Erika de Souza Bueno Coordenadora Educacional da empresa Planeta Educação; Professora e consultora de Língua Portuguesa pela Universidade Metodista de São Paulo; Articulista sobre assuntos de língua portuguesa, educação e família; Editora do Portal Planeta Educação (www.planetaeducacao.com.br). E-mail: erika.bueno@fk1.com.br
Anoitecer
Desta hora não quero mais ter medo
É
a hora em que o sino toca, mas aqui não há sinos;
há somente buzinas, sirenes roucas, apitos aflitos,
pungentes, trágicos, uivando escuro segredo; desta hora
tenho medo
É a hora em que o pássaro volta, mas de
há muito não há pássaros;
só multidões compactas escorrendo exaustas como
espesso óleo que impregna o latejo; desta hora tenho medo.
É a hora do descanso, mas o descanso vem tarde, o corpo
não pede sono, depois de tanto rodar; pede-se paz
– morte – mergulho no poço mais ermo e
quedo; desta hora tenho medo.
Hora de delicadeza, agasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo? É antes da hora dos
corvos, bicando em mim, meu passado, meu futuro, meu degredo; desta
hora, sim, tenho medo. (Carlos Drummond de Andrade)
Há um versículo bíblico que diz que
“há tempo para todo propósito debaixo
do sol”, ou seja, não é preciso ter
pressa: haverá tempo para nascer, crescer, desenvolver e...
morrer. Quando comparamos o tempo de hoje ao tempo de ontem, percebemos
que os conceitos mudaram muito e a pressa do homem tem o feito perder a
essência e o prazer de muitas coisas.
Dá para sentir saudades daquele “café
da tarde” tomado junto a amigos e familiares. Tudo tinha um
sabor diferente, não havia o “luxo”
conquistado com tanta dor que temos hoje: um pão com
manteiga, um café com leite, um bolo de fubá,
tudo era degustado com mais calma. Hoje, até mesmo os nossos
alimentos mais simples são feitos por mãos
desconhecidas, afinal de contas, não temos mais tempo para
nos dedicar ao preparo de alimentos...
Tudo isso é apenas o reflexo da mudança de
valores que a sociedade tem sofrido, muitas vezes regidas pelo o que a
mídia diz que é o correto. Há uma
busca desesperada por melhores salários, melhores
posições e, até mesmo quando se atinge
tais objetivos, não se encontra
satisfação. Hoje o dinheiro é exaltado
em detrimento do amor à família, ao descanso e a
Deus.
No poema acima, o autor fala sobre mudanças
drásticas nos hábitos da vida da cidade
comparando-a com a vida do campo. Tais mudanças fazem com
que ele sinta medo da hora do anoitecer, ou seja, da hora que temos de
parar a nossa árdua jornada, voltar para casa e descansar.
O que deveria ser uma hora de satisfação e de
felicidade, o anoitecer tem sido o contrário, pois
até o trajeto de retorno ao lar é tumultuado e
perturbado por buzinas dos carros de motoristas impacientes.
Não há muito tempo para um sorriso de
“bom-dia” (a não ser para aqueles que
nos são convenientes). A hora que dantes era de delicadeza,
agasalho, sombra, silêncio - características de
proteção e de afago sem palavras, já
que estas são dispensáveis quando se tem o
verdadeiro amor - tornou-se a hora do medo, pois
“não há muito disso no mundo”.
É tempo de encararmos os nossos medos e pensarmos em modelos
de vida mais saudáveis, mais significativos e mais
sábios, para que possamos dizer do anoitecer que
“desta hora, sim, não tenho mais medo”.