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Aprender com as Diferenças

 

No Brasil, o direito ao voto é realmente igual para todos?
Beto Pereira, Ethel Rosenfeld e Flavia Boni Licht

“As urnas das seções eleitorais devem ser adequadas ao uso com autonomia pelas pessoas com deficiência e/ou com mobilidade reduzida e estarem instaladas em local de votação plenamente acessível e com estacionamento próximo.”

Isso foi decretado no longínquo ano de 2004 e, até hoje – é bom lembrar que estamos em 2012, já se passaram oito anos e quatro eleições – em muitas, inúmeras urnas continuam inadequadas ao uso com autonomia pelas pessoas com deficiência e instaladas em locais de votação totalmente e absurdamente inacessíveis.

Então, sob a forma de depoimento, relatamos, a seguir, algumas situações vivenciadas por nós, e ficamos imaginando quantas outras semelhantes – ou até piores – ocorreram no último dia 7 de outubro, data da realização do primeiro e, na maioria das cidades brasileiras, único turno das eleições 2012.

1º depoimento: Eleitor em Jundiaí, fui votar, como faço há muitos anos, na Escola Estadual Ranieri Mazzilli, acompanhado de minha mãe e guiado por Simon, meu cão-guia.

A poucos metros da sala de votação, um fiscal de nome Andérson repreendeu minha mãe de forma grosseira, dizendo não ser permitido o acesso de cães.

Falando com o fiscal, disse-lhe que deveria dirigir-se diretamente a mim e, complementando, informei-lhe que a presença do cão-guia é autorizada por lei federal.

Em resposta, ouvi do fiscal que o cão assustaria os demais eleitores e, ao tentar contrapor, fui avisado de que o referido fiscal tinha ido embora e me deixado falando sozinho.

Em função da gravidade do fato, fui até a delegacia mais próxima onde registrei a ocorrência, não sem antes, claro, ter sido desencorajado por outras pessoas que ali trabalhavam: por um passe de mágica, agora, fariam o “favor” de liberar meu acesso acompanhado de Simon.

No 4º Distrito Policial da cidade, fui otimamente atendido, instruído a retornar à seção eleitoral e, no caso de qualquer impedimento, solicitar a presença do juiz eleitoral ou até da polícia militar.

Com o boletim de ocorrência em mãos, retornei e, em menos de 20 segundos frente à urna eletrônica, votei.

Isso apesar de, conforme recomenda a legislação, não existir adaptação sonora com retorno de voz para que me fosse possível ouvir a confirmação do meu voto, o que deixa claro que a adaptação existente não passa de “tapa buraco”, um ludibrio às pessoas que não estão informadas acerca de acessibilidade, inclusão e direitos.

Vale esclarecer que essas mesmas urnas, além do teclado em Braile, devem ser dotadas de saída para fone de ouvido para que as pessoas com deficiência visual possam receber sonoramente todas as informações visuais que são dadas na tela às pessoas que enxergam.

2º depoimento: Eleitora em Porto Alegre, fui votar, como faço há muitos anos, na Associação Leopoldina Juvenil, onde, no salão de festas do clube são instaladas em torno de dez mesas eleitorais.

Para chegar ao salão de festas, todos precisam subir uma sequência de duas escadas – uma, aproximadamente, com cinco degraus, outra certamente com o dobro disso.

Por coincidência, na minha frente, uma moça que caminhava com apoio de andador subia aquelas escadas com gigantesca dificuldade.

Chamava a atenção o fato de estar desacompanhada e negar-se a receber qualquer tipo de auxílio.

Depois de votar, repetiu-se a coincidência: nova situação difícil vivenciada por outro eleitor que, com mobilidade reduzida, descia aquelas escadas de forma bastante penosa.

Também ele estava sozinho e negava-se a receber auxílio.

Ambos pareciam acreditar na legislação que, desde 2004 ii, exige locais de votação plenamente acessíveis.

Vale lembrar que pessoas da minha família, votantes na Escola Estadual Visconde de Pelotas, eleição após eleição ficam perplexas ao observar todas as urnas eletrônicas colocadas em salas no segundo andar do prédio (sem elevador, claro).

Ou seja, todas as pessoas – inclusive as com deficiência, os idosos e as gestantes – têm que subir escadas para poder votar.

E trata-se, aqui, de uma escola pública que, pela lei em vigor no Brasil, já deveria estar plenamente adaptada há muitos anos.

3º depoimento: Eleitora no Rio de Janeiro, fui votar, como faço há muitos anos, na sede do Instituto de Arquitetos do Brasil.

Lá, já se acostumaram com meu cão-guia, mas sempre temos histórias para contar.

Dessa vez, a presidente da mesa perguntou à minha prima se eu assinaria meu nome.

Eu me abaixei, peguei a caneta e disse baixinho só para ela: podes falar diretamente comigo, não precisas dirigir a palavra à minha acompanhante!

Também naquela seção eleitoral, apesar de a urna ter teclado em Braile, o retorno sonoro que daria aos eleitores cegos a segurança da confirmação do voto, inexiste.

Por essa razão, voto acompanhada – por uma pessoa da minha confiança, mas, mesmo assim, meu voto deixa de ser secreto, o que me coloca em situação de desigualdade em relação a milhões de eleitores brasileiros.

Há alguns anos, decidi que não votaria mais “no escuro”.

Naquela ocasião, a presidente da mesa me impediu de votar, pois, argumentava ela, há Braile no teclado, não precisas de acompanhante.

A“solução” encontrada pelo pessoal que controlava a mesa eleitoral veio sob a forma de duas alternativas: se eu não votasse, pagaria a multa correspondente ou, então, que eu passasse a votar no Instituto Benjamin Constant iii, o que demonstra que muita gente não tem a menor ideia do significado da palavra inclusão.

É, há coisas que parecem piada!

Como a que ocorreu com um candidato a vereador, carioca, paraplégico, usuário de cadeira de rodas.

Depois de muito trabalho em campanha, na última semana antes das eleições – ou seja, quase às vésperas do pleito –, sua candidatura foi impugnada, pois descobriram que ele não havia votado na eleição de 2010.

E por que ele não votou? É que, para chegar à sua seção eleitoral, teria que subir uma imensa escadaria e ninguém, na ocasião, dispôs-se a carregá-lo.

Ou seja, por absoluta falta de acessibilidade, ele não pôde votar em 2010 e não pôde candidatar-se em 2012.

E ainda existe gente que acha que as pessoas com deficiência são intransigentes quando exigem que seus direitos sejam respeitados…

* * *

Nas cidades onde as últimas eleições não se decidiram no primeiro turno, ainda há tempo para o Tribunal Superior Eleitoral obedecer às leis brasileiras de acessibilidade vigentes desde 2004.

Infelizmente, na maioria esmagadora dos municípios brasileiros isso apenas poderá ocorrer em 2014.

Até lá, vamos ficar na expectativa, cada um de nós fazendo sua parte para construir uma sociedade mais acessível, justa e solidária.

* * *

Os autores

Beto Pereira: beto@betopereira.com.br 

Ethel Rosenfeld: ethel@ethelrosenfeld.com.br

Flavia Boni Lichti: flaviaboni@via-rs.net

ii Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004 – regulamenta as leis nº 10.048, de 8/11/2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas com deficiência e/ou com mobilidade reduzida, e nº 10.098, de 19/12/2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência e/ou com mobilidade reduzida.

iii O Instituto Benjamin Constant foi criado no Rio de Janeiro, pelo Imperador D. Pedro II, por  Imperial n.º 1.428/1854, e inaugurado no dia 17 de setembro do mesmo ano com o nome de Imperial Instituto dos Meninos Cegos. Aos poucos, o Instituto foi derrubando preconceitos e mostrando não ser utopia a educação e a profissionalização das pessoas cegas. Hoje, o Instituto Benjamin Constant é um centro de referência nacional para questões da deficiência visual. (http://www.ibc.gov.br).

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