A Semana - Opiniões
12/4/2004 - A polêmica em torno do filme “A Paixão de Cristo”
“Quero um amor maior, amor maior que eu”
Nove em cada dez pessoas que assistiram ao filme “A Paixão de Cristo” com quem tive a oportunidade de conversar procuravam, a todo o custo, justificativas que explicassem os motivos que as levavam a considerar os judeus ou os romanos como culpados pela morte de Jesus. A procura da culpa foi o principal foco da grande maioria dos espectadores. Poucos se lembraram de comentar os motivos que levaram a seqüência apresentada no filme a ser conhecida como “paixão” de Cristo.
Reconheço que foi uma das seqüências mais sangrentas que já tive a chance de assistir nas telas de cinema. Destaco também que em alguns momentos do filme tive vontade de fechar os olhos em virtude do intenso e cruel martírio a que foi submetido Jesus. Em tantos outros meus olhos se encheram de lágrimas e sofri com as chagas e com toda a dor de Cristo e de sua mãe, Maria.
Confesso que como católico atuante me senti ferido e tive, em alguns momentos, o ímpeto de procurar os responsáveis por todo aquele cruento acontecimento. Não consegui. Fiquei magnetizado por um outro aspecto, de meu ponto de vista muito mais relevante, apesar de desprezado (ou colocado em segundo/terceiro plano) pela maioria dos espectadores: a paixão contida na atitude do Cristo.
Como definir paixão senão como aquele sentimento arrebatador que nos captura e nos eleva aos níveis da insanidade ou do sonho intangível que de repente parece possível, totalmente ao nosso alcance? Quando estamos apaixonados viramos de cabeça para baixo, nos transformamos, queremos a todo o custo fazer com que a pessoa pela qual nos apaixonamos perceba, valorize e responda a nossos sentimentos. Somos capazes dos maiores sacrifícios em favor do alvo de nossa paixão/amor...
Todos conhecemos casos de amigos, parentes ou mesmo desconhecidos que fizeram de tudo para atingir a pessoa amada. Todos somos capazes de contar histórias incríveis de devoção, de entrega, de arrebatamento causadas por uma grande paixão/amor. Todos sabemos que a maior de todas as histórias relativas à paixão conhecida (ao menos no ocidente cristão) nos é contada e recontada, ano após ano, na Semana Santa.
É verdade que com o passar dos anos a reciprocidade a essa paixão diminuiu. A intensidade do amor demonstrada pelos cristãos em relação a seu salvador, Jesus Cristo, tem diminuído. As demonstrações podem ser vistas nas notícias que fazem as principais manchetes de jornais do Brasil e do mundo todo. A violência tomou conta do planeta Terra há muito tempo (e não só por conta dos Cristãos, mas de toda a humanidade).
Deixamos de fazer do amor a nossa principal bandeira, apesar de Jesus. Temos uma relação de maior proximidade com a desconfiança, com a intriga, com a violência e com o medo. Talvez por esse motivo a maior parte das pessoas continue procurando a culpa pela crucificação de Jesus no filme de Mel Gibson.
Ao atribuirmos a culpa a romanos ou judeus (que diferença isso pode fazer?) parece que queremos nos livrar de nossa responsabilidade pelo fato. Cristo foi morto pela humanidade, por nossos defeitos, por nossa falta de compromisso com suas palavras, com sua dignidade, com sua mensagem de paz e de amor.
Ao procurarmos nos judeus ou nos romanos a responsabilidade pelo sofrimento e aniquilamento de Jesus continuamos fazendo aquilo que deveríamos ter parado de fazer em virtude do sacrifício do filho de Maria em nosso favor, estimulamos a continuidade do ódio, da insensatez e da dor...
A mensagem não parece ter sido clara apesar das lágrimas de Maria e do sangue derramado de Cristo. Passados quase dois mil anos daquele acontecimento e tendo a humanidade vivido muitos outros momentos de horror e sacrifício (guerras, epidemias, ciclos regulares de fome,...) esperava-se mais...
Não incorporamos a capacidade de perdoar. Não aprendemos a ser irmãos. Não sabemos dividir. Não conseguimos partilhar com justiça o pão. Não acolhemos. Não abraçamos. Não amamos como deveríamos. Estamos distantes da paz, estamos distantes de Cristo...
O que fazemos com aqueles que pregam em favor do entendimento? Temos ouvidos para os homens que ousam falar em amor? A intolerância e a incompreensão são combustíveis que alimentam explosões e ódio em várias partes do mundo. Nos tornamos insensíveis e indiferentes a pobreza, a solidão, a dor e a fome. Vemos crianças nas ruas, idosos abandonados a sua própria sorte, dinheiro público sendo utilizado em favor de poucos quando poderia estar ajudando milhares de pessoas...
Apesar disso ainda tenho fé. Continuo acreditando que existem inúmeras pessoas imbuídas das mensagens contidas na crucificação. Vejo-as como a ressurreição, como o fruto verdadeiro e autêntico da Páscoa.
Percebo a força das palavras de Cristo na ação das ONGs que estimulam a educação, acolhem as crianças largadas nas avenidas e nos guetos das principais cidades do mundo, valorizam a 3ª idade e toda a sua experiência, cuidam dos doentes das guerras, tentam salvar a natureza, prezam a ética ou estimulam a cultura e os esportes.
Vejo a força da mensagem da Semana Santa nas pessoas que todos os dias, anonimamente em seus trabalhos, em suas famílias, nos trens e ônibus das grandes e pequenas cidades, na lavoura ou que através de gestos, palavras e atitudes perpetuam a sinceridade, o carinho, a proximidade e a compaixão.
Temos que promover, com toda a nossa força e caráter, todos os dias, em cada momento de nossas vidas, a presença de espírito, a verdade, o amor e a paz, a dignidade e a coragem percebidas no exemplo de Cristo e de Maria.
Não tenho a intenção de converter ninguém a minha fé, a minha igreja. Respeito as demais crenças e peço aos outros que as respeitem. Tudo o que peço é que as palavras e atitudes de Cristo sejam as principais lições de sua vida para todos e não que suas feridas e todo o sangue por ele vertido em nossa defesa (mostrado de forma veemente e inconteste no filme “A Paixão de Cristo”) se tornem objeto de novas intrigas, de mais confusão, de diferenças e mais brigas.
Vejo o filme de Mel Gibson como um momento para reflexão. Fomos salvos por um grande, um enorme sacrifício, toda a violência apresentada ao longo da projeção de “A Paixão de Cristo” nos mostra isso e, ao nos chocar, ao provocar nossas lágrimas e indignação, ao nos fazer procurar a culpa, deveria nos fazer enxergar os nossos erros e permitir que possamos rever nossos próprios passos. Temos que redirecionar nossas energias para a busca da paz e da salvação.
É hora de buscar um “amor maior, maior que eu”, maior que você, muito maior que todos nós. Só assim conseguiremos viver a paixão de Cristo pela humanidade. Só assim seremos verdadeiramente dignos de todo o sacrifício de Jesus e das lágrimas de Maria...