Cinema na Educação
O discurso do Rei Bertie
Lucio Carvalho
Para Rita Bersch: Vencedor dos principais prêmios do Oscar de 2011, "O Discurso do Rei" não é uma parábola sobre majestades e superação, mas uma história baseada em fatos da vida pessoal do Rei George VI (vivido nas telas pelo inglês Colin Firth) e de como, com o apoio de um terapeuta forjado na experiência de ajudar pessoas traumatizadas pela I Guerra Mundial, pôde contornar o problema da gagueira e fazer o que sempre lhe parecera inatingível: discursar ao povo.
Durante toda a II Guerra Mundial e sob os bombardeios alemães, George foi fonte fundamental na resistência inglesa e seus discursos, propagados nas ondas da BBC, serviram de conforto ao povo e motivação aos soldados ingleses durante todo o período de confronto.
Quem
assiste ao filme pode custar a aceitar que isto tenha mesmo acontecido,
dada a dificuldade imposta pela sua gagueira, mas ali mesmo
está a explicação de como isto veio
efetivamente a acontecer.
O personagem interpretado pelo veterano Geoffrey Rush, Lionel Logue,
é a chave desta explicação. Depois de
tentar inúmeras abordagens terapêuticas
disponíveis, é a esposa do rei, Elizabeth, vivida
por Helena Bonhan Carter, quem o convence a tentar uma vez mais.
O
primeiro encontro do então Duque de York com o terapeuta
é uma cena impressionante e inesquecível e ali
revela-se que, muito mais que um terapeuta de fala, o futuro rei
está diante de uma pessoa capaz de percebê-lo em
sua initimidade e, por isso mesmo, alguém que não
quer simplesmente testar um conjunto de técnicas, mas que
está disposto a compreender a dimensão de seu
problema e ajudá-lo, pois mesmo um rei, apesar do mito
onipotente que cerca o título, pode precisar da ajuda dos
outros.
No auge da trama, quando Bertie, como o Rei George era tratado na
intimidade (Lionel também o tratava exclusivamente por
Bertie), precisa assumir o trono, para o qual julga-se inapto, todo o
país fica em suspenso diante da suspeita de que o Rei se
confirmará como incapaz de dirigir-se ao povo, como requer
seu título.
A legitimidade de sua autoridade moral é questionada em razão de sua dificuldade com a fala e, no filme, o clero, representado pelo Abade de Westminster, parece decidido a confrontar o poder temporal, desqualificando aquele terapeuta não "credenciado" pelas universidades inglesas.
George,
já Rei e consciente de sua limitação,
não abre mão da ajuda que necessita e, pela
confiança obtida pela relação com
Lionel, é aclamado exatamente por aquilo para o qual estava
decretada a sua incapacidade: o discurso.
"O Discurso do Rei" não é, em hipótese
alguma, um mero elogio aos fonoaudiólogos como já
foi escrito. Mas é esclarecedor quanto à
dimensão que um trabalho terapêutico pode tomar na
vida de uma pessoa com dificuldades ou deficiências.
Tal dimensão, entretanto, não se dá pela mera aplicabilidade de técnicas e expedientes, mas pelo reconhecimento mútuo que, estabelecido entre terapeuta e paciente, permite que até mesmo as dificuldades sejam contornadas, a partir do respeito entre as possibilidades de ambos.
Onde
soluções clínicas e médicas
muitas vezes mostram-se ineficazes, é o trabalho persistente
de terapeutas, fonoaudiólogos, fisioterapeutas e tantas
outras especialidades que resultam em
transformações sensíveis e duradouras
para as pessoas que necessitam de apoios especiais, mesmo em se
tratando do rei da Inglaterra.
A fala de um rei pode estar afetada, como no caso do Rei George, mas
é essa combinação de
atenção e desafio, que com competência
notável seu terapeuta lhe dedicou, a chave capaz de
restaurar a confiança em si mesmo e em sua capacidade
expressiva, tantas vezes posta em dúvida.
Muito antes que o povo ou a nobreza ateste esta capacidade aclamando-o plenamente, como no primeiro discurso feito no princípio da II Guerra exibido no filme, o rei Bertie pode descobrir-se autêntico.
Bertie (quanta intimidade!) precisou que muitos médicos falhassem e que uma última tentativa lhe restaurasse o mínimo de confiança para não desistir. Por sua própria natureza, a confiança não é uma técnica, mas um sentimento.
Como sentimento, não pode ser ensinada, apenas fomentada e cultivada. Até deixar de ser tratada como uma impossibilidade, a gagueira do Rei George quase lhe exterminou o desejo e a estima.
Mais que um encontro entre terapeuta e paciente, "O Discurso do Rei" é o encontro entre dois homens que aprendem a partilhar confiança. Pela história, sabe-se que Bertie e Lionel foram amigos para o restante de suas vidas. É claro, precisamos assistir a filmes assim para lembrar que a confiança também é chave para a amizade duradoura.
Fonte: http://www.inclusive.org.br/?p=18664 - Lucio Carvalho é Coordenador da revista Inclusive: inclusão e cidadania (www.inclusive.org.br) e autor de Morphopolis (www.morphopolis.wordpress.com)