Nacional, reunido à grande mesa de jantar do palácio. Começava uma missa negra”.

Assim começa a narrativa do primeiro volume da série sobre a ditadura militar brasileira, intitulado “A Ditadura Envergonhada”. A solenidade da missa negra mencionada por Gaspari refere-se a reunião que fez com que surgisse em nosso país o Ato Institucional número 5, ou simplesmente AI-5, o mais repressor de todos os mecanismos “legais” constituídos pelo governo militar para regularizar, de acordo com seus conformes, a administração do Brasil.

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Charge de Fortuna para o semanário Pif Paf, nº 24 (06/07/1964), Rio de Janeiro/RJ.

E por que tanto medo? Por que tanta violência? Que motivos levaram os militares a criar um instrumento jurídico que praticamente estabeleceu e regularizou a tortura, a censura, a repressão política, a cassação de mandatos e o estabelecimento de um sistema bipartidário que suprimia quase que totalmente qualquer resquício de democracia que ainda existisse por essas bandas?

Ao longo do livro, o autor vai desvendando as situações que causavam disputas dentro da própria estrutura militar nacional, desde o seu início, na transição do mês de março para abril de 1964, quando o general Castelo Branco assumiu, até o surgimento do AI-5 e a criação dos mecanismos ditatoriais que regulariam a vida no país no final da década de 1960 e ao longo dos anos 1970.

“Pela primeira vez desde 1937 e pela quinta vez na história do Brasil, o Congresso era fechado por tempo indeterminado. O Ato era uma reedição dos conceitos trazidos para o léxico político em 1964. Restabeleciam-se as demissões sumárias, cassações de mandatos, suspensões de direitos políticos”.

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Antônio Carlos Muricy comanda o destacamento Tiradentes na marcha Juiz de Fora (31 março 1964).
Arquivo Antônio Carlos Murici / ACM foto 058_2 / CPDOC

Castelo, por exemplo, enfrentou o descontentamento de civis (fossem eles da esquerda, mais perseguidos pelas forças “revolucionárias”, ou da direita, articulando seu retorno ao poder máximo da república em dois ou três anos, no máximo) e a ira e incompreensão dos militares, desconhecedores das regras do novo jogo político que estava sendo imputado ao país, que acabaram cometendo insubordinações e instalando práticas combatidas pelos primeiros militares que controlaram a nação, como a tortura e o seqüestro de opositores.

Resguardados por um início de década (anos 1960) extremamente confuso no cenário político nacional em virtude da renuncia de Jânio Quadros e da conseqüente criação de um modelo parlamentarista para evitar a ascensão ao poder do vice João Goulart (Jango), os militares assumiram em 64 dispostos a restabelecer a ordem e brecar a ascensão da esquerda nacional.

O ex-presidente Jango, herdeiro das tradições políticas de Getúlio Vargas, era considerado ameaçador pela intensa mobilização em favor de reformas (agrária, urbana, fiscal,...) que contrariavam o interesse do capital nacional e internacional. O surgimento de Cuba no cenário político mundial como um novo bastião do socialismo internacional localizado a apenas 90 milhas da Flórida amedrontava os norte-americanos, que temiam o surgimento de novos aliados dos soviéticos. O radicalismo de alguns líderes políticos nacionais como Miguel Arraes em Pernambuco e Leonel Brizola no Rio Grande do Sul pareciam sinalizar que o avanço do socialismo na América Latina podia migrar da ilha de Fidel para o Brasil.

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Apoiados por setores conservadores da sociedade, os militares passaram a controlar o país a partir de abril de 1964.

As reivindicações das ligas camponesas lideradas pelo deputado Francisco Julião e a agitação dos militares ligados a esquerda também preocupavam os setores conservadores do país, composto por empresários, deputados, senadores, governadores dos principais estados brasileiros, a igreja católica tradicionalista, a classe média e os militares. Os Estados Unidos acompanhavam de perto as ameaças a ordem democrática e aos princípios liberais que garantiam mercados e lucros para suas principais empresas, por isso, também se mostravam favoráveis a mudanças políticas no Brasil...

Nesse contexto o golpe era iminente e dependia essencialmente de um estopim para acontecer. A busca de apoio popular pelo presidente Jango empreendida entre o final de 1963 e o início de 1964, com a radicalização de seus discursos era a justificativa esperada há algum tempo pelos golpistas.

A ineficiência do aparato militar de apoio ao governo Goulart foi outro importante fator favorável à realização dos insurretos. Custou muito a eles acreditar que o presidente não tivesse apoios significativos, o que adiou a pretensa “revolução” do dia 31 de março para o dia da mentira (1º de Abril). Tudo começava como uma autêntica farsa.

O maior mérito desse primeiro livro de Elio Gaspari reside em montar, peça a peça, o quebra-cabeças desencadeado com o golpe, fazendo um levantamento minucioso de depoimentos de envolvidos, reportagens divulgadas pelos principais jornais da época (alguns deles totalmente favoráveis a intervenção dos militares), livros escritos sobre o assunto e, principalmente, as notas de Geisel e Golbery.

O sacerdote e o feiticeiro, como são chamados Geisel e Golbery pelo jornalista Elio Gaspari, participaram do Golpe de 64 desde o seu início, tendo colaborado inclusive para a criação do SNI (Serviço Nacional de Informações), uma espécie de CIA ou KGB brasileira, especializada em investigar a vida de todo e qualquer brasileiro que se tornasse uma ameaça ao sistema político vigente.

É na companhia desses senhores que vamos, ao longo das páginas desse livro, entender que motivos levaram o Brasil a viver, depois do AI-5, uma longa noite que se estenderia até 1977...

“Durante a reunião (em que foi criado o AI-5) falou-se dezenove vezes nas virtudes da democracia, e treze vezes pronunciou-se pejorativamente a palavra ditadura. Quando as portas da sala se abriram, era noite. Duraria dez anos e dezoito dias”.

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