Diário de Classe
Sobre transgressões e pendências
Marcelo Cunha Bueno
Transgredir é afirmar! Essa possibilidade de ser e não ser, de entender e não entender... Esse espaço de indeterminâncias.
Um espaço repleto de possibilidades de sentidos, significados e representações daquilo que vai se constituindo como certo e errado.
Uma transgressão vale mais do que uma obediência... pelo menos para aquilo que chamamos de entender as regras e combinados.
Estamos sempre à espreita de uma indisciplina, sempre à espera de um passo errado para fazermos valer a nossa força, o nosso poder.
Já pensaram como os adultos se relacionam com as crianças de forma ressentida?
Já pensaram que os adultos, depois de terem feitos milhares de combinados, explicando regras, impondo ideias, esperam que as crianças os obedeçam sem que ao menos testem os combinados? Vale pensar nisso.
Para entender uma regra, é preciso jogá-la nas variáveis de tempo e espaço. É preciso colocá-la em cheque, transgredi-la...
E não é exatamente isso que a criança faz?
O adulto, em vez de dizer “meu caro, essa regra continua valendo mesmo nesse espaço, nessas condições climáticas e com essas pessoas”, ressente-se e educa seus infantes para um mundo repleto de ressentimentos, com um espírito pouco nobre, escravo dos excessos das condutas morais de um mundo que não espera e nem respeita o tempo que temos para resolvermos as nossas pendências.
Certa vez, em uma reunião de familiares, escutei uma mãe dizer que as crianças não têm tempo de resolverem as suas pendências.
Resolver pendências significa assimilar ideias, entender posições e disposições do outro, perceber e fazer valer a ideia do coletivo.
Fico pensando o quanto a escola também contribui para que esse tempo de resolver pendências aconteça.
De fato, o excesso de obrigações, regras e rapidez nas respostas afastam a possibilidade das crianças e dos adultos experimentarem os acontecimentos de forma a fazer com que os mesmos nos transformem. Impomos diversas formas de se comportar, despejamos toneladas de conteúdos e impedimos que as crianças pensem a respeito.
Não deixamos que as mesmas resolvam suas questões com eles... Internalizem, experimentem, transgridam para decidirem como e se vão aproveitá-los.
Sem tempo para resolverem as suas pendências, as crianças perdem a oportunidade de atribuir sentidos, de fazer valer a sua cultura e a sua forma de ver e de se relacionar com o mundo.
Sem tempo para resolverem as suas pendências, as crianças não se aproximam da experiência, essa que dá música à vida...
Resolver pendências é deixar as crianças pensarem sobre o que lhes acontece e lhes tocam.
Resolver pendências é fazer com que a criança experimente as variações de uma mesma regra, de um combinado. Resolver pendências é deixar um tempo correr. Nada é para ontem!
Muitas vezes, escuto de professores um discurso que cobra da criança uma postura que só é possível se a mesma se vestir de adulto. Não que haja uma forma de ser criança, mas há muitas de ser adultos.
A criança, justamente por não ter tido tempo para resolver as suas pendências, des-mente, des-diz, des-faz, des-compõe, des-constrói.
Isso não significa que ela não é obediente, mas que está afirmando os nãos, transgredindo o sim para significá-lo.
As famílias cobram uma mudança radical depois de colocarem as regras. As crianças não funcionam assim. Precisam provar esse novo elemento antes de usá-lo de dizer que o entendem.
Nesse sentido, a transgressão é a única forma de resolverem as suas pendências. Eu acredito que a escola, mais do que um espaço disciplinar, isso é verdade, é um espaço de transgressões.
É a possibilidade de a criança experimentar de forma mais arejada as relações com as outras crianças, com os adultos, com o espaço e com o mundo!
Uma transgressão que nada se parece com a bandidagem, vadiagem, como muitos podem pensar...
Gostaria de ver um espaço de transgressão entendido como espaço de entendimento, de partilha, de coletividade e de criação.
Espaço de afirmação daquilo que pretende ser nosso. Toda criação é um pouco de transgressão.
Transgressão que faz escapar do previsto, que faz a regra se repensar, se recriar.
E existe coisa mais generosa do que isso? Por uma transgressão generosa!
Fico pensando que, se nos livrarmos dessa pressão, dessa insistência pela obediência, pela regra, poderemos criar uma relação menos rigorosa, mais generosa, mais arejada, mais atenta e cuidadosa...
Esse afeto que afeta, que dispõe uma relação verdadeira. Um professor que entende que uma criança está em uma outra relação com o tempo e com o espaço é um professor que educa de forma mais generosa. Que entende que educação é uma relação, não uma imposição.
Um professor livre do ressentimento da educação do “deve ser assim”, “é assim que se faz”, abre caminhos para que as crianças vivam as dinâmicas infantis de forma mais linguajadora, mais brincante, dançante, musical, com tempo e espaço para resolverem as pendências que ficam no nosso caminho, no nosso aprendizado.
Transgredir não significa desobediência, desordem, sacanagem da criança, mas que ela está tentando entender e precisa do adulto para dizer, uma e outra vez, que ela está lá, todos os dias...
Quando o adulto dá broncas, irrita-se com a insistência de des-fazer os combinados, afasta-se da criança... e da regra, que só existe porque há espaços para transgressões.
Isso não é uma ode à bagunça, mas um apelo para entendermos o que passa com uma criança quando desobedece o estabelecido.
As regras existem para serem vividas... e toda transgressão é a possibilidade de entendermos as regras.
Nesse caminho de encontros e desencontros, podemos afirmar que educar é também uma forma de transgredir!
Marcelo Cunha Bueno é Coordenador Pedagógico da Escola Estilo de Aprender. Contato: marcelo@estilodeaprender.com.br. Blog: http://marcelocunhabueno.blogspot.com.br/