Planeta Educação

Aprender com as Diferenças

Romeu Kazumi Sassaki 

Eufemismo na contramão da inclusão
Romeu Kazumi Sassaki

Citação bibliográfica: SASSAKI, Romeu Kazumi. Eufemismo na contramão da inclusão. Reação (Revista Nacional de Reabilitação), ano XIV, n. 74, maio/jun.2010, p.14-17.

Atenção: O texto publicado na revista traz sete imagens.

Em um debate virtual ocorrido em abril de 2009, um dos participantes propôs o uso da expressão “pessoa com diferença funcional” em substituição ao termo “pessoa com deficiência”, alegando ele que a palavra ‘deficiência’ era pejorativa. Oponho-me a tal substituição, pois o termo proposto traz no seu bojo um eufemismo, na mesma linha das expressões que já foram superadas ao longo da história, tais como “pessoa com capacidades especiais”, “pessoa com eficiências diferentes”, “pessoa com habilidades diferenciadas”, “pessoa com capacidades especiais”, “pessoa com capacidades diferentes”, “pessoa d-Eficiente”, “pessoa especial”, “portador de necessidades especiais”, “portador de direitos especiais”, “portador de diferença mental” e “pessoa verticalmente prejudicada”.

O surgimento de tantas nomenclaturas sobre a pessoa com deficiência é explicado por Miriam Piber Campos (2006), que em resumo assinalou: “São muitas as terminologias e os conceitos que passaram a circular no mundo em virtude daquele conjunto de opções que visam, ao fim e ao cabo, incluir aquelas pessoas tidas como excluídas da sociedade. Tais terminologias e conceitos foram e são criados, provavelmente, com a intenção de amenizar as denominações negativas que quase invariavelmente se apresentam ao falarmos ou pensarmos em uma pessoa com deficiência. (...) De modo geral, pode-se dizer que todas elas [família, escola, saúde etc.] pretendem, mediante a proposição de novos termos e conceitos, apresentar aqueles que poderiam ser, muito provavelmente, menos excludentes (carregados de preconceitos em relação às diferenças daquelas pessoas com algum tipo de deficiência)”.

Meus argumentos

O ponto frágil do eufemismo é que, na tentativa de dissimular a deficiência, ele acaba não sendo capaz de descrever a especificidade da condição que a pessoa tem. Repare-se que todas as expressões eufemísticas servem também para pessoas que não têm deficiência. Por exemplo, o termo “pessoas com diferença funcional” poderá referir-se até aos trabalhadores SEM deficiência que estejam apresentando uma diferença funcional em comparação com seus colegas de serviço.

Em outras palavras, o eufemismo não atinge o objetivo mais importante dos nomes, ou seja, caracterizar um grupo de pessoas para diferenciá-lo de outros grupos. O termo “pessoas com diferença funcional” não caracteriza um segmento da população, não distingue um segmento populacional de outro. É, portanto, uma expressão inócua.

Ao mesmo tempo, expressões eufemísticas - por serem vagas e abrangerem uma infindável variedade de características, além da deficiência - podem inspirar qualquer pessoa SEM deficiência a entrar com ações judiciais frívolas, alegando ter sido discriminada, a fim de obter vantagens (emprego, dinheiro etc.) garantidas em lei para pessoas COM deficiência.     

Especificamente em relação à expressão “pessoa verticalmente prejudicada”, que foi pronunciada por um palestrante brasileiro em 2009, ela já constava na cartilha publicada pelo governo federal em 2005 e intitulada “Politicamente Correto”. Na cartilha, foi utilizada a palavra “comprometida” em vez de “prejudicada”: “pessoa verticalmente comprometida”. A cartilha recomendava esse termo em substituição à palavra “anão”. O termo “nanismo” seria substituído por “comprometimento vertical”. A propósito desses termos, é oportuno relembrar que diversos países latino-americanos já aboliram a palavra “anão” e a substituíram por “pessoa com baixa estatura”; portanto, o termo “nanismo” foi substituído pela expressão “baixa estatura”. Dois países, Estados Unidos da América (EUA) e Kosovo, usam o termo “pessoas pequenas” (“little people”).

A cartilha “Politicamente Correto” foi organizada pela então Secretaria Especial dos Direitos Humanos (hoje Secretaria de Direitos Humanos). Chegaram a ser impressos 5.000 exemplares e a distribuição começou em 30/4/05, mas já nos primeiros dias a cartilha causou muita polêmica (por ex., FSP/Brasília, 1°/5/05; Cony, 3/5/05; Gullar, 15/5/05; Schwarcz, 15/5/05), a começar pela crítica formulada pelo escritor Ubaldo Ribeiro (Dantas & Suwwan, 6/5/05). Tanto que Nilmário Miranda, então ministro-chefe daquela Secretaria, mandou abortar a distribuição e recolher os exemplares que já tinham sido distribuídos. Enfim, todas as propostas eufemísticas constituem uma tentativa para se empregar expressões que substituam as palavras tidas como grosseiras, desagradáveis ou, no mínimo, eivadas de estigma.

Origem do uso de eufemismo

Historicamente, o primeiro termo eufemístico saiu nos EUA na década de 80 com a expressão “pessoa fisicamente desafiada” (physically challenged person). Por exemplo, Karen Cole Peralta, uma americana que se utiliza de cadeira de rodas, escreveu recentemente um depoimento do qual selecionei a seguinte frase: “Nos anos 80, eu trabalhava em Center Park [um prédio de apartamentos na cidade de Seatlle, estado de Washington] e em comunidades vizinhas, e pensava profundamente sobre a vida, sendo eu uma escritora recém-profissional e artista, trabalhando de dia para ajudar os deficientes [sic]. Eu morava no emprego como atendente pessoal de pessoas física e mentalmente desafiadas [physically and mentally challenged people], em sua maioria, brancas”. O termo “pessoas mentalmente desafiadas” se referia ao que hoje designamos “pessoas com deficiência intelectual”.

Estas expressões eufemísticas (“pessoa fisicamente desafiada” e “pessoa mentalmente desafiada”) logo desapareceram, assim que se percebeu que - por coerência - surgiriam os termos “pessoa visualmente desafiada”, “pessoa auditivamente desafiada” e “pessoa multiplamente desafiada”. Sem falarmos do termo genérico “pessoa desafiada”, usado para designar uma pessoa com qualquer uma daquelas deficiências. Esta expressão, por tão genérica, acabou ficando sem sentido. 

Assim, esses termos não pegaram, pois muita gente se manifestou contra o uso de eufemismos. Stephen A. escreveu em 24/11/98: “Aqui está um bom exemplo de como a linguagem evolui para atender as necessidades da classe dominante: o próprio termo ‘politicamente correto’ foi uma expressão criada, na metade da década de 80, por um congressista republicano do meio-oeste americano, em uma tentativa para desacreditar autodefinições. Pessoas com deficiência se opuseram ao termo ‘os fisicamente desafiados’, que o governo criou para designar este segmento. Se fossem construídas rampas, em vez de escadarias, ‘nós não seriamos pessoas fisicamente desafiadas’, argumentaram as próprias pessoas com deficiência”.

Na década de 80, o Centro de Vida Independente de Berkeley (Berkeley CIL, 1989), fundado em 1972 na cidade de Berkeley, estado da Califórnia, como o primeiro do gênero no mundo, divulgou diretrizes aprovadas pelo Instituto Nacional de Deficiência, as quais refletiram, na época, o consenso de mais de 100 organizações de pessoas com deficiência dos EUA. Dentre essas diretrizes, uma recomenda a não-utilização de eufemismos. Eufemismos, tais como “pessoa fisicamente desafiada” [physically challenged person] e “pessoa mentalmente diferente” [mentally different person] são condescendentes e reforçam a ideia de que a deficiência não pode ser lidada direta e abertamente, diz o livreto.

Em 1991, o Secretariado de Pessoas com Deficiência, do Canadá, lançou a cartilha “A way with words”, que trata de terminologias para se referir a pessoas com deficiência. Um dos trechos diz: “Não escrevam ou não digam: ‘[o] fisicamente desafiado’ [physically challenged] ou ‘[o] diferentemente capaz’ [differently able]. Escrevam ou digam: ‘pessoa com deficiência’ [person with a disability]”.

Em 1996, quando estagiava em centros de trabalho da Goodwill Industries (na Louisiana e na Flórida, EUA), percebi uma clara postura dos profissionais que lá trabalhavam: ninguém adotava eufemismos em relação a pessoas com deficiência. De fato, o manual da Goodwill Industries, “People with Disabilities: Terminology Guide”, recomendava: “Evitem eufemismo, atrelado ao modismo, ao descrever pessoas com deficiência. Expressões como ‘fisicamente desafiado’ (physically challenged], ‘especial’ [special] e ‘incapacitável’ [handicapable] são geralmente consideradas pelas pessoas com deficiência como paternalistas e incorretas”.

Assim nos escreveu por e-mail, em 8/3/03, a ativista salvadorenha Maritza Melara (sequela de pólio): “Muitas vezes, em variados espaços se propõe o termo ‘pessoa com capacidades especiais’ que é, em si mesmo, pejorativo. Pois todos nós e cada uma das pessoas temos capacidades especiais, a partir do momento em que não há dois seres humanos idênticos. E nossas habilidades e destrezas não têm nada a ver com nossa ‘deficiência’ em si. Outro tema seria o das potencialidades que cada um tem em relação à deficiência. Parece-me fabuloso o desejo de mudar e/ou modernizar o termo, mas sejamos cuidadosos, pois poderemos retroceder.”

O ativista mexicano Arian Jeshua Carmona Aguilar escreveu, em 9/12/08, o seguinte comentário: “A Comissão de Participação Cidadã da Câmara de Deputados [do México] assinalou que o termo ‘pessoa com capacidades diferentes’ rotula ou discrimina de alguma forma as pessoas com deficiência, e que o termo correto é ‘pessoa com deficiência’ [persona con discapacidad]”.

Um pouco do Brasil

Frei Betto escreveu o artigo “Deficientes físicos? Pode?”, no qual argumenta que o substantivo “deficiência” encerra o significado de falha ou imperfeição e é impróprio para a autoestima dos que assim são qualificados. Ele propõe a expressão “Portadores de Direitos Especiais (Pode)”. Discordando dele, a ativista Olga Maria Tavares de Souza escreveu em 11/3/02, entre outras considerações: “Nossa estima não diminui por usarmos a palavra ‘deficiência’. Pelo contrário, é essa palavra que pontua a diferença e nos impulsiona a lutar pelo resgate de nossa cidadania. Não é a deficiência que nos torna ineficientes. É a ausência de oportunidades e a ineficiência da sociedade que nos tornam incapazes de conviver em igualdade de condições. Se a cidade possui rampas para a minha cadeira de rodas, não me sinto diferente de você. Entendemos que omitir a palavra ‘deficiência’ mascara a nossa realidade”.Em debates presenciais e virtuais, havidos dentro do movimento das pessoas com deficiência e dos quais tenho participado, já houve consenso em torno dos princípios que devem nortear a adoção de terminologias.

No livreto “Vida Independente: História... Terminologia” (Sassaki, 2003), resumi e publiquei esses princípios, que são os seguintes: (a) Não camuflar ou negar a deficiência; (b) Mostrar com dignidade a realidade da deficiência; (c) Valorizar as diferenças e necessidades decorrentes da deficiência; (d) Não aceitar o consolo da falsa ideia de que todo mundo tem deficiência; (e) Não aceitar atitudes condescendentes, como a de que “aceitaremos vocês fazendo de conta que não têm deficiência”; (f) Combater eufemismos; (g) Defender a igualdade em dignidade e direitos humanos; (h) Identificar nas diferenças todos os direitos que lhes são pertinentes e a partir daí encontrar medidas específicas para o Estado e a sociedade diminuírem ou eliminarem as “restrições de participação”, ou seja, as dificuldades ou incapacidades causadas pelos ambientes humano e físico contra as pessoas com deficiência.

Em abril de 2009, em lista pela internet, a ativista Anahi Guedes de Mello escreveu que muitas pessoas com deficiência, inclusive ela mesma, desejam ser percebidas e consideradas pelo que elas são na realidade. Ou seja, elas têm uma deficiência e este é o principal atributo que as distingue de outras pessoas. Estamos falando de atributo (qualidade) e não de problema (incapacidade).

Portanto, voltar a usar uma nomenclatura eufemística é caminhar na contramão da inclusão social e da longa historia de conquistas das pessoas com deficiência, mesmo sendo o eufemismo um esforço muito louvável, movido por boas intenções e argumentos consideráveis, no sentido de disfarçar ou suavizar a dureza da realidade da deficiência.   

Ao defender a importância dos termos adequados para nos referirmos a pessoas com deficiência, preocupo-me em não dar a impressão de que eu esteja pensando que o uso deles resolverá todos os problemas que estas pessoas enfrentam no seu cotidiano. É claro que só isso não resolverá. Sob a égide da inclusão, várias ações devem ser implementadas simultaneamente. Medidas como a modificação e/ou a construção (dos ambientes físicos, dos equipamentos, materiais e instrumentos, dos meios e formas de comunicação, dos sistemas de transporte individual e coletivo) precisam ser tomadas em conjunto para melhorar e facilitar o dia-a-dia, a situação real, das pessoas com deficiência. Mas, justamente, estas medidas - enquanto são planejadas e executadas - se beneficiarão do uso de nomenclaturas corretas por parte de seus autores.      

Referências bibliográficas

A., Stephen. (Depoimento).
http://www.comicon.com/ubb/ubbthreads.php?ubb=showflat&Number=277688
AGUILAR, Arian Jeshua Carmona. (Comunicação por e-mail em 9/12/08).

BERKELEY CIL. How do you say? Guidelines on appropriate ways to describe people with disabilities. Berkeley/CA: Berkeley CIL, 1989.
CAMPOS, Miriam Piber. A (im)possibilidade das pessoas com deficiência: uma discussão acerca das terminologias e dos conceitos. UNIrevista, vol. 1, n. 2, abril 2006.

CANADÁ. A way with words: Guidelines and appropriate terminology for the portrayal of persons with disabilities. Ottawa/Ontário, Canadá: Status of Disabled Persons Secretariat, 1991.

CONY, Carlos Heitor. Besteira tem hora. Folha de S.Paulo, 3/5/05.

DANTAS, Iuri; SUWWAN, Leila. Lula usa em seus discursos termos vetados por cartilha. Folha de S.Paulo, 6/5/05.

FREI BETTO. “Deficientes físicos? Pode?”. O Estado de S.Paulo, 2/5/01.

FSP/BRASÍLIA. Governo lança manual ‘Politicamente correto’. Folha de S.Paulo, 1°/5/05.

GOODWILL INDUSTRIES. People with disabilities: Terminology guide. Bethesda/MD:  Goodwill Industries International, Inc., 1996.

GULLAR, Ferreira. A coisa está branca. Folha de S.Paulo, 15/5/05.

PERALTA, Karen Cole. (Depoimento).

http://cc.msnscache.com/cache.aspx?q=physically+challenged+people+in+the+80s&d=75884391761965&mkt=pt-BR&setlang=pt-BR&w=b90e176b,1c146448).

SASSAKI, Romeu Kazumi. Vida Independente: História, movimento, liderança, conceito, filosofia e fundamentos. Reabilitação, emprego e terminologia. São Paulo: Revista Nacional de Reabilitação, julho 2003.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Quem tem medo do politicamente incorreto? Folha de S.Paulo, 15/5/05.

SOUZA, Olga Maria Tavares de. Carta em resposta ao artigo publicado por Frei Betto, “Deficientes físicos? Pode?”, no O Estado de S.Paulo, em 2/5/01.

Romeu Kazumi Sassaki : Consultor e autor de livros de inclusão social. E-mail: romeukf@uol.com.br

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