Aprender com as Diferenças
Atividades de Vida Diária
Um processo de emancipação
Hoje em dia, ainda é bastante frequente ouvirmos que a pessoa com
deficiência visual, pelo fato de não enxergar ou ter sua visão reduzida,
está impedida para a realização de atividades básicas e tarefas de
pequena ou média complexidade presentes no cotidiano de todos nós. Este
conceito generaliza-se e toma proporções mais acentuadas de acordo com a
idade, o gênero, o grau visual e a existência ou não de outros
comprometimentos associados.
Consideradas não apenas limitadas, mas especialmente impedidas, as
pessoas cegas ou com baixa visão passam a ser alijadas de vivências e
experiências diárias. Com esta atitude, o outro social desconsidera suas
possibilidades e capacidades funcionais e legitima para a pessoa com
deficiência visual a estruturação de uma passividade perigosa para o
desenvolvimento de sua personalidade de forma sadia e independente, pois
esta pode tornar-se refém da vontade e do julgamento dos seus pretensos"cuidadores".
Ancorada na fantasia e no mito da incapacidade, tecidos culturalmente
pelo desconhecimento e pela falta de bom senso, dois fenômenos se
estabelecem: a escravização, mútua ou não, das pessoas que enxergam para
o cumprimento dos anseios, desejos e necessidades de quem não enxerga; a
vinculação da deficiência visual a outros comprometimentos ou distúrbios
imaginários que somente existem porque persistem o comodismo e a
carência de estímulos, incentivos e informações para a aprendizagem da
autonomia e da independência.
Neste artigo, a intenção é justamente trazer ao conhecimento e à
reflexão um processo de emancipação chamado Atividades de Vida Diária,
apresentando-se razões para a sua adoção e seu uso pelos protagonistas
desta aventura e desafio de viver a vida de um modo diferente.
Atividades de Vida Diária - que processo é este?
Este processo diz respeito a uma série de conteúdos, técnicas e
metodologias que proporcionam, em um determinado tempo, o
desenvolvimento e o refinamento de habilidades intelectuais, emocionais,
manipulativas e sensoperceptivas necessárias para a solução de problemas
e de situações práticas e rotineiras enfrentadas inevitavelmente pelas
pessoas durante a vida.
As Atividades de Vida Diária (AVDs) abrangem:
- a mobilidade funcional (deslocamentos significativos em ambientes
restritos e amplos, uso de escadas e elevadores, organização de mapas
mentais, localização no espaço, ...);
- os cuidados pessoais (higiene, vestuário, medicação, hábitos
comportamentais, ...);
- a comunicação funcional (leitura, escrita, compreensão de textos e
conversas, solicitações, ...);
- a expressão sexual (conhecimento e manifestação dos sentimentos,
informação e administração das manifestações da sexualidade e da sensualidade,
comportamentos e atitudes de prevenção, ...);
- a administração doméstica (preparo de alimentos, organização e limpeza
da casa, abastecimento, segurança doméstica, reparos domésticos, ...);
- a capacidade para a vida em comunidade (relacionamento com parentes,
amigos e colegas, preparação de encontros e festas, recreação conjunta,
trabalhos cooperativos, ...);
- a administração de tecnologias assistivas (uso dos talheres, de
tesouras e agulha, do telefone, do gravador, do rádio, do computador, ...);
- administração de dispositivos ambientais (uso de ferramentas e
instrumentos de ação sobre o ambiente, consertos básicos, ).
O desenvolvimento de um programa em Atividades de Vida Diária não
significa a profissionalização da pessoa cega ou com baixa visão para o
desempenho de uma determinada tarefa, pois a sua realização está muito
mais relacionada ao saber como executar uma ação ou experiência do
cotidiano do que ao seu conhecimento de um saber acadêmico. Com esta
perspectiva, torna-se muitas vezes suficiente a transferência do conhecimento do grupo
familiar, de amigos ou professores sobre um conteúdo a ser compartilhado
com a pessoa com deficiência visual, tal como no caso de vestir-se,
tomar banho, preparar um lanche rápido, arrumar a cama, acender o fogão,
por exemplo. . No entanto, há situações em que este saber fundamental
pode ser disponibilizado por um profissional especialista em uma
determinada função como, por exemplo, um eletricista, um jardineiro, um
encanador, uma costureira, um professor de Orientação e Mobilidade.
Razões para a adoção e uso do programa de Atividades de Vida Diária
O ensino e a aprendizagem da maneira de realizar e resolver efetivamente tarefas
rotineiras ou eventuais pela pessoa com deficiência visual trazem, não
somente para si, efeitos benéficos que ultrapassam as fronteiras do
presente e do físico, mas abarcam o futuro e suas (re)ações afetivas,
emocionais, intelectuais e sociais. Entre tantas e tantas razões que
justificam a existência e a aplicabilidade deste processo, é possível
destacar como chaves motivadoras os seguintes pontos:
1. Aquisição da autonomia;
2. Desenvolvimento de habilidades e papéis sociais;
3. Mudança de hábitos e do próprio estilo de vida;
4. Busca da solução de problemas e de situações do cotidiano;
5. Veiculação e articulação dos conteúdos pedagógicos desenvolvidos na
escola ou em outros ambientes acadêmicos, facilitando sua compreensão e
assimilação;
6. Elevação da autoestima e redução do isolamento social;
7. Redução ou rompimento de mitos sobre a passividade e acomodação da
pessoa cega ou com baixa visão;
8. Fortalecimento do sentimento de eficiência, eficácia e competência;
9. Estabelecimento de relacionamentos fundamentados na afetividade e não
em situações de dependência ou conveniência e
10. Rompimento do fenômeno de escravização do outro social, tornando-se
a satisfação de alguma necessidade da pessoa com deficiência visual uma
opção e não uma imposição.
Deste modo, é de fácil compreensão que os conteúdos e informações
desenvolvidas em Atividades de Vida Diária, de maneira (in)formal ou
ludica, podem trazer a todos profundas e diversificadas contribuições
nos diferentes aspectos da constituição do ser como ser humano.
A atribuição ou não de importância para a participação neste programa e
processo representa, entretanto, uma ação iniciada a partir da decisão
tomada pelas pessoas envolvidas pelos efeitos e consequências da
deficiência visual e não tão-somente pela própria pessoa cega ou com
baixa visão, quando esta vive e convive em um grupo. Contudo, é sempre
importante que esta decisão individual ou coletiva seja o resultado de um
sentimento genuíno de emancipação e da vontade sincera de enfrentamento
das dificuldades para o crescimento humano desde a infância até o término
da velhice.
Disponível em:
http://www.diversidadeemcena.net
Escrito por Sonia B. Hoffmann.