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O que fazer com o conteúdo violento dos contos de fadas
Rossane Lemos

Mães e pais questionam o conteúdo dos contos de fadas, preocupados com o impacto que estas imagens podem gerar em seus filhos, especialmente à noite, antes da entrada no soninho dos anjos.

Como admitir que o lobo mau deguste a vovó? Como imaginar que a Chapeuzinho Vermelho deite-se ao lado de um lobo? Como aceitar que a bruxa malvada de “A Branca de Neve” dance em sapatos de ferro quente até morrer para pagar por sua maldade? São imagens fortes e chocantes, realmente. Mas é preciso ir além das aparências... pois bem.

As histórias, fábulas, narrativas maravilhosas, de encantamento, mitológicas, os contos de fadas e todos os tipos de enredos tradicionais ou contemporâneos, folclóricos ou não, caminham ao lado do ser humano ao longo de muitos e muitos séculos.

Ao despertar pelo “Era uma vez”, crianças, jovens, homens e mulheres, entendem a cultura própria do grupo, observam movimentos da natureza, da vida e do mundo e veem transformações individuais e coletivas acontecerem.

Como explica a analista junguiana Clarissa Pínkola Estés sobre os contos, a despeito de muitas violências, são sobreviventes de agressões e opressões políticas, de massacres de gerações e devastas migrações por terra e por mar. “Sobreviveram a argumentos, ampliações e fragmentações. Essas joias multifacetadas têm realmente a dureza de um diamante, e talvez nisso resida o seu maior mistério e milagre” (2005, p. 11).

Com a mesma preocupação dos pais contemporâneos, os cristãos e intelectuais da época dos Irmãos Grimm criticaram o conteúdo violento e cruel dos contos e no segundo volume, Wilhelm e Jacob retiraram os trechos mais impactantes para a sociedade. Entre os contos estão “Os sete corvos”, “Os músicos de Bremen”, “A guardadora de gansos”, “João e Maria”, “Trinta fiandeiras”, “O príncipe sapo” e “O pequeno polegar”.

Porém, especialistas neste assunto alertam que a tentativa de suavizar o conteúdo dos contos como fez Walt Disney não é uma boa saída. Em 1937, Walt Disney redescobre os contos de fadas e produz o primeiro filme longa-metragem de animação da história, “Branca de Neve e os sete anões”. A versão coletada pelos Irmãos Grimm ganha outros contornos e se adapta à plástica e ao roteiro cinematrográficos.

Mais tarde, o estúdio aproveita o sucesso e produz “Cinderela”, “Alice no país das maravilhas”, “Peter Pan”, “A bela adormecida” e outros clássicos, como “O cão e a raposa e Aladin”, popularizando os contos de fadas e atribuindo referência visual às histórias que viviam apenas no imaginário popular.
Walt Disney foi muito criticado, e ainda o é, por alterar o conteúdo dos contos de fadas nos filmes.

A história de “Branca de Neve”, ganha já no título do filme o complemento “e os sete anões”. No final da história recolhida pelos Irmãos Grimm, a madrasta é castigada durante a cerimônia do casamento dos príncipes no castelo, tendo que dançar com sapatos de ferro quentes de brasa até morrer. No filme, um raio destroça a ponte por onde a madrasta passava e ela morre.

Fanny Abramovich (1997, p. 121) alerta que: “Cada elemento dos contos de fadas tem um papel significativo, importantíssimo e, se for retirado, suprimido ou atenuado, vai impedir que a criança compreenda integralmente o conto... Por isso se condena tanto o que Walt Disney fez com os contos de fadas... Ao adocicá-los, pasteurizá-los, ao retirar-lhes os conflitos essenciais, tirou também toda a sua densidade, significado e revelação”.

Betelhein atuou como educador e terapeuta de crianças gravemente perturbadas e encontrou várias respostas para as demandas infantis. No livro Psicanálise dos contos de fadas, célebre literatura sobre o tema, tratando do filme “A Branca de Neve e os sete anões”, Betelhein alerta que: “[...] dar a cada anão um nome separado e uma personalidade distinta – no conto de fadas eles são todos idênticos ? como no filme de Walt Disney, interfere seriamente com a compreensão inconsciente de que eles simbolizam uma forma de existência pré-individual prematura que Branca de Neve deve transcender”. (BETELHEIN, 1997, p. 114)

O psicólogo acredita que nada tem a acrescentar estas alterações indutivas, que acabam por dificultar a compreensão da mensagem que efetivamente é ainda mais profunda. Ele alerta ainda que as crianças convivem diariamente com medos e monstros e pode até a se sentir um deles. Retirar da criança esta oportunidade de lidar com tudo o que uma vida representa é, no mínimo, um impedimento para a experimentação das fantasias e imagens a elaborar.

Essa é uma das principais angústias de mães e pais contadores de histórias para seus filhos. Eles não sabem o que fazer diante destes enredos dramáticos como “João e Maria” e “Chapeuzinho Vermelho”, por exemplo. Falar de um animal que engole a vovozinha, tão boazinha e doente, que nada tem de merecimento para tal desgraça. Falar de crianças que são abandonadas na mata. Mas é exatamente assim...

Também é preciso entender que o mundo está em tempos diferentes: enquanto para alguns grupos a justiça e a segurança reinam, para outros, a barbárie determina o destino. Assim como a história, a vida é recheada de lobos, bruxas e outros personagens que despertam medo, raiva, etc. E poupar os pequenos desta experiência alegórica é retirar deles a oportunidade de processar questões que logo estarão na televisão, no rádio, na vizinhança e envolvendo a própria família.

Apesar disso, é importante propiciar à criança os finais completos das histórias, que quase sempre são esperançosos como em “João e Maria” e “Chapeuzinho Vermelho”. Nada de ressuscitar as noivas do “Barba Azul”, mas na infância, o indivíduo necessita desenvolver o sentido de esperança, da crença, e da alegria. Finais felizes são sempre bem-vindos.

Rossane Lemos é jornalista, contadora de histórias, especialista em Audiovisual e mestre em Teoria Literária estudando os contos de fadas. Atualmente, se dedica à aprendizagem da língua francesa e à pesquisa dos contos de fadas em Paris, França.

Avaliação deste Artigo: 5 estrelas