Diário de Classe
Do que depende a sobrevivência da leitura?
Lúcio Carvalho
O
término da 21ª Bienal do Livro de São
Paulo mais uma vez colocou em evidência um espectro que ronda
o mercado editorial e o universo de leitores já
há alguns anos: o fantasma do livro digital. É
bom lembrar, antes de mais nada, que um fantasma não
é essencialmente uma entidade maléfica, assim
como não o é, em essência, o livro
digital, ou e-book.
Mas algumas leituras muito apressadas e propagandas mais apressadas
ainda têm causado reações
precipitadíssimas, para o bem ou para o mal, mas, sobretudo,
por uma compreensão parcial de tudo o que envolve o livro
digital, o próprio livro, a leitura e até mesmo a
educação como ela é, pois ainda
trata-se da principal fonte de formação de novos
leitores.
Muitas pessoas têm confundido o conceito de livro digital com
os aparelhos leitores, ou e-readers.
Ao contrário do livro convencional, vendido em exemplares
únicos, o livro digital tem outra forma de
distribuição que, depois de adquirido,
poderá ser lido nos aparelhos leitores, equipamentos
portáteis capazes de reproduzir o conteúdo
escrito, seja qual for o seu gênero, em telas com tecnologias
diversas e alguns outros recursos como conexão remota a
redes, internet, entre outros.
Portanto, o livro digital não é um livro, é meramente um conjunto digital de dados decodificado e exibido em um equipamento. No plano comercial, os aparelhos leitores não estão atrelados a editoras, mas a empresas de tecnologia que podem arbitrar formatos tecnológicos específicos e proprietários impedindo, inclusive, que um determinado conteúdo possa ser lido em qualquer outro dispositivo que não aquele através do qual foi comercializado. Diferentemente dos volumes impressos, cujo suporte é único, os livros digitais trazem à seara da informação escrita um fantasma ainda muito pouco conhecido no meio editorial, mas que tem poderes muito significativos.
O
fantasma atende por DRM, ou digital
rights management, e
já se revela mesmo que disfarçadamente em muitos
destes equipamentos, principalmente nos mais vendidos entre eles: o
Kindle, da Amazon e o iPAD, da Apple.
DRM e o futuro dos
direitos autorais
De acordo com a Free Software Foundation, o DRM seria mais
apropriadamente denominado por digital
restrictions management, uma
vez que sua funcionalidade está muito mais para a
gestão das restrições de uso do
conteúdo digital do lado do usuário que do
fabricante. Trata-se de parâmetros inseridos nos
conteúdos digitais com capacidade para coletar dados do uso
bem como determinar padrões de durabilidade, acesso a
cópias e intercâmbio de formatos. Desenvolvido
inicialmente por demanda dos fabricantes e distribuidores de
música, é um tipo de tecnologia utilizada na
transferência de vários tipos de
conteúdo digital, inclusive na transmissão
televisiva em formato digital.
Ao passo em que muitos avanços e iniciativas têm
ocorrido em função de ampliar e não
restringir os direitos do lado dos consumidores e a sociedade tem
procurado garantir o acesso universal à
informação, principalmente em ambientes
educacionais, o mercado editorial tem se movido fundamentalmente em
torno das iniciativas que podem lhe garantir a sobrevivência
e sustentabilidade.
A discussão recente em torno da reforma da Lei de Direitos Autorais e os interesses que aí têm se debatido comprovam que muitos rounds serão travados no sentido de deitar à lona as possibilidades concretas de um avanço num curto espaço de tempo. Como o movimento de livre distribuição e licenciamento não deixa de crescer, é de esperar que o mercado venha obrigatoriamente a reconfigurar-se em função do novo habitus de acesso à informação, e não vice-versa.
A
novíssima sociedade da informação, que
se acostumou a ver na informação e em sua
circulação um mercado a ser explorado tem
necessitado redimensionar-se constantemente, sob pena de inadequar-se
aos novos meios de troca e acesso que são criados de forma
incessante.
Consumidores no lugar de
leitores
Criadas como peças fundamentais na geografia urbana das
cidades desde antes da idade moderna, as bibliotecas
públicas encarnam desde então um
espírito democrático como poucos
espaços públicos têm conseguido. Seja
pelo acesso franqueado como por suas características
elementares, como o empréstimo domiciliar, seria muita
ingenuidade imaginar que as corporações
empenhadas na criação de aparelhos leitores de
livros guardam esse tipo de preocupação ou,
acaso, seria imaginável que a Amazon ou o iTunes venham a
emprestar gratuitamente seus conteúdos digitais?
Por isso, a grande diferença entre os serviços de
bibliotecas públicas e o negócio dos
conteúdos digitais está em que a perspectiva
lucrativa aqui se instala em definitivo entre editores e leitores.
Mesmo as iniciativas de implantação de grandes
bibliotecas digitais, patrocinadas muitas vezes por gigantes
tecnológicos como HP ou a Google, não visam
alterar em praticamente nada as relações de
acesso ao conteúdo da informação. Sua
revolução está nos meios e na sempre
presente perspectiva de oferta de serviços comerciais
agregados.
Assim,
tais iniciativas assentam-se sobre obras em domínio
público ou criadas já dentro do
espírito de livre reprodução, como as
obras licenciadas através da Creative
Commons. Para novas
edições e conteúdos presentes e
futuros não há um projeto descrito ou
tão benevolente a ponto de imaginar-se que a
intenção edificante destas
corporações visa exclusivamente à
universalização do acesso à
informação.
Iniciativa pioneira e que se mantém há 40 anos de
forma voluntária, o Projeto Gutenberg
(http://www.gutenberg.org/) é o exemplo vivo de que
iniciativas não comerciais emperram em limites de
expansão por falta de investimento. Contando com donativos e
sem o apoio de grandes bibliotecas ou de seus consórcios,
mesmo assim guarda a semente de um plano ousado: reinventar em formatos
não proprietários o sonho de uma fonte livre de
consulta e leitura. Mesmo iniciativas que contam com o apoio do governo
no caso brasileiro, e destinado à pesquisa de ponta, como a
produção científica da
pós-graduação, patinam ainda em
dificuldades técnicas para levar a ideia de uma Biblioteca
Digital de Teses a ser popularizada entre
instituições menores, como faculdades do interior
do Brasil.
Em 2003, o jornalista Élio Gaspari já advertia
ironicamente que o único banco que não
dá certo no Brasil é o banco de teses. Passados
sete anos, nem o MEC nem a CAPES forneceram nem sequer uma
explicação remota acerca das razões
pelas quais o projeto mantém sem acesso ao
conteúdo integral e é realizado em separado a
outras iniciativas particulares de divulgação
científica. Talvez sejam razões semelhantes
às que levam a Google manter indefinidamente em
versão beta seu projeto Schoolar.
O que pode custar a ser percebida é a necessidade de
democratizar as fontes antes de fomentar-se o acesso e de o meio
acadêmico comprometer-se a dar o exemplo abrindo
mão de direitos comerciais e a sociedade, por sua vez,
desconsiderar propostas que visam o monopólio ou uso
terciário da informação, oferecida
como subproduto de iniciativas essencialmente comerciais.
Um desenho universal para
os e-readers
Reclamado principalmente pelas pessoas com deficiência
visual, que veem os livros em Braille sendo progressivamente relegados
às edições especiais e à
perspectiva de que novos recursos tecnológicos venham
possibilitar seu acesso a conteúdos de outra maneira
indisponíveis, os recursos de acessibilidade dos e-readers
são duramente criticados por esta parcela da
população. No Brasil, iniciativas como o MOLLA -
Movimento pelo Livro e Leitura Acessíveis no Brasil
(http://www.livroacessivel.org) são pertinazes na
denúncia de práticas editoriais
discriminatórias e realizam um trabalho que procura garantir
que o acesso à informação, como um
direito universal, seja efetivado através de compromissos
sociais que atendam às especificidades humanas como um todo,
como recomenda o conceito de desenho universal
. Nessa
perspectiva, tem chamado atenção quanto a algumas
dificuldades de uso dos e-readers, como a inacessibilidade das telas de
toque (touchscreen)
e incapacidade de conversão texto-áudio, fatores
limitantes do acesso por pessoas com deficiência visual ou
mobilidade reduzida.
Umberto Eco e a
obsessão terminativa
O semiólogo e escritor italiano Umberto Eco
lançou no começo deste ano o livro-entrevista
"Não contem com o fim do livro", no qual discute algumas
questões como a segurança de dados dos
conteúdos digitais, a fidedignidade e a história
da humanidade e seus registros. Em dado momento da entrevista, Eco
comenta que não entende as razões pelas quais se
iniciou o que ele chamou de "obsessão" pelo fim do
livro.
Para ele
os livros continuarão a existir porque não se
trata de uma experiência, mas de um produto com uma
credibilidade de 500 anos, ao passo em que os recursos
tecnológicos têm sido substituídos pelo
menos a cada cinco anos. No seu caso, diz que não trocaria
sua biblioteca por outra digital pela simples razão de que
nada o asseguraria de que as informações
estivessem disponíveis a qualquer momento e a salvo de bugs.
Uma leitura sem risco de bugs
ou perdas maiores para Eco continua a ser um privilégio
exclusivo dos impressos.
Do hipertexto à
hipoleitura
É possível que estas palavras, cada uma delas,
jamais sejam gravadas na celulose do papel, matéria-prima
dos impressos de um modo geral, sejam livros, revistas ou jornais. A
bem da verdade, nenhuma prova em rascunho para revisão
será impressa numa simples impressora doméstica.
Seu único registro estará no meio digital, no
código binário e na memória de quem,
ao lê-las, decida por utilizá-las em algum tipo de
raciocínio que possa somar ou contestar alguma
informação previamente assimilada. O registro da
informação é uma necessidade que a
capacidade de atenção e memória humana
exige. Na medida em que evoluiu, a humanidade foi criando mecanismos
acessórios para estes fins. Dicionários,
enciclopédias e outras formas sistematizadas de
informação que hoje convergem, aparentemente de
forma inexorável, para os recursos digitais.
A internet é formada essencialmente por recursos digitais
interconectados e multiplicados em uma desrazão. Muitas das
pessoas que afirmam tratar-se de bilhões de
páginas não erram, mas não acertam
jamais em saber o quanto de informação repetida
ou informação incompleta é armazenada
e acessada permanentemente. Por muito tempo soube-se que a
Bíblia e o Manifesto Comunista foram os livros mais
impressos do mundo. Hoje se sabe que muitas páginas da
internet superam este número em n vezes.
Por
muito tempo soube-se que quem lia o Novo Testamento ou o Manifesto
Comunista teriam conhecido a vida de Cristo ou as ideias centrais do
comunismo. Hoje é impossível saber o que todas as
pessoas que acessaram determinada página da internet, como a
página de pesquisa do Google, foram até
lá buscando, o que leram e o que conheceram efetivamente a
partir daí. A distinção fundamental
entre os exemplos supra são os suportes de
inscrição. No primeiro, o texto e a estrutura
convencional, circunscrita. No outro, o hipertexto e a estrutura
aberta, diametral.
Seria um tipo de limite absurdo imaginar um novo recurso
tecnológico capaz de fazer o processamento e
exibição de um texto e ao mesmo tempo
compartilhar uma conexão com a internet que não
contasse com esse tipo de recurso e que não tivesse por base
alguma forma derivada de hipertexto. Quando se pensa em dispositivos
capazes de ler o livro digital somente um purismo radical pensaria num
dispositivo que imitasse o livro em papel. Já houve quem
sugerisse que os e-readers
devessem inclusive emitir o odor produzido pelos ácaros,
para preservar-se a leitura como se tratassem de brochuras antigas.
São devaneios curiosos, mas que não interessam ao
principal, que é sobrevivência da leitura, apesar
das tecnologias.
Antes que o livro mudasse, a própria leitura mudou. Em uma
época marcada pelo exagero do uso da imagem, a palavra
está em decadência e o discurso fragmentado e cada
vez mais dissociativo. Mesmo assim, o desafio da leitura continua a ser
como uma busca por consistência no acesso aos bens culturais.
Maiores ainda são as dificuldades de concretizar uma leitura
on-line
porque há sempre uma forma de que anúncios
publicitários resolvam sacudir as telas de leitura e
inúmeras portas de saída convocando a
atenção do incauto leitor.
As
pessoas que estão atualmente preocupadas em saber qual
tecnologia vai consolidar-se em lugar do livro nos próximos
cinco anos poderiam parar de pensar um pouco em aparelhos e pensar mais
em como a leitura e seu acesso poderão ser garantidos e
ampliados a todas as pessoas porque, do contrário,
não haverá evolução a
encontrar neste processo, mas uma ainda maior
elitização do que a já existente.
* Bibliotecário, coordenador da revista digital Inclusive:
inclusão e cidadania (www.inclusive.org.br) e autor de
Morphopolis (www.morphopolis.wordpress.com).