Filosofando
Filosofia com crianças – Uma matéria perigosa?
Isabel F. Furini
O ingresso da filosofia no currículo do ensino fundamental coloca os educadores diante de um novo desafio: O que ensinar nas aulas de filosofia? Como tornar as aulas instrutivas e agradáveis? Que tópicos abordar? Estas e outras perguntas inquietam os educadores. Alguns ficam preocupados ante a possibilidade de que as crianças considerem os assuntos cansativos, alheios às suas necessidades. Os professores querem embarcar com sua turma na procura de novas descobertas, motivar os alunos. Fazê-las não só entender os princípios filosóficos, mas também participar das descobertas. Estimulá-las a gostar da reflexão.
As crianças podem filosofar?
Ao falar de filosofia para crianças ou em filosofia com crianças, muitas dúvidas surgem. O assunto é novo e empolgante. Alguns perguntam: As crianças estão capacitadas para aprender filosofia em sala de aula? Também poderíamos questionar o fato de as crianças estarem capacitadas para aprender disciplinas como matemática, português e ciência. E mais ainda, computação!
Se as crianças estão preparadas para navegar pela Internet, então, como não poderão iniciar-se na filosofia? Só é preciso cuidar da abordagem. Deve ser lúdica. Vejamos: uma criança não começa a estudar trigonometria, ela aprende os princípios da matemática, ou seja, primeiro ela aprende a contar até dez, depois até cem, aprende a somar, a subtrair, a multiplicar e a dividir. Mais para frente, será iniciada em cálculos complexos. O mesmo processo deve acontecer com o estudo da filosofia.
Não podemos subestimar as crianças! Elas nasceram na época da informática, da mídia, da globalização, um mundo diferente do nosso. Elas vão viver, crescer e trabalhar nesse novo mundo.
As
crianças podem aproximar-se da filosofia, como dizia
Aristóteles, pela admiração, pela
curiosidade. Os gregos se perguntavam: por que uma roseira tem folhas e
flores em uma estação e fica sem folhas em outra
estação? Por que existe o som e o
silêncio? De onde veio este universo?
Já Aristóteles assinalava que o
filósofo fica admirado por coisas simples, admirado ao
contemplar o crescimento de uma planta, o nascimento de uma flor, as
mudanças. Admiração é,
então, o primeiro estágio da filosofia.
Pestalozzi, o famoso pedagogo suíço (1746 - 1827), afirmou que a verdadeira educação só é possível cara a cara e coração a coração. É o educador quem pode estimular a capacidade de pensar, compreender e discernir dos alunos.
Filosofia para crianças ou com crianças?
Dizemos que o interesse pela filosofia para crianças ou pela filosofia com crianças está cada vez mais acentuado. Vejamos primeiro a diferença entre os dois conceitos. Alguns filósofos afirmam que filosofia para crianças tem uma conotação dogmática, de conhecimento que o professor dará ao aluno, enquanto a filosofia com crianças exprime um conceito mais moderno em que as crianças aprendem filosofando.
O filósofo francês Bergson afirmou numa palestra que podemos escutar falar horas e horas sobre a cidade de Paris ou ler sobre suas ruas, seus monumentos e sua gente e não teremos um conhecimento tão claro como se conseguíssemos caminhar durante meia hora pelas ruas de Paris. Assim é a filosofia. Não adianta procurar uma definição, temos que filosofar.
A frase “filosofia com crianças” está mais perto da opinião de Bergson de que filosofia se aprende filosofando. Assim, a metodologia das aulas não será baseada em datas e dados que podem ser decorados. O objetivo é criar a capacidade filosófica nos educandos. A capacidade de pensar, de questionar o mundo, de entender, de procurar novos caminhos.
Por exemplo, quando falamos da filosofia de vida de uma pessoa, queremos significar a soma de suas crenças, opiniões, suposições, ideias, pensamentos e ideais que orientam sua vida familiar, social ou profissional. Em outras palavras, as ações de qualquer ser humano estão orientadas pelas suas crenças, ideias e pensamentos, opiniões, suposições, sonhos, valores e ideais. Vejamos como caso prático o fato de aderir ao vegetarianismo. Por quê? Algumas pessoas pensam que é errado matar animais para comer. Esta é uma postura filosófica. A ação é deixar de comer carne. Se o professor tiver em sala de aula um aluno cuja família é vegetariana, ainda que ele não seja vegetariano nem simpatize com a ideia, deve respeitar e ensinar a turma a respeitar a escolha deste aluno, nesse caso, o vegetarianismo.
Entramos já num tema muito questionador, muito debatido pelos filósofos que é a liberdade de escolha. O tema é assustador para a maioria. Deixar os outros escolher suas vidas, é assustador, não é? Sartre dizia que o homem sente culpa porque não suporta o peso das próprias escolhas. E a liberdade de escolha é um assunto que pode ser abordado do ponto de vista da filosofia.
Uma aula de “sobrevivência”
O professor precisa deter-se e refletir calmamente sobre a formação dos alunos. Ele quer formar pessoas conformistas, obedientes ao sistema, incapazes de autodeterminação ou quer correr o risco de ensinar a pensar, a questionar e compreender o mundo?... Se quisermos um mundo melhor, evidentemente, precisamos de mudanças.
Um dos objetivos da filosofia é induzir os seres humanos, neste caso as crianças, a pensar por si mesmas. Talvez por isso os governos militares apagaram a Filosofia dos colégios... Nos anos 70, eu ainda morava em meu país e estudava filosofia em Buenos Aires, e como era época de governo militar, um dos professores nos deu uma “aula de sobrevivência”. Ele nos alertou: “Se por casualidade vocês chegarem a ser parados pela polícia, nunca digam que estudam filosofia. Filosofia é vista como matéria perigosa e filósofos são vistos como inúteis, improdutivos e rebeldes ao sistema. Se a polícia os pararem, digam que estudam psicologia. Psicólogos são considerados pessoas inúteis e improdutivos também, mas pacíficas”.
“Lembrem – continuou – se vocês são parados pela polícia ou pelos militares e dizem que estudam filosofia, com esta resposta vocês já reduziram pela metade as chances de sobreviver. Só ficará meia vida para vocês... Então, sejam inteligentes, vocês são estudantes de psicologia. E agora, meus futuros psicólogos, continuaremos com Platão.
A filosofia é perigosa?
Karl Jaspers (1883-1969), em seu livro "Introdução ao pensamento filosófico", fala que algumas pessoas acham a filosofia demasiadamente complexa e proclamam que a filosofia está além de seu alcance. Continua: “A filosofia é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar minha vida. Adquiriria outro estado de espírito, veria as coisas com uma claridade insólita, teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente”.
Filosofia em sala de aula significa que os alunos aprenderão junto à matemática, línguas e ciência, a arte de pensar. E é muito difícil manipular um pensador. Fácil é manipular uma pessoa que segue a opinião dos outros. Para Jaspers, isto assusta e faz as pessoas pensarem que a filosofia é perigosa.
Sabemos que pode acontecer exatamente o contrário, pois existe uma filosofia pacifista, existe uma filosofia que ensina os homens a ser fraternos. Mas filosofia torna o homem consciente, e este poder de pensar e questionar o mundo é assustador para algumas pessoas.
Jaspers culpava também os políticos que se descuidavam da verdadeira educação do povo: “Muitos políticos veem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão somente usam de uma inteligência de rebanho”.
Sem necessidade de criar pessoas revoltadas, a filosofia procura orientar para a formação do caráter dos indivíduos, nem conformistas, nem revoltados, simplesmente seres livres e capazes de exercer os direitos de escolha e autodeterminação.
A filosofia constitui uma fonte inesgotável de inspiração, nela podemos beber da sabedoria dos séculos. A filosofia ajuda a desenvolver o pensamento profundo, criativo e autocorretivo. Estimula a reflexão. Dá bases para compreender o mundo e questioná-lo de maneira inteligente.
O novo milênio chegou. Vivemos na época da “globalização” da Internet, da busca da qualidade total! É hora de perguntarmos onde fica o ser humano neste contexto. O ser humano com suas possibilidades, suas limitações, sua grandeza, suas fraquezas, seus sonhos e sua capacidade de conhecer o mundo e de ser feliz. É aí que o velho Sócrates volta às salas de aula e enfatiza: Conhece-te a ti mesmo! E Platão, desde sua Academia, ainda ensina a procurar o Bem, a Verdade e a Beleza.
Um mundo novo e um mundo melhor dependem, sobretudo, da educação das crianças. Diálogos, investigação, arte, contação de histórias, reflexão, teatro, poesia... Os educadores podem utilizar várias técnicas para tornar as aulas interessantes e educativas.
Se desejarmos mudanças que tornem as sociedades mais humanas, temos que aprender a questionar o mundo, os valores da nossa sociedade. A filosofia é um caminho para compreender e questionar.
Objetivos
A Filosofia no ensino fundamental tem por objetivo estimular as crianças a:
-
Participar em grupos.
- Dialogar.
- Entender a responsabilidade de pertencer a um grupo.
- Aumentar a autoestima.
- Aprender a ser tolerante com as ideias dos outros.
- Desenvolver a paciência e a compreensão com
aqueles menos favorecidos.
- Alargar a visão do mundo e a capacidade de questionar e de
investigar o mundo.
- Refletir sobre valores morais e éticos.
- Despertar para a apreciação da arte e da beleza
da vida.
Os educadores devem vivenciar com os alunos as atitudes de companheirismo e colaboração, hábito de leitura, diminuição de preconceitos, amor a si mesmo e aos outros, capacidade de diálogo e comunicação etc.
Lembremos
que a filosofia educa o intelecto e a emoção.
Não pode reduzir-se a fórmulas feitas. As aulas
de filosofia não são somente para lembrar que
Platão nasceu em Atenas em 427 a.C. e morreu em 347, nem que
foi discípulo de Sócrates. Além destes
dados que ajudam a entender como surge e se desenvolve a filosofia
ocidental, os alunos precisam ser estimulados a observar, a questionar,
a repensar o mundo. Filosofia é observar uma flor, observar
uma pedra, observar uma estrela no céu e perguntar-se: Quem
sou eu? De onde surgiu este universo? Filosofar é,
então, uma atitude espontânea.
Isabel F. Furini é educadora e escritora. Publicou
“Joana, a Coruja Filósofa” pela editora
Sophos de Florianópolis, em 2005, e a
coleção “Corujinha e os
Filósofos” pela editora Bolsa Nacional do Livro,
de Curitiba, em 2006.