Aprender Para Sobreviver
Relato de Estudo de Caso de Aluno Robson
Robson apareceu na minha terceira série no final do
mês de abril, quando já era quase maio, vindo da
Bahia.
Minha colega, vizinha de sala, ao perceber-me recebendo um
“presente” (maneira como nos referíamos
a cada aluno novo que recebíamos), fez logo um mau
prognóstico:
– Aluno novo a esta altura do ano? Em geral, é
problema na certa.
Não apreciei a observação de minha
parceira, mas fingi com uma brincadeira qualquer em resposta.
Robson era sim, um “problemão”: em
contato com o material escrito, revelava um desconhecimento total.
Entre ele e a leitura havia se instalado um abismo
intransponível.
Solicitei à diretora que me proporcionasse um encontro com a
mãe. E ela veio com um bebê no colo e outra
criança sendo puxada pela mãozinha, tentando
equilibrar uma bolsa enorme sobre os ombros.
Ao elogiar os dois filhos, revelou-me, um tanto constrangida, que tinha
ainda mais dois em casa, fora o Robson.
Procurei não demonstrar-lhe o meu espanto e busquei logo
descobrir se Robson tinha irmãos mais velhos, o que me
indiciaria a presença ou não de problemas de
alfabetização na família.
Sim, Robson tinha dois irmãos mais velhos, os quais, como
ele, não tinham conseguido se alfabetizar.
Aquela mãe me fez revelações muito
tristes sobre sua vida sofrida, mas, na verdade, o que me entristeceu
mais foi o seu desencanto com a escola e as graves
acusações que fez contra ela:
– Sabe, professora, meus meninos não aprenderam
porque nem eu e nem o pai deles “temos leitura”...
Então, a gente não tem como ajudar nas tarefas de
casa, tomar a tal tabuada, que a gente nem sabe direito o que
é. Nas reuniões da escola, a gente leva muito
“pito”, passa vergonha no meio dos outros, mas a
gente sabe que não tem culpa. Eu até que falo
“pros moleques” fazer a tarefa, estudar o que a
professora mandou, mas eles não sabem ler, como é
que vão fazer? Eu até nem tenho vindo mais nas
reuniões, porque eu só passo desgosto. Mas da
senhora eu tive uma impressão muito boa, e por isso criei
coragem para vir até aqui.
Senti-me desarmada: eu estava diante de um caso em que a pobreza
(moral, intelectual e material) estava destruindo a vida de cinco
crianças, com o apoio explícito da escola como
instituição.
Ao exigir que aqueles progenitores analfabetos fossem responsabilizados
diretamente pela alfabetização dos filhos, a
escola se coloca no papel mais covarde do sistema que é o de
reproduzir as desigualdades sociais.
Robson era triste e retraído, mas nunca indisciplinado,
aliás, tinha medo até dos próprios
colegas.
Decidi que faria Robson reagir contra aquela injustiça e que
sua história haveria de ser mudada.
No começo, Robson vinha para a escola muito feio,
às vezes sem banho, e outras com a roupinha suja.
Escondia-se na sala e fazia de tudo para não ser notado.
Então, passei a fazer de tudo para que Robson fosse notado:
– Robson, por favor, leve esse papel até a
secretaria e entregue à funcionária fulana de tal.
– Robson, apague a lousa, sim?
Robson passou a “aparecer” em tudo o que acontecia
na classe.
Os colegas, a cada dia que passava, começavam a se
simpatizar com ele, não implicavam mais com sua fala
arrastada de nordestino, e a aprendizagem começou a aflorar.
Eu começava a colher os primeiros frutos daquela batalha.
Robson começava a vir mais arrumado para a escola e seu
caderno estava cada vez melhor.
Eu lhe dava tarefas para fazer em casa, mas sempre atividades que ele
pudesse dar conta de desincumbir-se sozinho.
Eu queria que a mãe sentisse que seu filho crescia e que a
sua desabilidade com a língua não representava
mais fator de entrave ao desenvolvimento dele.
Um dia, Robson levou um poema bem curtinho para copiar em casa numa
folha ilustrada por ele em classe.
Ele tinha o poema memorizado e, dessa forma, pôde
“ler” para a mãe, que veio no outro dia
me contar que o menino “estava aprendendo a ler”.
Senti nela uma alegria que transbordava no brilho de seus olhos.
Eu estava fazendo a mãe e o filho crescerem a um
só tempo.
Fiquei impressionada com o sucesso da estratégia da
memorização que tomei como norma sempre utilizar
algum trecho memorizado, para fazer Robson vencer o terrível
medo que tinha da leitura.
De repente, sem que ele estivesse esperando, eu o desafiava:
– E onde está escrito tal palavra?
Ele corria o dedinho na leitura e exibia triunfante a resposta que lhe
era solicitada.
No final do ano, embora não lesse com a mesma desenvoltura
que seus colegas, devido à sua defasagem de aprendizagem,
Robson se apossara da chave do sistema alfabético da escrita
e da leitura.
Um dia, quando já estava na 7ª série,
disse-me sorrindo:
– Sabe, professora, acho que aprender a ler não
é tão difícil assim. Eu tinha medo
à toa! Sabia que já estou até
ensinando minha mãe a ler?
Tive vontade de lhe dizer que estava me ensinado também, que
aquele “problemão” que Deus havia
atirado no meu colo, na verdade, tratava-se de uma poderosa
lição de vida, que havia chegado até
mim por intermédio de uma pobre família
injustiçada.
Foi assim que aprendi a apostar nas dificuldades para poder
alcançar o verdadeiro sabor da vitória.
Obrigada, Robson!
Maria
Tereza da Silva Sardinha do Prado
é Professora de Educação
Básica I, aposentada desde 2007; Habilitada em Pedagogia
pela PUC-SP em Educação Infantil e Fundamental
Ciclo l; Credenciada no curso
“Alfabetização Teoria e
Prática à Distância” pela
CENP; Formada pelo MEC (PROFA – Programa de
Formação de Professores Alfabetizadores) sob a
consultoria de Regina Câmara e Telma Weiss; Formada pela CENP
no curso “Letra e Vida” (consultoria de
Kátia Lomba Bräkling e Yara Prado); Fez curso de
Formação de Coordenadores de 1ªs a
4ªs séries, ministrado pela FDE e curso de
Parâmetros Curriculares Nacionais em Matemática,
ministrado pela Secretaria Municipal de Arujá; Trabalhou
também no Projeto Pedagógico para orientar toda a
Rede de Ensino Municipal de Igaratá, destinado a Professores
e Coordenadores da Rede.